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O Direito dos Animais e o humano, demasiado humano
Inspiradores os debates contemporâneos[1] a respeito do Direito dos Animais. O tema provoca paixões.
Vitória para seus defensores: em diversas legislações, os animais passaram do status de coisa e/ou de mercadoria ao de seres senscientes — dotados de sensibilidade. E, do lado dos animais humanos, no Direito de Família surgem decisões, um tanto surpreendentes, que concedem guarda compartilhada aos “donos” ou “pais” de animais de estimação.
O tema questiona fronteiras. Não só disciplinares, mas, sobretudo, as existenciais, colocando em xeque o que nos faz humanos, o que nos diferenciaria.
Em termos qualitativos, comparativamente ao que conhecemos de outros animais, teríamos uma capacidade ampliada de simbolização, de consciência do tempo, de ética e de moral, mas, sobretudo, a faculdade de nos questionarmos e angustiarmos face à nossa identidade, ao nosso sentido existencial.
E as capacidades éticas e morais se vêm abaladas, e o sentido de nossa existência, modificado, conforme passamos a valorizar outras espécies.
Cito Sigmund Freud, que, em texto de 1917, provocativamente marcou como três os grandes golpes em nosso narcisismo, em nossa megalomania: aquele desferido por Copérnico; o desferido por Darwin, demonstrando que o homem encontra-se na escala da criação, não sendo, portanto, único e mais próximo do divino; e, finalmente, o golpe resultante da descoberta de que o homem não é senhor da consciência — estando também sujeito ao desejo e ao inconsciente[2]. Depois desses golpes, a forma de a humanidade ver a si própria nunca mais foi a mesma.
Interessa-nos o segundo golpe. Nossa identidade, autoimagem e autoestima são construídas a partir das semelhanças e das diferenças com o outro. É no outro que nos reconhecemos em alguns aspectos, e com base nas diferenças é que também nos individualizamos.
E este “outro” também são os outros animais. Eles têm espelhado cada vez mais um pouco de nós, e, nessa medida, de forma não tão altruísta como gostaríamos de acreditar, com eles passamos a nos preocupar.
Alguns fatores desencadearam a ampliação do conhecimento que temos de nossa espécie e das outras, além do refinamento de técnicas de observação e de experimentos que avaliam as interações e que despertam nossa sensibilidade para com eles, sem contar os inúmeros vídeos que circulam na internet.
No quesito da sensibilidade, contribuiu a diminuição da oposição, excludente e a menor hierarquização entre masculino — racional, cético e objetivo — e feminino — sentimental, intuitivo e subjetivo. Sendo que as qualidades tidas como quase que exclusivamente femininas passaram a ser admitidas como presentes nos homens, sendo, assim, inclusive mais valorizadas. E algumas dessas, tais como sensibilidade e intuição, há muito atribuímos também aos animais, sobretudo aos de estimação.
O outro fator, correlato à quebra da oposição entre feminino e masculino, foi o da mudança do paradigma cartesiano, que também carreava uma hierarquia de valor próprio ao patriarcado e que não mais se sustenta: agora, agrega-se ao “penso, logo existo”, o sinto, logo sou.
E em época de busca de igualdade de direitos para as mulheres e crianças, ambas mais identificadas com o afeto, a intuição e a subjetividade, emerge com maior força o valor dado aos animais. Em certo sentido, o Direito dos Animais vem na esteira dos direitos das mulheres e das crianças.
A hierarquia de valores acompanhava não só o patriarcado e o patrimonialismo, mas também a oposição entre sujeito objeto. Oposição que deixa de ser tão marcante a ponto de os outros animais não mais serem vistos só como coisas a partir de sua utilidade para nós.
E em tempos de desconstrução e modificação de categorias, nos perguntamos: a qual sentido serviriam as hierarquias e a “coisificação” de outros seres.
A oposição entre sujeito e objeto era, e é, muitas vezes usada também para estabelecer uma hierarquia entre os sujeitos, para exercer o domínio de uns sobre os outros, transformando-os em objeto de uso, não lhes sendo reconhecido o amplo status de sujeitos.
E, assim, o tratar o diferente como “coisa” serviria mais para o tratar como objeto de posse, dominação e de uso a serviço do desejo e da vontade. Claro que, além de questões psicológicas, o fator econômico e o exercício do poder aliam-se à “coisificação” do outro. Sendo essa também legitimada por uma pretendida superioridade que, como já apontada por Freud, diz mais sobre nosso narcisismo do que sobre os outros, sejam pessoas ou outros animais.
Em consequência das citadas mudanças, temos uma tendência à crescente valorização do afeto, defendido por alguns como categoria jurídica, mas, sem dúvida, sustentáculo dos vínculos não só entre humanos como destes com os outros animais.
Neste percurso de valorização dos outros animais, digno de exame os nossos vínculos com aqueles ditos de estimação. Alie-se aos fatores citados o de uma sociedade em que se busca o imediatismo da satisfação, e na qual muito se faz para diminuir a frustração. Nessa linha, os animais domésticos e de companhia ganharam outro status, inclusive substituindo vazios em tempos de relacionamentos líquidos, de interesses pontuais, passageiros e materiais. Tempos em que não só a fidelidade, mas a lealdade não necessariamente integram os relacionamentos, não mais tidos como para toda a vida. Desde há muito os cães são descritos como os “melhores” amigos, fiéis e leais. E, aqui, menos uma crítica e mais uma constatação da crescente valorização a eles conferida também em razão da busca de compensação de vazios existenciais.
Mas, por certo, o tema do Direito dos Animais envolve não só os domésticos. Estes, em função da convivência, ampliam a nossa sensibilidade para com ainda outros. E os selvagens ganham nossa simpatia ou compaixão também em função da consciência ecológica, da interdependência das espécies para o desequilíbrio do planeta, que, direta ou indiretamente, nos ameaça e que, agora mais conscientes, tem sido por nós causado.
Demo-nos conta, por exemplo, dos estragos na camada de ozônio que seriam causados pelos rebanhos, utilidade que causa estragos irreparáveis. Somado aos transgênicos e produtividade agrícola, fatores econômicos, a consciência do sofrimento animal e avanços do nutricionismo, difundiram-se as opções ou culturas vegetariana e vegana.
O desequilíbrio que ameaça o planeta foi causado muito a pretexto de dominar a natureza e de usufruir recursos que acreditávamos inesgotáveis.
Exercemos uma forma de domínio antropocêntrico, destrutivo e projetivo — conhecer e dominar a natureza também como forma de desconhecer a nossa, atribuindo aos animais selvagens nossos próprios impulsos selvagens.
Diferenciamos o instinto, atribuído aos animais ditos irracionais, dos impulsos ou pulsões: a transformação mental humana sofrida pelos instintos, dotando-os de sentido civilizacional. Mas cabe questionar: que civilização seria essa e que impulsos tão evolutivamente superiores seriam esses, se é que realmente o são.
Curiosamente, os exemplos de violência e de destrutividade grassam em nosso “reino” humano; já no reino animal, nem tanto. Parece, então, que o atribuir aos outros animais a agressividade e suas formas perversas de violência seria muito mais fruto de nosso narcisismo, de nossa vaidade, em que projetamos naqueles a falta de sentido inerente à nossa própria violência.
Ao reconhecermos nossa espécie como dotada de impulsos não tão elevados ética e moralmente, não mais podemos lhes atribuir um sentido espantosamente “humano” em oposição aos menos elevados que atribuíamos aos outros animais.
Em meio a esse paradoxo, no Direito de Família temos elevado o afeto a uma categoria evolutiva superior ao falarmos do movimento denominado como “re-humanização” do Direito. O afeto é tido, de acordo com diversos autores, como categoria, princípio ou valor jurídico. Independentemente dos inegáveis avanços em direção ao “direito a ser humano”, é tempo de repensar o que caracterizamos, de forma um tanto vaidosa, com a dita re-humanização do Direito.
Finalizo com a provocação em analisar de modo inverso a questão humana e animal.
Tendo em vista que as emoções são evolutivamente anteriores à capacidade de raciocinar, ao sentido moral e à ética — possibilidade em sentir angústia e escolher valores —, poderíamos pensar, de modo inverso, que talvez a valorização do afeto trate mais de uma devida “animalização” do Direito.
E ao inserirmos na categoria dos afetos a destrutividade e a violência que não encontramos nem de longe nas outras espécies, podemos dizer que essas, numa inversão evolutiva, também nos caracterizam no que acreditávamos projetivamente ser próprio dos outros animais. Uma pretensão que nos custou já muita destruição. Afetos perversos, irracionais, erroneamente atribuídos aos outros animais e que, no entanto, pertencem mais ao humano, demasiado humano.
E nesse sentido é que as discussões relativas ao Direito dos Animais poderão, em muito, nos ensinar a nosso respeito.
*O título deste texto remete ao livro de Friedrich Nietzsche (1844-1900)Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres, publicado em 1886.
Giselle Câmara Groeninga é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.
[1] Palestras proferidas pelo professor Fernando Araújo (Universidade de Lisboa), José Fernando Simão (Universidade de São Paulo) e Tagori Trajano (Universidade Federal da Bahia) na Ordem dos Advogados do Porto, Portugal.
[2] FREUD, Sigmund. Conferência XVIII. In: Obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1995, v. XVI.
Este artigo foi extraído do Conjur, com autorização da autora para publicação no portal do IBDFAM: disponível: http://www.conjur.com.br/2017-jul-23/processo-familiar-direito-animais-humano-demasiado-humano
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