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A “caixa de Pandora” da incapacidade absoluta
O Projeto de Lei n. 757 do Senado Federal, tem como ementa a alteração do Código Civil, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e do Código de Processo Civil, para dispor sobre a igualdade civil e o apoio às pessoas sem pleno discernimento ou que não puderem exprimir sua vontade, os limites da curatela, os efeitos e o procedimento da tomada de decisão apoiada. Dentre as propostas do PL 757, quero rapidamente me ater a uma em especial: a repristinação da incapacidade absoluta – hoje restrita aos menores de 16 anos de idade -, para inserir nesse rol as pessoas que, “por qualquer motivo, não tiverem o necessário discernimento” para a prática dos atos da vida civil. Abalizadas vozes na doutrina nacional sustentam o referido PL, como uma forma de evitar abalos em institutos tradicionais como contratos, prescrição, responsabilidade civil e obrigações contraídas por pessoas com deficiência.
O retorno da redoma da incapacidade absoluta significa evidente retrocesso, por impor uma “repatrimonialização” do direito civil pela via da interpretação do princípio da segurança jurídica como a perpetuação dos institutos patrimoniais clássicos – forjados para a realidade socioeconômica e política dos dois últimos séculos – em detrimento da ressignificação do conceito de segurança jurídica do Estado Democrático de Direito, cujo norte no direito privado é a edificação de um sistema de direito em que se funcionalizem os modelos jurídicos tradicionais em prol da proteção e promoção da dignidade da pessoa humana.
A expressão “absolutamente incapaz” é tecnicamente e eticamente inadmissível. Ela parte da premissa de que existe uma classificação abstrata capaz de albergar seres humanos despersonalizados, inaptos a cumprir o seu destino e substituídos em todo e qualquer ato da vida civil. Isso é moralmente aceitável? É evidente que é da “natureza das coisas” que existam pessoas completamente impossibilitadas de exercer o autogoverno, seja por um grave AVC, estado comatoso, doenças crônicas degenerativas em estágio avançado. Porém, será que é necessário ressuscitar a anacrônica incapacidade absoluta apenas para justificar essas situações extremadas da vida, renunciando a outras alternativas legislativas e interpretativas que, ao invés de “interditar” o ser humano, possam conciliar tais casos excepcionalíssimos com a esmagadora maioria de hipóteses de curatela em que o curatelado remanesce com residuais ou parciais espaços de autodeterminação?
Transferir compulsoriamente para um curador poderes para decidir sob a própria existência do curatelado implica uma delegação coercitiva de direitos fundamentais, o resgate da “morte civil” dos tempos de Roma. Evidente que a mais bem-intencionada lei não pode cobrir a multifacetada realidade. Todos conhecemos ou convivemos com pessoas que não podem (v.g. estado vegetativo persistente, Alzheimer avançado) absolutamente decidir sobre a sua própria intimidade e vida privada. Nesses casos extremos a representação será mais ampla, compreendendo também a curatela sobre a dimensão existencial da pessoa. Mesmo em tais episódios extremos, de impossibilidade veemente de contato com o mundo exterior, não mais existirá o rótulo “incapacidade absoluta”, mas apenas uma curatela de maior extensão no interno de uma incapacidade relativa. A incapacidade absoluta é incompatível com o sistema civil brasileiro pelo fato de que não se admite em um ordenamento jurídico guiado pelo princípio da dignidade da pessoa humana e pela Convenção Internacional de Pessoas com Deficiência que regras de direito civil possam “a priori“ estabelecer categorias de “não pessoas”. Inversamente, os diversos tons da incapacidade relativa permitem agasalhar todo tipo de assistência – desde as menos às mais extensas - conforme indique o projeto terapêutico individualizado levado a efeito por uma avaliação biopsicossocial que verifique, simultaneamente, o histórico clínico e social do indivíduo, com um olhar voltado para a pessoa e outro para o entorno.
Não recusamos, portanto, a sobrevivência do modelo da representação para hipóteses extremamente graves, no qual o magistrado por fundamentadas razões determinará uma curatela de ampla extensão. A final, trata-se de técnica de substituição na exteriorização da vontade aplicável não apenas em contexto de incapacidade absoluta por ausência de discernimento (que já não mais subsiste), mas também no âmbito de uma curatela por incapacidade relativa, quando o projeto terapêutico individualizado indique que a pessoa curatelada é incompetente para a prática de certos atos civis – patrimoniais ou existenciais. O ideal seria que duas formulações fossem levadas em consideração: a) os institutos patrimoniais devem se modelar aos avanços dos direitos humanos, materializados na Constituição Federal e em tratados internacionais aqui internalizados. Admitir o contrário significa subverter a própria racionalidade do sistema jurídico; b) a inserção das pessoas sem autodeterminação na classe dos relativamente incapazes é uma solução de compromisso que permite conciliar cuidado e autonomia. A possibilidade de um magistrado modular a curatela entre 0 e 100 só existe em uma lógica de razoabilidade na qual uma avaliação biopsicossocial possa aferir a concretude daquele ser humano, imerso em sua realidade e necessidades. Assim, sempre teremos sentenças fundamentadas que oscilarão entre os extremos das curatelas de amplíssima extensão (com representação generalizada), de um lado, e curatelas leves de outro (intercalando a assistência para certos atos e a ampla autonomia na maior parte dos atos da vida civil).
Caso o PLS n. 757 alcance êxito, a incapacidade absoluta será a “caixa de pandora” que permitirá a qualquer juiz no Brasil, assoberbado por uma quantidade absurda de processos, simplesmente impor sentenças açodadas e mal fundamentadas que restituam a “interdição” ao “status quo”. Para que se preocupar com a complexidade de um planejamento terapêutico individualizado – que implicará na contratação de um corpo de profissionais qualificados e do serviço social para emitir avaliações biopsicossociais – quando bastará uma sentença que aplique a incapacidade absoluta para resolver os casos fáceis (aqueles nos quais a pessoa carece de qualquer resíduo de autonomia) e ao mesmo tempo decida discricionariamente os “hard cases” que envolvem a ampla maioria das pessoas que se encontram em situação limítrofe?
Em minha concepção particular, ao invés de perpetuar a artificialidade da dicotomia entre incapacidade absoluta e a incapacidade relativa, bastaria que houvesse apenas uma só incapacidade, conformada pelas salvaguardas determinadas pela CDPD. Uma incapacidade objetiva, baseada em uma impossibilidade de autodeterminação e que seja capaz de prevenir abusos, em conformidade com o direito internacional dos direitos humanos. Conforme o art. 12.4 da Convenção de Nova York, “essas salvaguardas assegurarão que as medidas relativas ao exercício da capacidade legal respeitem os direitos, a vontade e as preferências da pessoa, sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular por uma autoridade ou órgão judiciário competente, independente e imparcial. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa”.
Nelson Rosenvald
Procurador de Justiça do Ministério Público/MG; Pós-Doutor em Direito Civil pela Universidade Roma Tre. Visiting Professor na Oxford University Professor Investigador na Faculdade de Direito de Coimbra; Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Membro da Society of Legal Scholars (UK); membro do comitê científico da Revista Actualidad Juridica Iberoamericana (España); publicou 14 livros, dentre eles a coleção de 7 volumes de direito civil, além de diversos artigos em revistas especializadas e estrangeiras.
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