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Quanto menos família melhor
A recente divulgação dos dados do Censo mostra que a família brasileira mudou. São cada vez mais comuns os núcleos chefiados por mulheres, casais com filhos de casamentos anteriores convivendo com rebentos da nova união, mães criando filhos sem pai por perto, pais criando filhos sem mãe por perto, casais sem filhos e por aí vai. Se somam a estes dados outros elementos de comportamento sexual, como o aumento do número de uniões estáveis entre homossexuais, a tendência à experimentação sexual, convivência sexual de jovens com consentimento (e até hotelaria) dos pais. Como se vê, só coisa boa. A família tradicional morreu. Viva a nova família.
Não existe conversa mais falsa que a defesa da "célula mater" da sociedade ancorada numa união patriarcal, moralista, injusta e discriminatória. O modelo de família que está morrendo – e é bom que morra logo – é aquele baseado em uma noção ideológica de sociedade, sexualidade e afeto. A sociedade era regulada por relações de propriedade, nas quais a mulher era um bem entre outros (desde a posse de seu corpo até de sua inteligência, domada na tarefa de ficar em casa e fazer do lar o ambiente de privatização das relações sociais). A sexualidade decorrente deste pacto tinha a higiene por base e obrigava à normatização dos comportamentos, domados até a raiz da libido. O afeto, a "união por amor", nada mais era que uma contrapartida vicária de decisões de classe, que fazia da endogamia um dogma. E dá-lhe Nelson Rodrigues.
Não há uma nova família. Há novas famílias, novos modelos tateantes de busca de felicidade. Pode-se argumentar que se trocou uma determinação econômica material por uma outra econômica sexual. Na busca meio consumista de felicidade, se perdeu o senso de estrutura, a idéia de que vale a pena enfrentar problemas de momento para se construir algo duradouro e profundo. O argumento é bom, mas não é verdadeiro. Quase sempre o que acaba não tem mais conserto e o que fica, nos casos de novas tentativas, é exatamente a sede de continuidade, ainda que não com a mesma parceira, de uma união que seja completa e que leve à melhoria dos dois lados da relação. Isso sim é amor que vale a pena.
Quando se pensa nos filhos, é difícil ser contrário à defesa de que o melhor dos mundos possíveis é constituído por crianças felizes, criadas por pais que se amam. Ainda não inventaram nada melhor. Mas é exatamente onde manca a perspectiva de um amor para sempre que começa a valer a fórmula do sempre amor. Mesmo para os meninos e meninas, que têm que aprender a dividir quartos com meio-irmãos ou nada-irmãos, há uma abertura para a realidade extrafamiliar que pode ser saudável, democrática, solidária. Além disso, se forem mesmo amados, mais que se chatear em dividir finais de semana, podem dividir a sensação de que o fruto do amor permanece. É isso que pode fazer bem à alma infantil, ser sinal de amor e levar a criança a querer amar e, quem sabe, ter filhos.
Há uma instabilidade essencial na nova família e uma sede de contato que aponta para múltiplas relações. No século XIX, cada família tinha que dar conta de tudo, já que era no "seio familiar" que o mundo ganhava sentido. Vem daí, talvez, essa mania nossa de mostrar a casa, como quem desvenda, num lar organizado, seu senso próprio de reorganizar o mundo. Com a explosão da privacidade do lar, o ponto de referência ficou maior, mais compartilhável. E instável, mutante. Além disso, as novas uniões familiares trazem inscritos em si a trajetória de fracassos e o senso determinado da procura de felicidade. Frustrações e sonhos de realização. Esta pode ser uma definição menos romântica da vida.
A árvore genealógica hoje tem mais galhos e eles são cada vez mais intrincados. Com isso, os laços de parentesco, por si sós, não são garantia de nada. Como dizia Bernard Shaw, ninguém é melhor por ter nascido em determinado país ou família. O nacionalismo doentio, como o familialismo, é deturpação do valor verdadeiro. Amor não tem genética nem latitude. Ainda que o ambiente de afeto possa ser a estufa de bons sentimentos, ninguém garante que ela vai ser aquecida pelos ares da convenção.
O resultado do Censo aponta uma tendência: a valorização da mulher, a superação de alguns preconceitos (ainda longe da tolerância desejável) e, o que é mais sério, a persistência das desigualdades. Ainda se concentram nas camadas mais pobres e menos letradas todos os instrumentos simbólicos de opressão que fizeram vicejar a família burguesa. A ignorância é quase sempre condição de falta de planejamento e de opções. Quanto menos dinheiro e estudo a mulher tem, menos ela é senhora de seu destino e mais submissa se oferece à sanha machista que ainda é forte entre nós.
Há uma superação de impasses morais antigos – mesmo que aponte para algo confuso, às vezes até atrapalhado, e ainda em estado de desenvolvimento – e a reafirmação de pesados e danosos preconceitos. A nova família se move. Não se pode dizer em que direção certa, mas certamente na direção contrária de uma história de infelicidades. A economia do desejo pode até ser questionável em sua sede incontornável de prazeres imediatos. Mas talvez seja melhor apostar que homens e mulheres amadurecem na procura, do que aceitar sentimentos fenecidos como destino inevitável.
Pensando bem, quanto mais famílias melhor. Um dia, quem sabe, poderemos ver no outro a possibilidade do irmão.
(*) Editor de Cultura
Não existe conversa mais falsa que a defesa da "célula mater" da sociedade ancorada numa união patriarcal, moralista, injusta e discriminatória. O modelo de família que está morrendo – e é bom que morra logo – é aquele baseado em uma noção ideológica de sociedade, sexualidade e afeto. A sociedade era regulada por relações de propriedade, nas quais a mulher era um bem entre outros (desde a posse de seu corpo até de sua inteligência, domada na tarefa de ficar em casa e fazer do lar o ambiente de privatização das relações sociais). A sexualidade decorrente deste pacto tinha a higiene por base e obrigava à normatização dos comportamentos, domados até a raiz da libido. O afeto, a "união por amor", nada mais era que uma contrapartida vicária de decisões de classe, que fazia da endogamia um dogma. E dá-lhe Nelson Rodrigues.
Não há uma nova família. Há novas famílias, novos modelos tateantes de busca de felicidade. Pode-se argumentar que se trocou uma determinação econômica material por uma outra econômica sexual. Na busca meio consumista de felicidade, se perdeu o senso de estrutura, a idéia de que vale a pena enfrentar problemas de momento para se construir algo duradouro e profundo. O argumento é bom, mas não é verdadeiro. Quase sempre o que acaba não tem mais conserto e o que fica, nos casos de novas tentativas, é exatamente a sede de continuidade, ainda que não com a mesma parceira, de uma união que seja completa e que leve à melhoria dos dois lados da relação. Isso sim é amor que vale a pena.
Quando se pensa nos filhos, é difícil ser contrário à defesa de que o melhor dos mundos possíveis é constituído por crianças felizes, criadas por pais que se amam. Ainda não inventaram nada melhor. Mas é exatamente onde manca a perspectiva de um amor para sempre que começa a valer a fórmula do sempre amor. Mesmo para os meninos e meninas, que têm que aprender a dividir quartos com meio-irmãos ou nada-irmãos, há uma abertura para a realidade extrafamiliar que pode ser saudável, democrática, solidária. Além disso, se forem mesmo amados, mais que se chatear em dividir finais de semana, podem dividir a sensação de que o fruto do amor permanece. É isso que pode fazer bem à alma infantil, ser sinal de amor e levar a criança a querer amar e, quem sabe, ter filhos.
Há uma instabilidade essencial na nova família e uma sede de contato que aponta para múltiplas relações. No século XIX, cada família tinha que dar conta de tudo, já que era no "seio familiar" que o mundo ganhava sentido. Vem daí, talvez, essa mania nossa de mostrar a casa, como quem desvenda, num lar organizado, seu senso próprio de reorganizar o mundo. Com a explosão da privacidade do lar, o ponto de referência ficou maior, mais compartilhável. E instável, mutante. Além disso, as novas uniões familiares trazem inscritos em si a trajetória de fracassos e o senso determinado da procura de felicidade. Frustrações e sonhos de realização. Esta pode ser uma definição menos romântica da vida.
A árvore genealógica hoje tem mais galhos e eles são cada vez mais intrincados. Com isso, os laços de parentesco, por si sós, não são garantia de nada. Como dizia Bernard Shaw, ninguém é melhor por ter nascido em determinado país ou família. O nacionalismo doentio, como o familialismo, é deturpação do valor verdadeiro. Amor não tem genética nem latitude. Ainda que o ambiente de afeto possa ser a estufa de bons sentimentos, ninguém garante que ela vai ser aquecida pelos ares da convenção.
O resultado do Censo aponta uma tendência: a valorização da mulher, a superação de alguns preconceitos (ainda longe da tolerância desejável) e, o que é mais sério, a persistência das desigualdades. Ainda se concentram nas camadas mais pobres e menos letradas todos os instrumentos simbólicos de opressão que fizeram vicejar a família burguesa. A ignorância é quase sempre condição de falta de planejamento e de opções. Quanto menos dinheiro e estudo a mulher tem, menos ela é senhora de seu destino e mais submissa se oferece à sanha machista que ainda é forte entre nós.
Há uma superação de impasses morais antigos – mesmo que aponte para algo confuso, às vezes até atrapalhado, e ainda em estado de desenvolvimento – e a reafirmação de pesados e danosos preconceitos. A nova família se move. Não se pode dizer em que direção certa, mas certamente na direção contrária de uma história de infelicidades. A economia do desejo pode até ser questionável em sua sede incontornável de prazeres imediatos. Mas talvez seja melhor apostar que homens e mulheres amadurecem na procura, do que aceitar sentimentos fenecidos como destino inevitável.
Pensando bem, quanto mais famílias melhor. Um dia, quem sabe, poderemos ver no outro a possibilidade do irmão.
(*) Editor de Cultura
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