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A designação obrigatória do sexo na certidão de nascimento. Questionamentos
É da mais longeva tradição social que o gênero humano se divide em dois: o feminino e o masculino (e se fosse observar a tradição predominante a ordem seria inversa, sempre primeiro o masculino...).
E, como a realidade social também sempre antecedeu à norma jurídica, jamais se questionou o porquê desta norma ter passado a determinar que, ao se registrar um nascimento, no referido documento deve constar o nome e o sexo do neonato, isto no prazo de quinze dias, como regra geral (art.54 § 2º da Lei 6.015, de 31.12.1973).
Mas a realidade social tem uma dinâmica por vezes até assustadora (principalmente para a tradição). E, nos dias atuais, ao estudarmos a matéria “gênero humano”, somos confrontados com as seguintes informações: “Para a Professora de Biologia Molecular da Universidade de Brown, Anne Fausto Sterling, cinco são os sexos e para o Professor de Sexualidade e médico brasileiro Ronaldo Pamplona da Costa eles são onze sexos”.
Neste contexto, como se adaptar a regra acima citada?
Mas, muitos são os questionamentos, não restritamente à “quantidade de sexos” existentes, mas também quanto ao momento e à própria necessidade de sua especificação.
Com efeito, deve o sexo “jurídico”, também chamado “legal ou civil” ser imposto ao ser humano, no momento do seu nascimento, independente da verdadeira identidade biológica que possa ser adiante constatada?
Não se viola o princípio fundamental da dignidade humana determinar-se o sexo por uma regra jurídica?
Em memorável palestra proferida no 1º encontro luso-brasileiro do Direito das Famílias, ocorrida em Lisboa nos dias 15 e 16 de fevereiro de 2016, o Professor Flavio Louzada, ao discorrer sobre o tema “A intersexualidade e o Direito Brasileiro” afirmou com inegável autoridade:
“mas certo é que, neste exíguo prazo de 15 dias, não é possível que o neonato possa expressar o gênero que deseja seguir! O registro se faz pelo sexo morfológico da pessoa, causando sérios transtornos àqueles que, com o passar do tempo descobrem (às vezes ainda crianças), que o gênero no qual se veem não corresponde com aquele que consta na certidão de nascimento!”
Quid iuris?
Pelo nome é possível se reconhecer a existência da pessoa humana como sujeito de direitos e obrigações, mas não necessariamente pelo sexo jurídico, porque, como se colhe em Aline Dias de França, especialista em Direito Civil pela Universidade de Mackenzie: “afinal uma pessoa só pode ser do sexo feminino ou masculino e para isto basta verificar a genitália da pessoa, certo? Errado, a ciência tem demonstrado que para a definição do sexo outros fatores além do biológico influem e não basta a presença de vagina e ovários, ou testículos e pênis para tal determinação”, ou seja, hoje se reconhece que não é apenas o sexo gonodal ou morfológico que indica que a pessoa é feminina ou masculina!
Neste ponto a ciência vai de encontro ao pré-estabelecido sexo legal.
A sexualidade humana é composta de vários componentes, a saber, a biológica, a psicológica e a sexual.
Para melhor entender a complexidade que o sexo de uma pessoa pode ter, preleciona o doutor Jorge Sequeiros, diretor do Centro de Genética Preditiva e Preventiva do Instituto de Biologia Molecular e Celular da Universidade do Porto que:
“Há um sexo genético, o que quer dizer que há genes masculinizantes e feminizantes. Estes genes determinam o sexo gonádico – as gónadas, que vão evoluir no sentido de testículos ou ovários, e produzem hormônios masculinos e femininos, o que determina o sexo hormonal. E o sexo hormonal determina o desenvolvimento dos genitais internos e externos, que por sua vez vão determinar o sexo civil. Pode haver interferências, que fazem com que haja contradições entre os vários níveis de sexo.”
Evidencia-se, portanto, que, não raras vezes, o sexo psíquico do indivíduo – aquele que a pessoa sente como sendo o seu – não corresponde ao sexo morfológico (sexo aparente) e/ou gonodal. Insere-que aqui não apenas questões relativas aos transgêneros, mas também – e de forma acentuada – aos intersexos, que nascem dispondo de características tanto masculinas como femininas e que são definidos por um ou outro gênero, não segundo sua vontade, mas de seus pais ou por médicos.
A precisa correspondência do certo não há como ser aferida no exíguo prazo que a lei estabelece para o registro do neonato, sob pena de permitir situações com a acima apontada, em flagrante afronta à própria dignidade do indivíduo que terá que conviver anos a fio sendo definido por um gênero ao qual não corresponde seu sexo psico-social.
Nesta linha o Professor Flávio Louzada afirma em sua palestra que “a Lei de Registros Públicos insere verdadeira barreira à concretização dos supracitados direitos da personalidade ao determinar o imediato registro dos recém-nascidos com nome e sexo, não contemplando a situação da indefinição sexual provisória”.
A importância de tais estudos já começou a ser reconhecida por legislações europeias, sendo que a Alemanha é o primeiro país europeu a reconhecer o terceiro gênero! Uma lei de novembro de 2013 já autoriza que os bebês sejam registrados sem a identificação de “menino” ou “menina” tudo a fim de que, em momento oportuno, possam a vir optar, eles próprios, à definição que melhor lhes concerne.
Nos passaportes, ao invés de “M” ou “F” entra um X na área reservada ao sexo.
De se anotar, por sua relevância, uma decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça em Brasília, de outubro de 2009, no julgamento da Resp 1.008.398, onde a eminente relatora Ministra Nancy Andrighi destacou “Quando se iniciou a obrigatoriedade de registro civil, a distinção entre os dois sexos era feita baseada na conformação da genitália. Hoje, com o desenvolvimento científico e tecnológico, existem vários outros elementos identificadores do sexo, razão pela qual a definição de gênero não pode mais ser limitada somente ao sexo aparente. Todo um conjunto de fatores, tanto psicológicos quanto biológicos, culturais e familiares, devem ser considerados”.
Consigne-se que o objetivo do presente trabalho não está limitado à possibilidade de alteração do nome e sexo no registro civil.
O objetivo é de se antecipar aos problemas advindos da determinação do sexo no momento do registro de nascimento. E, em elucubrações mais aprofundadas, de precisar se a própria determinação do sexo civil – em qualquer momento – se apresenta, de fato, relevante no estado democrático de direito em que vivemos perante o qual se busca obter a isonomia substancial entre os indivíduos.
As questões que podem exsurgir da ausência desta predeterminação são pontuais e menos complexas para efeito de solução.
Por exemplo, como definir o ingresso de jovens em colégios que se especializam em receber estudantes ou só masculinos ou só femininos? Ou no caso dos banheiros públicos? Bastaria a identificação pelos genitais externos?
E para o serviço militar, embora as mulheres estejam isentas apenas parcialmente (Lei n. 4.375/1964, art. 2º § 2º)?
O problema é inocorrente na área previdenciária ou na do direito trabalhista (CLT art. 373A).
Na verdade, sobre este tema, a regra maior é a da Constituição Federal, chamada Bíblia Política por J.J. Canotilho, não por outro motivo senão por ser a norma que alberga os primados máximos do Estado Democrático de Direitos:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
E prossegue a Carta:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
1 – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição; (grifou-se)
É evidente que esta matéria, em razão de sua complexidade, demanda a intervenção de várias áreas, além do Direito, tais como, a psiquiatria, a psicologia, a sociologia, a medicina etc., cujos profissionais devem ser conclamados a analisar e colaborar com as soluções necessárias.
CONCLUSÃO
Com tais considerações e apoio nos elementos colhidos e aqui referidos, a proposta que se apresenta é de alteração na Lei de Registros Públicos, no que se refere ao sexo na certidão de nascimento, para excluir a obrigatoriedade de indicação do mesmo.
Roberto Wider
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