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Capacidade legal da pessoa com deficiência
Pessoas com deficiência mental ou intelectual deixaram de ser consideradas absolutamente ou relativamente incapazes. O CC/1916 qualificava-as como “loucos de todo o gênero” e as impedia, pela interdição, de praticar pessoalmente qualquer ato da vida civil. O CC/2002 atenuou essa discriminatória qualificação, mas manteve a incapacidade absoluta para pessoas com “enfermidade ou deficiência mental”, sem o necessário discernimento para a prática desses atos, sujeitas a interdição e curatelas permanentes.
A qualificação de pessoa com deficiência mental ou intelectual nunca foi objeto de consenso entre os especialistas, cujos tratamentos restritivos e invasivos passaram a ser considerados degradantes ou inúteis, com reflexo no campo do direito. O estágio atual do conhecimento científico das dimensões da mente ou psique nega antigos paradigmas sobre sanidade mental e previne os riscos de sua manipulação, o que levou, inclusive, ao fechamento dos hospitais psiquiátricos. O maior do Brasil foi o Colônia, que começou a funcionar em 1903, em Barbacena (MG). Lá, pelo menos 60 mil pessoas perderam a vida numa trajetória de quase um século de desrespeitos aos direitos humanos.
A história da loucura é marcada por abusos e intrusões na autonomia das pessoas. O comportamento social, político ou ético desviante não significa deficiência ou enfermidade mental, mas exercício livre de escolhas, ainda que colidam com as que dominam na sociedade. Em verdade, as grandes mudanças sociais e os avanços do conhecimento foram provocados por pessoas que se desviaram dos comportamentos e valores comuns.
Os resultados das pesquisas científicas desse ainda desconhecido campo da mente revelam que a incapacidade civil, fundada em suposta incapacidade mental, não protegia a pessoa. Algumas pessoas têm maior adaptabilidade ao excesso de estímulos e repressões que a vida atual traz e exige; outras, menos. Tome-se o exemplo do denominado “transtorno bipolar”, que acomete algumas pessoas, que apresentam variações extremas e, às vezes, repentinas de humor, sem razão aparente. Ora estão alegres, expansivas e criativas; ora estão deprimidas ou agressivas. São conhecidos exemplos de pessoas célebres, que sofreram desse transtorno, de origem exclusivamente mental, mas que não as incapacitaram: Abraham Lincoln, Agatha Christie, Virginia Woolf, Ernest Hemingway, Tchaikowski, Mozart, Paul Gauguin, Platão, Isaac Newton, Ulisses Guimarães.
A Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2007, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 186, de 2008, e incorporada ao direito brasileiro pelo Decreto n. 6.949, de 2009, considera pessoas com deficiência (e não “portadoras de deficiência”) as que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. O art. 12 da Convenção estabelece que as pessoas com deficiência “gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”; essa capacidade legal é distinta da capacidade civil em geral, disciplinada no Código Civil brasileiro, estendendo-se à capacidade de exercício, inclusive em relação às pessoas com deficiência mental ou intelectual. A Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência) regulamentou a Convenção no Brasil.
A interpretação das normas do Código Civil e das leis especiais deve ser feita em conformidade com as normas da Convenção, pois esta prevalece sobre aquelas, tendo em vista o que dispõe o art. 5º, § 3º, da Constituição Federal, sobre a equivalência dos tratados e convenções sobre direitos humanos às emendas constitucionais.
Após o início de vigência da Convenção, no direito brasileiro, em 2009, portanto, a pessoa com deficiência não mais se inclui entre os absolutamente incapazes de exercício dos direitos. A Convenção, nessa matéria, já tinha derrogado o Código Civil. A Lei n.13.105/2015 tornou explícita essa derrogação, ao estabelecer, em nova redação ao art. 3º do Código Civil, que são absolutamente incapazes apenas os menores de dezesseis anos, excluindo as pessoas “com enfermidade ou deficiência mental”. Também suprimiu da incapacidade absoluta os que, por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade, tornando-os relativamente incapazes.
A Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (art. 12) assegura que todas as medidas relativas ao exercício da capacidade legal das pessoas com deficiência, inclusive mental, incluam “salvaguardas apropriadas” que assegurem as medidas relativas ao exercício dos direitos, de modo a que a vontade e as preferências da pessoa sejam isentas de conflito de interesses e de influência indevida, sejam proporcionais e apropriadas às circunstâncias da pessoa, se apliquem pelo período mais curto possível e sejam submetidas à revisão regular pela autoridade judiciária competente. Fê-lo a Lei n. 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), mediante o instituto da curatela temporária e específica e a tomada de decisão apoiada. As salvaguardas serão proporcionais ao grau em que tais medidas afetarem os direitos e interesses da pessoa com deficiência. Salvaguarda não é restrição de direito e é estabelecida sempre em favor da pessoa com deficiência e de acordo com o princípio da beneficência. A Convenção explicita, sem configurar enumeração taxativa, que a pessoa com deficiência pode possuir ou herdar bens, controlar as próprias finanças e ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro.
A curatela, ao contrário da interdição total anterior, deve ser, de acordo com o art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso “e durará o menor tempo possível”. Tem natureza, portanto, de medida protetiva temporária para determinados fins e não de interdição de exercício de direitos, diferentemente da natureza anterior. Para a pessoa com deficiência, não há curatela permanente, porque, além do requisito da temporalidade, o § 3º do art. 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, alude aos requisitos de proporcionalidade e excepcionalidade, relativamente “às necessidades e circunstâncias de cada caso”.
Essa específica curatela apenas afetará os negócios jurídicos relacionados aos direitos de natureza patrimonial. A curatela não alcança nem restringe os direitos de família (inclusive de se casar, de ter filhos e exercer os direitos da parentalidade), do trabalho, eleitoral (de votar e ser votado), de ser testemunha e de obter documentos oficiais de interesse da pessoa com deficiência. O caráter de excepcionalidade impõe ao juiz a obrigatoriedade de fazer constar da sentença as razões e motivações para a curatela específica e seu tempo de duração.
A capacidade legal da pessoa com deficiência não se confunde com a capacidade civil, nem com as hipóteses de incapacidades absoluta e relativa, estas especificadas nos arts. 3º e 4º do Código Civil. São duas modalidades de capacidade jurídica, que transitam paralelamente, sem se confundirem: a capacidade civil geral, prevista no Código Civil, e a capacidade geral específica, prevista no Estatuto da Pessoa com Deficiência. A pessoa com deficiência não é absolutamente incapaz nem relativamente incapaz. É dotada de capacidade legal irrestrita para os atos jurídicos não patrimoniais e de capacidade legal restrita para os atos jurídicos patrimoniais, para os quais fica sujeita a curatela temporária e específica, sem interdição transitória ou permanente, ou a tomada de decisão apoiada.
A pessoa com deficiência é regulada por lei especial, não se lhe aplicando as regras gerais do Código Civil concernentes às incapacidades absoluta e relativa. Não lhe é aplicável o inciso III do art. 4º do Código Civil, porque não se enquadra na espécie ali configurada de incapacidade relativa aos que, “por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade”. A pessoa com deficiência pode exprimir sua vontade, que é tutelada pela legislação especial, sem imputação de invalidade.
Para o exercício da capacidade legal, a pessoa com deficiência poderá, se assim quiser, adotar o procedimento de tomada de decisão apoiada, escolhendo duas ou mais pessoas consideradas idôneas e que gozem de sua confiança, com o objetivo de que lhe aconselhem, orientem e apoiem na celebração ou não de negócios jurídicos, de natureza patrimonial. Com esse procedimento não há perda ou limitação da capacidade legal, porque tem por escopo reforçar a segurança e a validade dos negócios jurídicos, em relação ao apoiado e a terceiros, sendo que estes poderão solicitar que os apoiadores também assinem os atos.
A tomada de decisão apoiada não poderá ter por objeto a realização de atos e negócios jurídicos não patrimoniais (por exemplo, reconhecimento voluntário de filho), porque para estes a pessoa com deficiência não depende de curatela ou apoio. Pode ser útil, por exemplo, para que os apoiadores acompanhem o apoiado na celebração, em cartório de notas, de escritura pública de compra e venda de imóveis ou de testamento público.A idade avançada não é por si deficiência ou enfermidade mental. A pessoa pode viver muito tempo como idosa, sem qualquer comprometimento de sua higidez mental. Todos os órgãos da pessoa, inclusive o cérebro, sofrem mutações com o passar dos anos, reduzindo-se as habilidades antes desenvolvidas. Mas essa circunstância natural não é suficiente para suprimir ou reduzir a capacidade de exercício da pessoa, se permanece nela a faculdade de discernir. O Estatuto do Idoso (Lei n. 10.741/2003) considera idoso a pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos e tem por fito sua proteção e não a redução da sua capacidade de exercício, pois o “envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção um direito social” (art. 8º).
Nem mesmo quando houver perda progressiva da integridade mental e intelectual (exemplo, doença de Alzheimer), a curatela será permanente. Deverá ser temporária, para abranger tempo suficiente à realização de negócios jurídicos no interesse da pessoa com deficiência, renovando-se sempre que necessário, ou não.
Os atos ou negócios jurídicos de natureza patrimonial, realizados pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, são ineficazes juridicamente, se não tiver havido a intervenção judicial que instituiu a curatela ou homologou a tomada de decisão apoiada. O ato ou negócio jurídico existem no mundo do direito, porque houve manifestação de vontade da pessoa com deficiência, mercê de sua capacidade legal específica, são válidos se observaram a forma exigida em lei e tiverem objeto lícito e possível, porém não produzem efeitos jurídicos.
Paulo Lôbo[1]
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