Artigos
Da extrajudicialização da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade
Da extrajudicialização da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade.[1]
Flávio Tartuce[2]
No último dia 15 de março de 2017, o Corregedor-Geral de Justiça e Ministro do STJ João Otávio de Noronha manifestou-se sobre pedido de providências formulado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, solicitando a regulamentação, junto aos Cartórios de Registro Civil, do registro extrajudicial da parentalidade socioafetiva (pedido de providências n. 0002653-77.2015.2.00.0000, em curso perante o Conselho Nacional de Justiça).
De acordo com a petição do IBDFAM, embora ainda não exista regramento legal sobre o tema, já há o pleno reconhecimento jurídico da parentalidade socioafetiva, tendo alguns Estados – caso do Amazonas, Ceará, Pernambuco e Santa Catarina –, regulamentado a questão por meio de provimentos de seus Tribunais de Justiça, que admitem o reconhecimento do vínculo socioafetivo diretamente no Cartório de Registro Civil, sem a necessidade de uma prévia ação judicial para tanto.
Após a manifestação das Corregedorias Estaduais e da Associação Nacional dos Registradores Civis, o Ministro Corregedor, em boa hora, determinou a formação de grupo de trabalho, para que seja elaborada norma administrativa sobre o tema. Nos termos do trecho final de sua decisão, “a filiação decorrente de vínculo exclusivamente socioafetivo é questão que encontra amparo na Constituição Federal, no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente. A jurisprudência dos Tribunais estaduais e superiores já admite como uma realidade a possibilidade de registro da paternidade socioafetiva. Por sua vez, a existência de diversos provimentos editados pelos Tribunais de Justiça dos estados da federação, sem a respectiva orientação geral por parte dessa Corregedoria Nacional de Justiça, pode suscitar dúvidas e ameaçar a segurança jurídica dos atos de reconhecimento de paternidade registrados perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais”. Assim, concluiu que “impõe-se, portanto, a edição de Provimento com vistas a esclarecer e orientar a execução dos serviços extrajudiciais sobre a matéria discutida nestes autos. No entanto, tendo sido instituído por esta Corregedoria Nacional de Justiça grupo de trabalho para o fim de elaboração de normativa mínima aos serviços de notas, protesto e registros públicos (Portarias n. 66, de 26 de novembro de 2014 e n. 65, de 21 de novembro de 2014) – deve a matéria ora analisada ser submetida a sua apreciação da comissão para eventual inclusão da sugestão objeto do presente pedido de providências dentre os temas que deverão ser regulamentados após as conclusões dos trabalhos da aludida equipe. Ante o exposto, encaminhe-se cópia da presente decisão ao grupo de trabalho para que, sendo possível, inclua a proposta provimento para regulamentar o registro civil voluntário da paternidade socioafetiva perante os Oficiais de Registro Civil de Pessoas Naturais na normativa mínima. Determino a suspensão do presente expediente pelo prazo de 90 (noventa) dias. Transcorrido o prazo, voltem conclusos. Cumpra-se”.
Eis aqui um passo determinante para a extrajudicialização do Direito de Família, salutar caminho já tratado por mim neste canal. Como antes destaquei, o Novo Código de Processo Civil, em vigor no País desde o dia 18 de março de 2016, tem como um dos seus nortes principiológicos a desjudicialização dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o Estatuto Processual emergente que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, enuncia-se que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do CPC/2015).
O Ministro Noronha cita, para a urgente necessidade de se elaborar o provimento geral, toda a evolução doutrinária e jurisprudencial no reconhecimento da parentalidade socioafetiva. Como é cediço, a tese remonta ao brilhante artigo de João Baptista Villela, então Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, escrito em 1979, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura afirmar a premissa segundo a qual vínculo familiar constitui mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. As palavras do jurista merecem destaque: “a paternidade em si mesma não é um fato da natureza, mas um fato cultural. Embora a coabitação sexual, da qual pode resultar gravidez, seja fonte de responsabilidade civil, a paternidade, enquanto tal, só nasce de uma decisão espontânea. Tanto no registro histórico como no tendencial, a paternidade reside antes no serviço e no amor que na procriação. As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso, para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável esforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Na adoção, pelo seu caráter afetivo, tem-se a prefigura da paternidade do futuro, que radica essencialmente a ideia de liberdade” (VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Separada da Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XXVII, n. 21 (nova fase), maio 1979).
A premissa afirmada é confirmação de um antigo dito popular, emanado da expressão pai é quem cria. Representa clara valorização do afeto como valor jurídico, no sentido de interação entre as pessoas. Na doutrina nacional, o tema é muito bem tratado, entre outros, por Luiz Edson Fachin, Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Paulo Luiz Netto Lôbo, Maria Berenice Dias, Rodrigo da Cunha Pereira, Álvaro Villaça Azevedo, Maria Helena Diniz, José Fernando Simão, Giselle Groeninga, Silvio de Salvo Venosa, Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Ricardo Calderón.
Nas tão prestigiadas Jornadas de Direito Civil – citadas na decisão –, foram elaborados enunciados doutrinários que reconhecem a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, preenchendo o termo “outra origem”, que consta do art. 1.593 do Código Civil Brasileiro. Conforme o Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil (2002), “o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho”. Nos termos do Enunciado 108, do mesmo evento, “no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também socioafetiva”. Para não se deixar dúvida sobre a existência de parentesco civil em casos tais, o Enunciado 256 da III Jornada (2004), preceitua que “a posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil”. Por fim, o Enunciado 339 da IV Jornada (2006), afastando a possibilidade de rompimento do reconhecimento espontâneo da parentalidade – a denominada adoção à brasileira –, preceitua: “a paternidade socioafetiva, calcada na vontade livre, não pode ser rompida em detrimento do melhor interesse do filho”.
No âmbito da jurisprudência, o Ministro Noronha cita vários precedentes do Superior Tribunal de Justiça, de reconhecimento de efeitos da parentalidade socioafetiva, especialmente na linha do último enunciado doutrinário. Destaca, ainda, o julgado do Supremo Tribunal Federal de setembro de 2016, em repercussão geral, que firmou a seguinte tese sobre o assunto: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”; O último precedente, como tenho destacado, além de colocar a filiação socioafetiva em posição de igualdade frente à filiação biológica, reconheceu amplamente efeitos jurídicos à multiparentalidade, com a possibilidade de vínculos múltiplos, o que também deve ser abrangido pela norma administrativa a ser elaborada.
Diante dessa realidade, indagou e respondeu o Ministro Corregedor: “se a omissão do dever de cuidado é repelida pelo Poder Judiciário e pelo Legislador, porque as relações entre aquele pai que cuida e que exerce de fato a parentalidade, de forma voluntária, não pode ser reconhecida juridicamente pelo sistema? O Poder Judiciário, mais uma vez, não se esquivou da realidade e nem do novo. Definiu que o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana exige que sejam reconhecidos outros modelos familiares diversos da concepção original, acolhendo o vínculo baseado na relação afetiva e no estado de posse de pai e filho. Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (Informativo de Jurisprudência n. 840) já decidiu que ‘o espectro legal deve acolher tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos quanto aqueles originados da ascendência biológica, por imposição do princípio da paternidade responsável, enunciado expressamente no art. 226, § 7º, CF (...)” (RE 898060/SC, rel. Ministro Luiz Fux, julgamento em 21 e 22-9-2016)”. De fato, é o momento de se dar uma nota final a essa bela canção, concretizando a possibilidade não só do reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como também da multiparentalidade perante os Cartórios de Registro Civil.
Ao final, a decisão acaba por fixar alguns parâmetros que devem ser seguidos pelo grupo de trabalho do Conselho Nacional de Justiça. O primeiro deles é que o reconhecimento da paternidade socioafetiva perante o Cartório de Registro Civil requer a submissão a certos requisitos formais. Deve-se exigir mais do que a mera comprovação do estado de posse de filho e da vontade livre e desimpedida daquele que se declara pai ou mãe. O Oficial deve estar atento para a situação fática dos envolvidos, conforma aponta o Ministro Noronha. De acordo com suas palavras, “estranho seria, por exemplo, se o Oficial de Registro Civil e de Pessoas Naturais fosse instado a proceder ao reconhecimento da paternidade socioafetiva de pai menor de idade ou que não possui uma diferença razoável de idade com o filho que pretende acolher como seu ou de irmão em relação a outro. O reconhecimento da paternidade socioafetiva sem que sejam atendidos certos requisitos formais também poderia abrir a possibilidade de que se regularizassem fraudes, sequestros, comércio de crianças (‘adoção pronta’, em especial de crianças de tenra idade), além de concretizar a burla ao cadastro nacional de adoção”.
Nesse contexto, destaca o julgador a possibilidade de se aplicar analogicamente algumas regras existentes para a adoção – apesar de os institutos não se confundirem –, tais como a idade mínima de 18 anos daquele que reconhece o filho socioafetivo, a vedação de reconhecimento por ascendentes e irmãos do reconhecido, a diferença mínima de 16 anos entre as partes envolvidas e o consentimento da mãe e do filho maior de doze anos, o que penso ser dispensável no caso de o reconhecido ser maior de idade. Um outro requisito a ser considerado é que, em caso de falecimento ou circunstância especial que impeça o expresso consentimento da mãe ou do filho, o procedimento deverá seguir o trâmite judicial. Por fim, seria necessária a demonstração inequívoca da existência de relação de pai (ou mãe) e filho, com base na afetividade.
Como se percebe, algumas balizas importantes foram apontadas para que essa urgente norma administrativa seja elaborada, pondo fim a um anseio teórico e prático que já existe há muito tempo. Espero, assim, que até o final deste ano de 2017 a extrajudicialização, não só da parentalidade socioafetiva como também na multiparentalidade, seja finalmente efetivada em nosso País.
[1] Coluna do Informativo Migalhas do mês de março de 2017.
[2] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo. Professor e Coordenador dos cursos de pós-graduação lato sensu da Escola Paulista de Direito. Professor da Rede LFG e do Curso CPJUR. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM