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Direito precisa enfrentar abusos criminógenos de comportamento
Jones Figueirêdo Alves
A insensatez de determinadas atitudes, as práticas lesivas observadas no cotidiano a partir de atos de intolerância ou de discursos de ódio, a falta de sensibilidade moral que acarreta individualismos exacerbados ou posturas antissociais, devem ser reconhecidos como abusos criminógenos de comportamento que o direito, como ordem jurídica, identifica e precisa enfrentar.
01. Na segunda-feira passada (06.02.17) a Corte Especial do Tribunal de Justiça de Pernambuco em decisão paradigma definiu, com diretiva principiológica, que as relações parentais antagônicas entre filhos e pais, notadamente envolvendo pessoa idosa, com características potenciais de sua vitimização, nutrem fatores graves que indicam ou sugerem abusos criminógenos, reclamando por isso mesmo a competência do juízo criminal. (Conflito de Jurisdição nº 0432710-6, Relator Des. Eurico de Barros Correia Filho).
Entendimento compartilhado e uníssono do TJPE assinalou aquela competência, para as adequadas medidas protetivas e preventivas, com destaque ao artigo 4º do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741, de 01.10.2003), segundo o qual “nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei”.
E mais: certo que aquelas medidas de proteção, designadamente as profiláticas, devem ser aplicáveis, sempre que direitos do idoso forem ameaçados ou violados, por falta, omissão ou abuso da família (art. 43, I, Estatuto), mais se aperfeiçoa a competência do juízo criminal para a análise do caso concreto, sobretudo quando os abusos criminógenos repercutem em níveis de discriminação, desdenho, humilhação ou menosprezo da pessoa idosa (art. 96, e § 1º, Estatuto) além de situações outras. Em ser assim, a postura confrontacional do filho, com prática de atos abusivos que mais vulneram o pai idoso, pode se inserir materializada em uma das dezoito figuras penais previstas na lei de regência.
02. Atitudes odiosas periclitam o direito alheio e comprometem a dignidade de outrem, quando pessoas ou grupos se colocam, nas mídias sociais, protagonistas de ações discriminatórias, hostilidades gratuitas ou de divergências ofensivas, sob pretexto de pretenso controle social.
Assim, condutas violadoras de direitos e de ética social, as transgressões comportamentais por suas variadas espécies, são observadas pelo direito com sua carga de potencialidade criminógena, a exigir um diálogo permanente com os institutos e tipos penais, sobretudo na seara de uma política judiciária de profilaxia criminal.
Nessa toada, o Tribunal de Justiça de São Paulo avaliando mensagens disponibilizadas em aplicativo WhatsApp para celular, admitiu-as difamatórias, no efeito de responsabilização do seu emissor. O relator desembargador Silvério da Silva, confirmou a sentença da juíza Tamara Hochgreb Matos, da 24.ª Vara Cível da Capital, reconhecendo que “a conduta do réu extrapolou o dever de urbanidade e respeito à intimidade” (TJSP - 8ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1111617-17.2015.8.26.0100, j. em 13.01.2017). Evidente que, na hipótese do julgado, uma única ação abusiva, no espectro de seus efeitos, alcançou repercussões no direito privado (em tema de responsabilidade civil) e no direito criminal, como ramo do direito público.
03. Exemplo mais veemente de abusos comportamentais, na esfera do direito de família, ocorre com a prática de atos de alienação parental, descritos de forma exemplificativa pela Lei nº 12.318, de 26.08.2010 (artigo 2º, parágrafo único).
É certo que, conceitualmente, considera-se, nos termos da lei, ato de alienação parental “a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este (art. 2º, Lei nº 12.318/10).
Ao tempo que a prática do ato alienador fere direito fundamental da criança e do adolescente de uma convivência saudável, prejudicando as realizações afetivas nas relações com o genitor alienado e com o grupo familiar (art. 3º), convém referir que, em posição contraposta, genitor, familiares deste ou avós, também figuram como vítimas do ato, a exemplo da falsa denúncia para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou o adolescente (art. 2º, § único, inciso VI). Ou seja, muitos poderão ser vítimas diante do ato do genitor alienador, para além do próprio filho, no núcleo dos atos típicos da alienação parental como atos abusivos criminógenos.
Nesse conduto, cumpre anotar que o artigo 10 da Lei nº Lei nº 12.318/10, foi vetado, quando pretendeu, na redação que lhe foi dada, introduzir parágrafo único ao art. 226 da Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), ao considerar incorrer na mesma pena (de seis meses a dois anos de detenção) ao impedimento ou embaraço da ação de autoridade judiciária, de membro do Conselho Tutelar ou do Ministério Público no exercício das funções previstas na Lei, quem apresente perante aqueles um relato falso cujo teor possa ensejar restrição à convivência de criança ou adolescente com o genitor.
As razões do veto presidencial tiveram a premissa de base seguinte:
“O Estatuto da Criança e do Adolescente já contempla mecanismos de punição suficientes para inibir os efeitos da alienação parental, como a inversão da guarda, multa e até mesmo a suspensão da autoridade parental. Assim, não se mostra necessária a inclusão de sanção de natureza penal, cujos efeitos poderão ser prejudiciais à criança e ao adolescente, detentores dos direitos que se pretende assegurar com o projeto”.
Bem é certo, porém, que uma vez caracterizados atos típicos de alienação parental ou qualquer conduta que dificulte a convivência de criança e adolescente com o genitor, poderá o juiz, cumulativamente ou não, adotar as medidas pertinentes ao caso, segundo a sua gravidade, “sem prejuízo da decorrente responsabilidade civil ou criminal” (art. 6º, Lei 12.318/10).
Ora. Iniludível considerar, daí, que a inserção da referida cláusula no dispositivo, no que diz respeito aos efeitos criminogênicos do determinado ato de alienação parental, torna impositivo o diálogo normativo com o direito penal, designadamente em função do que determina o artigo 40 do Código de Processo Penal (“Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia”.) No ponto, assinala-se que os crimes previstos pela Lei nº 8.069/1990 são todos de ação pública incondicionada (art. 227), definindo o Estatuto os crimes em espécie (artigos 228/244), cumprindo atentar, na análise do caso concreto, a devida repercussão penal, quando couber.
Em seu “locus” próprio, a conduta outra extraída da cláusula “qualquer conduta” contida no mesmo artigo 6º da Lei de Alienação Parental (Lei nº 12.318/10), importa ser considerada na atipicidade de determinados atos de alienação, em face da forma exemplificativa constante do referido artigo, nos sete incisos que ele oferece. Mais precisamente, outras condutas, além dos atos caracterizados como típicos de alienação parental, poderão surgir no universo conflituoso dos atos abusivos, em práticas outras da alienação, sem perda de identidade com seus aspectos criminógenos, precisando do tratamento jurisdicional adequado. Diante de tais ocorrências de condutas atípicas, há um catálogo aberto para elas.
Demais disso, Projeto de Lei nº 4.488/2016, de 10.02.2016, acrescenta parágrafos e incisos ao art. 3º da Lei nº12.318/10, criminalizando a alienação parental e definindo, ainda, as suas circunstancias agravantes, buscando inibir com sanções penais ali impostas os reiterados atos alienadores, que ocorrem em cerca de 80%, segundo o proponente, nas relações de pais separados, o denominado “casal parental”, que subsiste após a separação, diante da existência de filhos comuns. Mais recentemente, na tramitação legislativa ordinária do projeto, foi requerida (11.07.16) a realização de audiência pública para instruir a sua relatoria, estando o PL perante a Comissão de Seguridade e Social e Família da Câmara Federal.
04. Abusos criminógenos de comportamento também representam os atos abusivos continuados, intencionais e repetitivos, situados na intimidação sistemática, que sem motivo evidente, são praticados por pessoa ou grupo, contra uma ou mais pessoas. Estes atos comportamentais estão nas práticas denominadas como “bullyng”, tendo a intimidação sistemática sido classificada, conforme as ações praticadas, pela Lei nº 13.185, de 06.11.2015, apenas no efeito de instituir programa de combate a essas práticas. Na dicção da lei, a intimidação sistemática (“bullyng”) caracteriza-se quando há violência física ou psicológica em ato de intimidação, humilhação ou discriminação, envolvendo situações outras como apelidos pejorativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado e, até, pilhérias.
Uma cultura individualista que tem dominado as sociedades atuais, de autossuficiência exacerbada e de carência de solidarismo social tem produzido, em práticas recorrentes, o bullyng que tem entre os objetivos mais acendrados, que funcionalizam a sua prática, a discriminação, a perseguição e a exclusão da vítima do seu grupo social.
As suas variadas formas de manifestação incluem a perseguição e os atos ilícitos, mais das vezes criminalizados, quando por sua natureza, ocorrem nitidamente como crimes de ofensa à honra, objetiva ou subjetiva, introjetados de outros componentes de intimidação e de ameaça. Verifica-se, todavia, que os constrangimentos físicos ou psicológicos elencados na lei programática de combate à intimidação sistemática não são tipificados como ilícitos penais, à falta de uma tipologia penal adequada.
Neste ser assim, projetos legislativos em tramitação cuidam de enfatizar os aspectos criminógenos do “bullyng”, dispondo sobre:
(i) “intimidação vexatória”, com suas qualificadoras, sob os acréscimos alfanuméricos ao artigo 136 do Código Penal, a tipificar penalmente o fenômeno social do “bullyng”, prevendo o agravamento de pena quando a prática de intimidação ocorre na internet (“cyberbullyng”) bem como quando há concurso de agentes. E, ainda, introduzindo novo inciso ao parágrafo único do art. 122 do Código Penal, em hipótese de o suicídio resultar de atos de intimidação vexatória (PL nº 1494/2011);
(ii) “intimidação escolar”, tipificando como crime contra a honra a intimidação feita em razão de atividade escolar ou em ambiente de ensino, cometida contra a pessoa ou um grupo delas, por um indivíduo intimidador ou grupo deles, executadas em relação desigual de poder (PL nº 1.011/2011);
(iii) a intimidação do trote estudantil, tipificando como crime a conduta de constranger alguém a participar de trote estudantil como ritual de ingresso no ensino superior e, em alguns casos, no ensino médio (PL 7.609/2014).
Como se observa, enquadramentos penais objetivam reconhecer determinados atos abusivos criminógenos por suas condutas nitidamente agressivas que sob a égide da banalização do mal, ainda não se consideram como práticas criminosas.
Lado outro, tramita projeto legislativo no Senado (PLS nº 28/2016) ampliando a incidência da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), para incluir aqueles que em convivência de proximidade com a vítima, como sucede com os vizinhos de moradia, pratiquem contra ela qualquer ilicitude tipificada na lei de regência. Os crimes de proximidade são aqueles onde o agressor tem convivência com a vítima por circunstancias dos locais de moradia, conjunto habitacional, edifício ou similares, devendo preponderar, nas suas espécies, os elementos dos tipos penais observados pela Lei nº 11.340/16, para os efeitos do alcance da incidência da proximidade.
Em realidade fática das situações abusivas comportamentais, tem-se a proficiência de casos que, a rigor, informam condutas ainda não tipificadas, de forma especifica, pelo ordenamento penal. Muito embora, reconhecido seja que os bens juridicamente afetados, possam constituir bens jurídicos de interesse penal.
Afinal, todo abuso comportamental flerta com a criminalidade.
Fonte: Consultor Jurídico, - CONJUR, 19.02.2017
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O autor é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa.
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