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Os embriões de Sofia Vergara
Em 22 de Maio de 2015 escrevi o primeiro post sobre o imbróglio Hollywoodiano. A bela atriz colombiana Sofia Vergara – mais conhecida pela série Modern Family -, protagoniza um evento bioético capaz de comprovar que a vida imita a arte. O seu ex-noivo Nick Loeb, insiste em dar prosseguimento ao uso dos embriões que congelou com a artista e arcar sozinho com os custos de criar os bebês. Eles fecundaram dois embriões femininos que estão congelados em uma clínica em Los Angeles, com a ideia de que fossem implantados em uma mulher que levasse a gestação adiante. Depois de tentativas fracassadas, o casal se separou em 2014, mas dois embriões femininos permanecem na clínica e Vergara deseja que assim permaneça indefinidamente. Porém, Loeb iniciou uma cruzada pelo Judiciário, pleiteando a custódia dos dois embriões, para que sejam nidados mediante gestação de substituição e, posteriormente, por ele criados. O empresário alega razões morais para vetar a destruição dos embriões ou a permanência em um congelador.
Várias filigranas jurídicas envolvem o caso. Primeiramente, o casal havia assinado um contrato sobre o destino dos embriões, inclusive sobre a necessidade de que ambos estivessem de acordo em qualquer escolha a eles conferida, mas o documento não contemplou a possibilidade de uma separação do casal. Para Loeb, há uma espécie de subversão axiológica na discussão, pois se embriões são criados com o propósito de vida, devem ser tratados como seres vivos e não como propriedade. Ele ainda sofisma ao alegar que se a mulher tem o direito de levar uma gravidez a termo - mesmo que o homem a isso objete – inversamente, caso o homem se disponha a assumir todas as responsabilidades parentais, também terá o direito de levar os embriões a termo, mesmo que a mulher discorde. Ao contrário de aborto, pondera Nick, a controvérsia não se relaciona com o direito da mulher sobre o próprio corpo, mas com o direito do pai de proteger a vida de sua criança por nascer, pois a posição de Sofia, no sentido de manter os embriões "sentados em um freezer até o fim dos tempos", seria, segundo ele, "equivalente a matá-los".
Pois bem, após 1 ano e meio, a querela recebe um novo e eletrizante episódio. No início de dezembro a Justiça de Louisiana recebeu uma “right-to-live lawsuit” ajuizado por “Emma” e “Isabella” – nome concedido aos dois embriões femininos congelados – em face de Sofia Vergara. As demandantes buscam garantir a sua nidação e nascimento sendo posteriormente confiadas ao pai natural, que está disposto e desejoso que elas nasçam. O argumento nuclear das demandantes é o de que, por não terem nascido, foram privadas de uma legítima expectativa de confiança que foi criada para elas. Um terceiro demandante é o curador dos embriões, que atua em prol dos beneficiários. Por sinal, Louisiana é um Estado americano “pró-vida” onde até mesmo os embriões excedentários pré-nidados possuem o status jurídico de pessoas, como qualquer ser humano já nascido. Por ora, os embriões permanecem congelados em uma clínica de fertilização em Beverly Hills (Califórnia). Definitivamente, o Sr. Nick Loeb quer figurar na evolução do direito nos Estados Unidos. A demanda é um marco em termos de discussão sobre quando a vida começa; quem detém o poder de colocar o fim nela e, se homens tem os mesmos direitos que mulheres sobre embriões congelados.
Quando o episódio foi noticiado pela 1ª vez, eu comentei que se esse evento se passasse no Brasil algumas conclusões seriam sistematicamente extraídas, na ausência de um Estatuto do Embrião. Primeiramente, há um contrato que define o planejamento familiar do casal, no qual as partes optaram pelo consenso decisório, seja qual fosse a opção em relação aos embriões excedentários (nidação, adoção, crioconservação ou descarte). O pacto não previu a hipóteses de separação, porém o art. 112 do Código Civil valoriza a intenção das partes no momento interpretativo. Assim, se a deliberação conjunta era a tônica das decisões do casal, evidentemente a comunhão de vontades será o norte para qualquer deliberação posterior ao rompimento. No silêncio de qualquer dos interessados, o embrião permanecerá congelado. Em reforço, pelo artigo 1597, IV, do Código Civil, tratando-se de embriões excedentários - resultantes de fecundação homóloga - caso a conjugalidade pereça, qualquer tentativa subsequente de nidação dependerá de autorização prévia, por escrito, dos ex-cônjuges ou companheiros. Nesse sentido, o Enunciado n. 107 do CJF. Excepcionalmente, razões extraordinárias podem reverter essa perspectiva inicial. Nos EUA, em 2 casos, um na Pensilvânia e um em Illinois, mulheres obtiveram a custódia de embriões fertilizados apesar das objeções do ex-marido. Em ambos os casos, a mulher havia sofrido um tratamento de quimioterapia e os embriões eram sua última chance de ter um filho biológico. Juízes decidiram que o interesse da mulher em se tornar uma mãe superava o interesse do homem em não se tornar um pai.
Ocorre que o ajuizamento de uma demanda por Emma e Isabella contra Sofia Vergara remete a discussão a outro patamar. Qual é o status moral do embrião? Não esperem uma resposta pronta e acabada, seja por parte da religião, filosofia e muito menos do direito. Mesmo a teoria concepcionista - que amplamente tutela o nascituro – tão somente considera como pessoa o embrião que já foi nidado ao útero, sem, contudo, estender a tutela dos direitos da personalidade ao pré-embrião. A legislação do Estado da Louisiana transcende o viés concepcionista, pois estende ao embrião excedentário o status moral de pessoa, o quê em tese lhe faculta o direito ao nome (tal como consta da inicial do processo) e, fundamentalmente, o direito de acesso à concepção uterina e ao subsequente nascimento. Pragmaticamente, tendo a crer que o embrião crioconservado é uma vida humana que merece respeito, um ser humano em potencial. A ausência de personalidade não priva o embrião de deferência e tutela jurídica. Todavia, não me atrevo a lhe conceder a qualificação de “pessoa”, titular de situações jurídicas existenciais. Em termos de ponderação, isso significa que embriões crioconservados não são “comoddities”, objetos que se prestem a qualquer uso na ordem do mercado, como matéria-prima para cosméticos, ou mero descarte. Todavia, não fazem jus a um nome e a uma pretensão para constranger os ancestrais genéticos a prosseguir o processo pela via trifásica embrião/ nascituro/ pessoa nascida. Nesse estágio primário da vida, a autonomia reprodutiva e a intimidade da mãe merecem irrestrita proteção, sem que se cogite de um balanceamento de interesses que crie uma obrigação de aproveitamento de todos os embriões concedidos por fertilização artificial. Já tivemos oportunidade de tangenciar essa questão quando em 2008 que o Supremo Tribunal Federal decidiu quanto à improcedência da ADI 3510, reconhecendo a constitucionalidade das pesquisas com células tronco e da própria Lei de Biossegurança.
Disso tudo, tiro duas conclusões: primeira: a utilização da engenharia genética para produzir bebês sob encomenda deve sofrer certa moderação para que se evite o uso descontrolado da vida humana incipiente, evitando-se que o progresso da biomedicina represente um episódio da erosão de nossas sensibilidades humanas; segunda: partindo da premissa que no Brasil não há lugar para uma discussão como essa (aliás, pelo recente movimento no STF estamos à beira da legalização do aborto a despeito do Parlamento), já é hora do Congresso implementar o Estatuto do Embrião, para, dentre outras, pacificarmos questões como, qual dos progenitores poderá encerrar a vida humana incipiente e, em quais condições, bem como a colisão do consentimento do eventual “pai” com a denegação por parte da mulher que não quer se tornar mãe dos embriões congelados.
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