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O pai terreno de Jesus
Estou começando a fazer a atualização de meu livro, "Direito Brasileiro da Paternidade e da Filiação", que foi prefaciado pelo dr. João Baptista Villela, titular de Direito Civil da Universidade Federal de Minas Gerais, professor visitante da Universidade de Salamanca, da Universidade de Lisboa e de outros importantes centros de estudos. Trata-se de um humanista na verdadeira expressão da palavra, domina e fala fluentemente várias línguas estrangeiras, é um civilista emérito, cristão, jurista, um dos mais lúcidos pensadores de nosso país.
Alguém, numa reunião, comentou que ele estava doente e, preocupado, telefonei-lhe, esta semana. A ligação foi atendida por seu filho, Eduardo, que passou o telefone ao mestre. Emocionado, escutei a voz inconfundível de João Baptista Villela, a quem cumprimentei, rendi as merecidas homenagens e desejei plena recuperação e muitas felicidades. Falei-lhe que iria escrever este artigo, e ele me pediu que o remetesse, em seguida. Autor de muitas obras, é um semeador de ideias, um doutrinador que antecipa as questões e propõe soluções. Em maio de 1979, na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, publicou um artigo pioneiro e importantíssimo que, praticamente, inaugurou o estudo a respeito do tema, no Brasil, denominado "Desbiologização da Paternidade". Tenho dito e repetido que este estudo é matéria de leitura obrigatória para quem deseja conhecer o Direito de Família, entre nós.
Vou transcrever algumas passagens magistrais, algumas das venerandas lições, que emanaram do pensamento luminoso de nosso citado mestre.
"Se se prestar atenta escuta às pulsações mais profundas da longa tradição cultural da humanidade, não será difícil identificar uma persistente intuição que associa a paternidade antes com o serviço que com a procriação. Ou seja: ser pai ou ser mãe não está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir".
"As transformações mais recentes por que passou a família, deixando de ser unidade de caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimiram considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Tanto mais quanto é certo que esse movimento evolutivo, transportando a família de uma idade institucionalista para uma idade eudemonista, ocorre em período de extraordinária floração da tecnologia biomédica"
"Irrespondível é a lição de HEGNAUER, quando ensina que não é “a voz mítica do sangue” que indica à criança quem são seus pais, “senão o amor e o cuidado, que a conduzem do desvalimento para a autonomia'”.
"A paternidade adotiva não é uma paternidade de segunda classe. Ao contrário: suplanta, em origem, a de procedência biológica, pelo seu maior teor de autodeterminação. Não será mesmo demais afirmar, tomadas em conta as grandes linhas evolutivas do direito de família, que a adoção prefigura a paternidade do futuro, por excelência enraizada no exercício da liberdade. Somente ao pai adotivo é dada a faculdade de um dia poder repetir aos seus filhos o que CRISTO disse aos seus apóstolos: “Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi a vós'”.
Os civilistas mais importantes de nosso país, que apenas não cito - dezenas- por absoluta falta de espaço, são admiradores, leitores atentos e seguem as diretrizes indicadas por João Baptista Villela, que é uma legenda, um farol, um exemplo, tem uma multidão de admiradores.
Maria Berenice Dias, mulher de muitas lutas, de inúmeras vitórias, nesta linha progressista, no seu "Manual de Direito das Famílias" expõe que a noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas num ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade. "A filiação socioafetiva assenta-se no reconhecimento da posse do estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto. A posse de estado é a expressão mais exuberante do parentesco psicológico, da filiação afetiva".
A filiação socioafetiva, de que tenho falado nesta coluna, é uma das mais exuberantes conquistas do sistema jurídico brasileiro, e vem sendo consagrada na jurisprudência, inclusive dos tribunais, mesmo no STJ.
E como hoje é sábado, 24 de dezembro, cabe relembrar as lições bíblicas. O Evangelho segundo Lucas (1-26) conta que o anjo Gabriel avisou a uma virgem, de nome Maria, casada com um homem chamado José, que ela, por intercessão do Espírito Santo e pelo poder do Altíssimo, iria conceber e dar à luz um filho, que será chamado Jesus. José, o carpinteiro, sabia não ser o pai biológico da criança, mas recebeu-a, acolheu-a, protegeu-a. Cuidou do Menino, cobriu-o de afetos e cuidados. Sem dúvida, foi o pai adotivo, ou, para usar a expressão moderna: José, o bom José, foi pai socioafetivo de Jesus Cristo, o Salvador.
Zeno Veloso: Professor de Direito Civil e de Direito Constitucional aplicado na Universidade da Amazônia – UNAMA e na Universidade Federal do Pará – UFPA; Diretor Nacional do IBDFAM- região norte; Relator-Geral do Projeto de Código Civil; Relator-Geral da Assembléia Constituinte do Estado do Pará; Autor dos livros: “Condição, Termo e Encargo”, “Invalidade do Negócio Jurídico” e “Reforma do Judiciário Comentada”, "O novo divórcio e o que restou do passado", dentre outros mais.
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