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O testamento ético de Phillip Seymour Hoffman
“It is my strong desire, and not direction to my guardian, that my son, Cooper Hoffman be raised and reside in or near the borough of Manhattan in the State of New York, or Chicago Illinois, or San Francisco, California. If my Guardian cannot reside in any of these cities, I request my son to visit these cities at least twice per year…so that my son will be exposed to the culture, arts, and architecture that such cities offer”.
O oscarizado ator americano Phillip Seymour Hoffman, morto em 2014, deixou todo seu dinheiro para a namorada Mimi O'Donnell e para o filho Cooper, de 10 anos. Nos termos do testamento, redigido em 2004, antes do nascimento das duas filhas mais novas do casal, Tallulah e Willa, Hoffman destinou o seu patrimônio para a estilista Mimi, de quem havia se separado, e pediu que um fundo fiduciário fosse criado para Cooper. E o mais interessante: Hoffman exigiu que o filho cresça em Nova York, Chicago, ou São Francisco, ou que visite essas cidades pelo menos duas vezes por ano para estar exposto à cultura, às artes e à arquitetura que elas oferecem.
Dois aspectos jurídicos saltam aos olhos. O ator não atualizou o testamento após o nascimento das duas filhas e nem tampouco antecipou a possibilidade de uma nova paternidade em suas últimas disposições. Na época em que elaborou o documento Hoffman era apenas pai do primogênito Cooper. Esse é um exemplo do que advogados que atuam com planejamento sucessório chamam de “after born child problem”. A pós morte de Hoffman se assemelha ao acontecido com o também famoso ator Heath Ledger. Por não atualizar o testamento feito 5 anos antes da morte, ele quase deserdou a filha Matilda Rose, que tinha 2 anos quando faleceu em 2008. A lei da maioria dos estados americanos, incluindo New York, protege crianças de deserdação quando os pais se esquecem de atualizar o testamento. Essa questão é vibrante e poderá ser objeto de um outro “post”, sob o prisma do direito brasileiro.
Porém, o que chama a minha atenção é o fenômeno da ‘repersonalização do testamento’, claramente evidenciada pelas instruções deixadas ao guardião do pequeno Cooper, sobre o seu aprimoramento ético em um meio ambiente propício a essa finalidade. Eu enfatizo o termo ‘re’personalização ao invés de personalização, pois Hoffman se inspira em uma tradição que remonta à bíblia hebraica. Ressalte-se a fina ironia do ator nova yorkino que, a todo custo, determinou que o seu filho não crescesse no entorno pasteurizado de Los Angeles, porém desfrutasse do melhor em termos culturais nas três metrópoles que melhor exprimem os valores norte-americanos.
O testamento ético – “Ethical will” - é uma forma de compartilhar valores, lições de vida, desejos e sonhos para o futuro, tanto para familiares, amigos ou mesmo para a comunidade. Evidentemente, o seu conteúdo não é exequível, jamais sendo possível constranger o beneficiário de um legado ou de um quinhão testamentário a cumprir as diretrizes éticas do falecido, pois não está se falando de uma transmissão de riqueza material, por mais que disposições de conteúdo econômico se encontrem no mesmo documento. Em outras palavras, tratando-se o testamento ético de uma expressão existencial, uma profunda orientação respeitante àquilo que verdadeiramente importa para a vida, eventual desatenção do sucessor às orientações sobre o “modus vivendi”, não implicará em uma espécie de condição resolutiva. Por isso, pela lei (seja nos EUA, como no Brasil), Hoffman não poderia exigir do designado guardião de seu filho que o mantivesse em um local específico. Assim, se você quiser encorajar o seu filho a adotar comportamentos virtuosos, v.g. concluir os estudos em uma boa faculdade ou realizar trabalhos filantrópicos, o melhor caminho em termos de planejamento sucessório e coercibilidade não é o testamento ético, mas prometer-lhe dinheiro sob a condição de que cumprirá o pedido. Se o jovem souber que a sua irresponsabilidade poderá lhe excluir de um generoso pagamento futuro, provavelmente irá se dedicar com afinco aos desejos expressos no documento. Evidentemente, disposições privadas que careçam de razoabilidade, por ofensa a direitos fundamentais (v.g. não casar com pessoa de certa religião) ou à ordem econômica (fulano deva adotar apenas uma determinada profissão), poderão ser excluídas por tribunais, pois a autonomia privada do testador sempre se colocará em adequação à principiologia constitucional.
O testamento ético nos EUA é usualmente compartilhado com a família e a comunidade enquanto o seu autor está vivo, mesmo que produza eficácia pós-morte. Mais importante: ao redigi-lo, o autor não apenas lega um significativo presente para os que lhe são mais caros, como beneficia a si próprio, pois esse processo visceral permite expurgar as desventuras e identificar os valores mais importantes, dos quais jamais abdicamos. Ao encontrá-los, podemos enfrentar a morte com mais serenidade, pois de uma certa forma, tomar as medidas necessárias para garantir a continuação desses valores para futuras gerações significa ‘transcender’. Desde sempre a humanidade se notabilizou pela tradição oral de contar estórias para os que vem depois, a tão decantada ‘sabedoria’. Se não pudermos contar as nossas para quem mais amamos, em breve nossa crenças e valores serão esquecidos.
No Brasil, a repersonalização do testamento corre a passos largos. Antes da CF/88 se dizia que o testamento era o instrumento propício a valorizar a segurança jurídica pela garantia de conservação de patrimônio no seio da família, com destino ao cônjuge e aos filhos legítimos. Todos sabemos que as famílias se expandiram e, consequentemente, o rol de beneficiários. Todavia, o que presenciamos agora é a própria revisitação da função do testamento, rumo à despatrimonialização. O CC/02 proclamou no parágrafo 2º do artigo 1.857, que ‘são válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas tenha se limitado’. Há 14 anos se esperava que essa disposição fosse avançada o suficiente para permitir que o testador doasse o seu corpo para pesquisa ou para fins humanitários de transplante de órgãos. Atualmente, a interpretação da referida norma alcançou contornos então inimagináveis. Pode-se cogitar de um ‘testamento biológico’ (com transmissão de sêmens e óvulos armazenados em vida, destinados a pessoa indicada a conceber) e do ‘testamento digital’ sobre a morte nas redes sociais (vide artigo que escrevi sobre o “legacy contact” no site www.nelsonrosenvald.info). Para além de um projeto parental “post mortem” ou de uma negativa ao direito de esquecimento no espaço virtual, o mérito do testamento ético é o de perenizarmos a narrativa de onde viemos, para onde caminhamos e, se dessa vida se extraiu algum significado pessoal, que ele seja afetuosamente endereçado aos nossos entes queridos.
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