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Dos males dos menores
Fonte: Boletim do IBDFAM nº 23
A notícia envolvendo dois menores - um, a vítima e seu namorado, o outro o assassino, temido pelos adultos, inclusive por seus cúmplices - não nos passa impune. Mobiliza toda a escala de paixões, dos mais disfarçados desejos de vingança até a mais profunda compaixão.
Novamente vem à baila a questão da impunidade e da maioridade. Invocam-se os países, em algumas escalas, mais desenvolvidos, como se estes fossem "maiores" e neles pudéssemos encontrar alívio e um exemplo a seguir frente à nossa menoridade em relação à estas questões. Na busca de parâmetros, invoca-se também o direito ao voto - como se este fosse um divisor de águas da maioridade e da maturidade mental...
São vários os argumentos que se situam mais na esfera do auto-engano, para tentar dar conta da impotência que nos acomete face a tais situações. Impacto emocional que guarda semelhança com o terrorismo que subverte qualquer explicação que nossas categorias lógico-emocionais possam alcançar. Dos menores chegam as iniciais, das organizações terroristas, siglas. Em ambos os casos a impessoalidade e a falta de pertinência não nos permite encaixá-los em algum modelo explicativo.
Buscamos em vão a genealogia, como se aí estivesse a chave da compreensão de uma essência que gostaríamos poder acreditar ser diferente.
O que se afigura é que são fenômenos multideterminados, não sendo possível atribuir isoladamente a nenhum deles a responsabilidade - encontrando-se na combinação de vários fatores o profundamente lamentável resultado. Face à impossibilidade de representar o irrepresentável da violência, o traumático, restaria tentar culpabilizarresponsabilizar, como se adultos fossem, os menores...
No mesmo jornal em que eram noticiados os assassinatos, encontramos alguns números: para cada dez jovens que morrem na faixa entre 10 e 19 anos, oito são devidas amorrem de causa externa, sendo 25% devidas a acidentes de carro e 75% a assassinatos. De cada dez crimes no Brasil, só um tem como autor um menor de 18 anos, e 8% dos delitos praticados por estes são crimes contra a vida, os homicídios.
E ainda outros números - o trabalho infantil atinge 5 milhões de crianças no Brasil, e há 3 milhões de crianças nas ruas. E, para levantar outra, não menos importante questão, algumas estatísticas - em uma pesquisa a respeito de notificações de abuso sexual, 70% das vítimas tinham até 11 anos e em 60% os pais e padrastos eram os principais acusados. Isto sem falar nos recentes escândalos de pedofilia no seio da Igreja.
Inegável a necessidade de os códigos acompanharem as mudanças sociais pelas quais passamos, mas cabe questionarmos que mudanças são estas e qual é sua extensão. Alguns argumentam que atualmente há maior nível de informação e que os menores em muito assemelham-se a adultos.
Embora tenhamos percorrido um longo caminho em nossa civilização, de alguma maneira, continuamos os mesmos em nosso "arcaico" processo de desenvolvimento. Somos os mesmos seres que necessitam de um longo período de cuidado e proteção para a sobrevivência tanto física quanto psíquica - por isto constituímos famílias e freqüentamos escolas durante muito tempo. (Isto para aqueles que têm esta oportunidade...).
Famílias que são estruturantes dos indivíduos justamente pelo reconhecimento das diferenças entre adultos e crianças, pela proibição do incesto e, na denominação do psicanalista húngaro Sàndor Ferenczi, pela diferença entre a linguagem da ternura e da paixão . O desenvolvimento é um processo que, para ocorrer de modo saudável, deve guardar as diferenças entre maturidade e imaturidade, entre as linguagens "da ternura e da paixão".
A despeito dos progressos, somos os mesmos seres cheios de desejos que necessitam, por toda a vida, de leis que regulem a convivência em sociedade e de exemplos que nos reassegurem de nosso caminho e de nossa pertinência à cultura. Somos os mesmos seres que buscam o conhecimento e que necessitam de esclarecimento frente às antigas questões da violência que vestem novas roupagens.
Já nos alertava Sàndor Ferenczi, contemporâneo de Sigmund Freud, sobre os traumas que podem sofrer as crianças, devidos aos efeitos do que denominou da confusão de linguagem entre os adultos e a criança. Entenda-se aqui por linguagem as comunicações verbais e não verbais, tudo o que é transmitido tanto por palavras quanto por atos. A criança, por natureza, dependente do adulto, aprende com ele e através de seu exemplo as diferentes formas de ação e comunicação. É assim que desenvolve seu potencial emocional, sua capacidade de pensamento e discernimento, seus valores.
Ferenczi, ao estudar os traumas e o relacionamento das crianças com os adultos, apontou a linguagem da ternura, baseada nas necessidades de afeto, como a forma de comunicação adequada para o desenvolvimento psíquico da criança. Já o outro tipo de linguagem, a passional, é própriao dos adultos, utilizada principalmente na expressão de seus desejos.
O adulto tem à sua disposição os dois tipos de linguagem, a da ternura e a da paixão, enquanto que a criança, ser em formação, transmite e decodifica as comunicações sob a égide da linguagem da ternura. Ela não tem condições, por sua imaturidade física e psíquica, de discriminar a linguagem da paixão - da sexualidade e da agressividade - que pode vir de um adulto, seja este parte de sua família, seja este figura socialmente valorizada.
Assim, quando um adulto, mais forte por definição, impõe a linguagem da paixão em seus atos e em sua comunicação com uma criança, temos como resultado a confusão do que é a necessidade de carinho e de aceitação com a sexualidade e com a agressividade. Confusão esta que se agrava quando as diferenças entre um adulto e uma criança não são respeitadas e a imposição da linguagem da paixão não é reconhecida como uma violência, sendo descaracterizada como tal.
A criança vítima da confusão repetirá, quando adulta, com seus pares e com outras crianças, a confusão de que foi vítima, perpetuando-se, assim, a indiscriminação entre as linguagens, entre a criança e o adulto, entre a normalidade e a violência.
Creio que a antecipação da maioridade pode ter como efeito o de aumentar a confusão, descaraterizando a extensão da violência quando perpetrada por um menor, enquadrando-a dentro de uma idade que permita um determinado tipo de punição e até certo ponto o alívio, e, o que é pior, repetindo a violência ao tratar um menor como se adulto fosse. Ao espelharmos a confusão que provavelmente estes menores foram vítimas, estamos repetindo, no nível sócio-legal, o mesmo trauma por eles sofrido - o direito usurpado em serem crianças da linguagem da ternura - estaríamos repetindo o trauma que impede o pensamento, a formação de valores e o discernimento.
Fundamental que as linguagens - da ternura e da paixão - sejam diferenciadas e que a violência não seja banalizada, tratando-se menores como se maiores fossem, tratando a doença social da exclusão com a discriminação e o isolamento dos excluídos como se isto fosse nos imunizar. A estas questões não estamos impunes. Só pensando e não repetindo os traumas, sem o saber, é que podemos escapar à aterrorizante confusão.
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