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Da extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões. Segunda parte. Da arbitragem
Flávio Tartuce[1]
Conforme desenvolvemos neste canal e em texto anterior, o Novo Código de Processo valorizou sobremaneira a desjudicialização, ou seja, a utilização de mecanismos extrajudiciais para a solução de controvérsias. Conforme o seu art. 3º, não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. Todavia, é permitida a arbitragem, na forma da legislação especial. Enuncia-se, em complemento, que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. Por fim, está expresso que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
Dentro dessa realidade, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias 22 e 23 de agosto de 2016, a I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, sob a coordenação do Ministro Luis Felipe Salomão. O evento ocorreu em Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos, mediadores e professores universitários. Seguiu-se a linha das consagradas Jornadas de Direito Civil, já na sua sétima edição.
Em artigo anterior, comentamos alguns enunciados doutrinários aprovados sobre mediação. Nesta segunda parte, serão abordadas as propostas que foram feitas quanto à viabilidade jurídica de aplicação da arbitragem para o Direito de Família, proposições essas que não passaram sequer pela comissão respectiva. O debate, todavia, é importante, almejando o futuro dessa tendência de fuga do Judiciário.
Pois bem, as duas propostas foram formuladas pelo Professor Paulo Nalin, da UFPR, um grande estudioso do Direito Contratual e da Arbitragem; e com importante contribuição sobre o conteúdo existencial das relações negociais, destacando-se a sua tese de doutorado, em que busca um conceito pós-moderno de contrato (NALIN, Paulo. Contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2006).
Conforme a sua primeira sugestão, “é licito aos nubentes adicionar cláusula compromissória ao pacto antenupcial”. Nos termos das justificativas apresentadas, a “interpretação contemporânea do pacto antenupcial permite que nele sejam dispostas declarações patrimoniais e existenciais, não se limitando, portanto, à simples escolha do regime de bens. Contudo, a natureza histórico-cultural do pacto se identifica com a definição dos efeitos patrimoniais do casamento, mediante a escolha do modelo de regime de bens. Nesse sentido, não ofende o art. 1.655 do CC, em interpretação sistêmica com o art. 852 do mesmo código, a adição de cláusula compromissória ao pacto (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. p. 433), para regular futura disputa concernente a interesses patrimoniais e disponíveis dos cônjuges”. Cita-se a doutrina de Francisco José Cahali, outro defensor da possibilidade de os cônjuges ou companheiros fazerem uso da arbitragem para a solução de controvérsias, presente naquela Jornada.
A segunda proposta apresentada no evento previa que “os cônjuges e os conviventes podem se valer da arbitragem para solucionar conflitos de interesses de natureza patrimonial e disponível, no âmbito do Direito de Família”. Além de Francisco Cahali, a proposição citou a lição de Carlos Eduardo Pianovski, no sentido de superação da ideia de que a família seria “o lugar da não liberdade”. E arrematou com as palavras de Marcos Alberto Rocha Gonçalves, na linha de que deve ser reconhecido o rompimento do “monopólio estatal para a modificação do status jurídico atribuído com o casamento”, especialmente no tocante às questões patrimoniais. Soma-se a eles o jurista Carlos Alberto Carmona, um dos grandes especialistas brasileiros no assunto e também participante da Jornada, para quem “são arbitráveis, portanto, as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade, e desde que as partes possam livremente dispor acerca do bem sobre que controvertem” (Arbitragem e processo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39).
Pois bem, pensamos que é muito pertinente o debate da matéria, mas, no atual estágio do Direito de Família no Brasil, não se deve admitir a arbitragem para se resolver as contendas relativas a esse ramo do Direito Privado. Por isso fomos um dos defensores da rejeição das duas propostas naquele evento, por três objeções principais.
A primeira objeção diz respeito à grande dificuldade existente na separação das matérias puramente patrimoniais daquelas de feição existencial, no âmbito familiar. Como se sabe, nos termos da legislação brasileira, “as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis” (art. 1º da Lei n. 9.307/96). Ademais, o Código Civil de 2002 é claro aos excluir da arbitragem as questões relativas ao direito existencial ao Direito de Família, enunciando o seu art. 852 que é vedado compromisso arbitral para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Mesmo as questões relativas ao regime de bens entre cônjuges e companheiros têm alguma faceta existencial, o que afastaria a viabilidade jurídica da arbitragem, pois não há o previsto conteúdo puramente patrimonial. A propósito, seguindo parcialmente essa linha de interpretação, recente aresto do Tribunal catarinense considerou que “em conformidade com o disposto no art. 1º da Lei n. 9.307/96, a arbitragem pode ser utilizada exclusivamente para resolver litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, de forma que resta afastada, regra geral, sua aplicação sem relação às lides envolvendo direito de família” (TJSC, Apelação cível n. 2015.068323-3, Balneário Camboriú, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, julgado em 22/03/2016, DJSC 08/04/2016, p. 233).
Como segunda objeção, os conflitos familiares carregam em seu âmago um forte e intenso afeto — no caso, um afeto negativo —, fazendo com que os direitos se situem em uma ordem de indisponibilidade, como regra. Tanto isso é verdade que o Código Civil é taxativo no sentido de serem os alimentos irrenunciáveis (art. 1.707), apesar da existência de corrente que prega a possibilidade de sua renúncia. A propósito, pontue-se que quando daquela Jornada houve um debate intenso sobre a possibilidade de a arbitragem atingir as relações de consumo. Após muita divergência, a plenária do evento acabou por não aprovar qualquer proposta, entre outras razões porque o conteúdo dos direitos consumeristas é, em regra, indisponível. Se há essa dificuldade na relação de consumo, imagine-se a barreira a transpor na relação de cunho familiar, por vezes também uma relação entre desiguais, em especial no plano econômico. Essa desigualdade ou assimetria, percebida como regra, acaba por colocar em xeque a afirmação da liberdade, defendida por aqueles que são favoráveis à arbitragem nesse âmbito.
A terceira objeção, decorrência natural da segunda, é que o afeto pode estar preso ao patrimônio, como no exemplo concreto da insistência de um ou outro ex-consorte em permanecer com um determinado bem. As contendas e demandas familiares são multifacetadas, havendo grande dificuldade em se separar os bens das afeições de cada um dos cônjuges e companheiros. Mais uma vez, fica difícil a cisão entre as pretensões existenciais e as patrimoniais. Sem falar que esse apego quanto a bens também pode atingir os filhos, especialmente os incapazes.
Por isso, pensamos que o tema ainda merece um debate ainda mais profundo pela doutrina e pelos aplicadores do Direito, sejam civilistas, familiaristas ou processualistas. Quem sabe, em um futuro próximo, superadas essas objeções, a arbitragem seja admitida para resolver os conflitos de ordem familiar.
[1] Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP. Professor titular permanente do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor dos cursos de graduação e pós-graduação lato sensu da EPD, sendo coordenador dos últimos. Diretor do IBDFAM – Nacional e vice-presidente do IBDFAM/SP. Advogado em São Paulo, parecerista e consultor jurídico.
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