Artigos
A inconstitucional discriminação entre irmãos germanos e unilaterais na sucessão dos colaterais
A regra constitucional cobriu definitivamente com uma pá de cal as antigas discriminações entre filhos, que atribuíam a uns mais direitos do que a outros. Agora, resplandece visível, de plano, a igualdade entre os filhos perante os pais, inclusive para efeitos sucessórios. Para tamanha conclusão, sem muito esforço, basta a mera interpretação lingüística ou gramatical do dispositivo constitucional.
Assim, todas aquelas arcaicas distinções feitas pelo Código Beviláqua não foram recepcionadas pela ordem constitucional vigente. O art. 1.605 se tornou uma inútil lembrança da sociedade oligárquica da primeira metade do século passado.
Emerge indiscutível a igualdade dos filhos na sucessão dos pais. Essa é a faceta mais visível da norma constitucional no que diz respeito aos direitos sucessórios, uma vez que “os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos”.
Mas a arte da hermenêutica não se restringe à mera leitura e adequação gramatical dos diplomas legais. Como lembra NOGUEIRA (1995, p. 86), “saber as leis não é apenas conhecer os termos delas, mas seu conteúdo e alcance”. Assim, o intérprete também deve se socorrer dos métodos lógico, histórico e teleológico, buscando respectivamente a razão de ser da norma, a conjuntura em que foi elaborada, seus objetivos e finalidades.
A simples interpretação gramatical corresponde a ouvir música utilizando um pequeno rádio mono. Ausculta-se a melodia, porém, são inaudíveis os delicados detalhes instrumentais que fazem a toda a diferença em um sofisticado reprodutor de CDs, equipado com a mais moderna tecnologia.
A verdadeira função do jurista é exatamente dar som à lei, não porém a singela sonoridade monofônica dos leigos. Deve amplificá-la com perfeita fidelidade, recorrendo-se aos mais sofisticados métodos interpretativos.
Da análise perfunctória da Constituição resta patente a igualdade de direitos dos filhos com relação à herança dos pais. Daí a inconstitucionalidade de qualquer norma que venha a tentar repetir o conteúdo do art. 1.605 do revogado Código Civil.
Deve-se ter em vista, todavia, que o parentesco não se restringe às pessoas que descendem uma das outras. Muito pelo contrário, é a relação vinculatória que se estende também às pessoas que descendem de um tronco comum, compreendendo, outrossim, o vínculo entre o conjugue e os parentes do outro, bem como o resultante de adoção. Neste diapasão, percebe-se que as relações de parentesco dos filhos não se restringem aos seus ascendentes. Como descendem de um tronco comum, há também parentesco entre os próprios filhos, relação jurídicas entre eles e conseqüentemente direitos recíprocos. Direitos iguais, frise-se, pois a Constituição Federal assegurou que eles “terão os mesmos direitos”.
Em outras palavras, da filiação, que é a relação de parentesco entre pais e filhos, resultam outras relações igualmente de parentesco, tanto em linha reta ad infinitum, como na linha colateral, o que abrange as relações entre os próprios filhos entre si. Dessas relações resultam direitos, direitos iguais consoante o mandamento constitucional e oponíveis contra todos, inclusive os próprios irmãos. GONÇALVES (2002, p. 85) perfilha do mesmo sentir: “Sob o prisma legal, não pode haver diferença entre o parentesco natural e civil, especialmente quanto à igualdade de direitos e proibição de discriminação”.
Esse é um dos efeitos reflexos não claramente perceptíveis do princípio constitucional da igualdade dos filhos, que só com algum exercício de raciocínio interpretativo por parte dos juristas pode ser vislumbrado em sua plenitude.
Desse modo, resta patente que o art. 1.614 e os §§ 2º e 3º do art. 1.617 do antigo Código Civil foram revogados em 5 de outubro de 1988, eis que não recepcionados pela atual Constituição da República.
O legislador ordinário, por sua vez, deveria ter tido a cautela de não repetir a norma no nascente diploma civil então em elaboração. Não foi o que aconteceu: promulgou-se o vigente Código Civil com disposições similares, agora alocadas no art. 1.841 e nos §§ 2º e 3º do art. 1.843.
Admitida a absoluta igualdade entre todos os filhos, qualquer distinção é retrógrada e amparada em ultrapassadas discriminações de época. Diga-se isso quanto ao art. 1.841 e os §§ 2º e 3º do art. 1.843 do novo Código Civil, que praticamente repetiu os textos do art. 1.614 e dos §§ 2º e 3º do art. 1.617 do código anterior.
Ditos dispositivos fundam-se na arcaica repulsa em face da fraternidade unilateral. Outrora, ter irmãos unilaterais era escandaloso e pejorativo, porque em regra indiciava filiação ilegítima no âmago familiar. Hodiernamente, todavia, isso é inevitavelmente comum, principalmente após a instituição do divórcio.
Inconstitucionais, portanto, os aludidos dispositivos do atual Código Civil que atribuem a cada irmão unilateral ou a seus filhos apenas metade do que cada irmão bilateral couber herdar.
Ora, os irmãos unilaterais são tão irmãos como os bilaterais e os adotivos. Um exemplo demonstra claramente a inconstitucionalidade da regra. Suponhamos que uma pessoa faleça sem deixar descendentes. Não tendo mais ascendentes e sendo solteira e descompromissada, são chamados à sucessão seus colaterais (CC, art. 1839). Os mais próximos são seus irmãos: um bilateral, outro unilateral e um terceiro adotivo. Ao pé da letra, o unilateral receberia metade do que coubesse ao germano. Mas e o adotivo? Receberia igual ao bilateral em franca discriminação em desfavor do unilateral? Ou o mesmo tanto que este, sendo discriminado em face do bilateral?
Não há solução para o problema utilizando-se das prefaladas regras do Código Civil porque elas são simplesmente inconstitucionais! Feito todo esse raciocínio, a Constituição se apresenta bem mais clara: todos os filhos terão os mesmos direitos, oponíveis contra todos, inclusive os próprios irmãos. Os artigos 1.841 e 1.843 de nosso principal diploma civil criaram no âmbito do parentesco consangüíneo uma distinção inconciliável com a equiparação constitucional da filiação. Como igualar a filiação civil com a filiação consangüínea se até mesma esta comporta desníveis internos?
Qualquer solução à luz dos mencionados artigos implicaria em odiosa segregação. Se o adotivo herdar à semelhança do irmão germano estar-se-ia discriminando o unilateral e, por conseguinte, a filiação consangüínea. Por outro lado, recebendo como o unilateral, discriminar-se-ia a filiação adotiva, o que é constitucionalmente intolerável.
A respeito do assunto a jurisprudência é escassa e a doutrina assustadoramente silenciosa. A maioria dos autores tacitamente aceita a constitucionalidade dos artigos. Dentre as poucas exceções, LIMA (2003, p. 92) admite expressamente a constitucionalidade da lei, pois se “a herança vem por parte de pai e de mãe; o parentesco é duplo. Se todos têm os mesmos pais, recebem igualmente e se o parentesco advier de um só, herda-se somente por parte daquele”.
Com a devida vênia, o argumento não prospera, eis que pode perfeitamente acontecer de o irmão não ter recebido herança nenhuma dos pais e angariado todo seu patrimônio por esforço próprio.
Além disso, o anterior exemplo envolvendo o irmão adotivo elucida convincentemente que a Constituição, ao equiparar os filhos havidos ou não no casamento e os adotivos, implicitamente também findou por equiparar todos os irmãos consangüíneos entre si e, de modo geral, o parentesco resultante da filiação. Se fez o mais, logicamente o menos foi feito de modo subentendido.
Desse modo, a derradeira conclusão é a de que os arts. 1.614 e 1.617, §§ 2º e 3º, do antigo Código Civil foram revogados pela Constituição Federal, enquanto os recentes arts. 1.841 e 1.843, §§ 2º e 3º, do diploma em vigor são inconstitucionais.
(*) Procurador do Estado de Goiás
Referências Bibliográficas:
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, v. 6. direito das sucessões. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 2 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil: direito de família, volume 2 – coleção sinopses jurídicas. 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
____________. Direito civil: direito das sucessões, volume 4 – coleção sinopses jurídicas. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
LIMA, Rubiane de. Manual de direito das sucessões. Curitiba: Jaruá, 2003.
NOGUEIRA, Ruy Barbosa. Vigência. Aplicação. Interpretação. Integração. In _____. Curso de direito tributário. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
RODRIGUES, Silvio. Direito civil, v. 1, direito das sucessões. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM