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Alguns temas para reflexão
O Código Civil de 2002, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, na área do Direito de Família, poucas novidades ofereceu, tendo ocorrido apenas as atualizações das regras familiaristas, com a recepção da legislação ordinária já existente e a inclusão das corajosas e culminantes modernizações promovidas pela Carta Magna de 1988, que haviam transformado o Direito Familiar brasileiro num dos mais avançados do Ocidente.
Para reflexão, registro alguns temas polêmicos do NCCB. A teoria do ato jurídico nulo estabelece que este não se convalida com o decurso do tempo e não pode ser ratificado pelas partes envolvidas. Nasce morto para o mundo jurídico. Entretanto, o artigo 208 do CCB de 1916 previa: “É também nulo o casamento perante autoridade incompetente. Mas esta nulidade se considerará sanada, se não se alegar dentro em 2 (dois) anos da celebração”. O CCB atual corrigiu essa incoerência jurídica, quando, em seu artigo 1.550 determinou que: “É anulável o casamento: VI – por incompetência da autoridade celebrante”. Porém, o paradoxo jurídico de 1916 foi reproduzido em 2002. Sabe-se que é ato jurídico nulo o praticado por pessoa absolutamente incapaz. Em seu artigo 1.553, o NCCB afirma que: “O menor que não atingiu a idade núbil (mulher e homem aos 16 anos) poderá, depois de completá-la, confirmar seu casamento, com autorização de seus representantes legais, se necessária, ou com suprimento judicial”. (A expressão entre parênteses é alheia ao original).
Assim, a Lei 10.406 de 2002 admitiu a validação do ato jurídico nulo, pois praticado por pessoa absolutamente incapaz, validação essa decorrente da ratificação das partes.
Ainda para refletir. O artigo 1.521 do CCB de 2002 impõe a regra: “Não podem casar: VI – Os irmãos unilaterais ou bilaterais e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive”. O Decreto-Lei nº 3.200, de 19.04.1941, permite o casamento de colaterais de 3º grau, tio (a) e sobrinho (a), desde que seja provada, através de exame pré-nupcial, a inexistência de impedimentos de ordem genética. Essa previsão do Dec. Lei 3.200 está em vigor? Entendo que sim.
O artigo 1.641 do Código de 2002 prevê como regime obrigatório de bens o da separação de bens. Exsurge imediatamente a dúvida: relativa ou absoluta. O STF cristalizou suas decisões na Súmula 377, no sentido de que: “No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Essa súmula perdeu a eficácia? Cuido que não. Portanto, continua sendo o da separação relativa o regime obrigatório de bens imposto para certos casamentos pela atual codificação civil.
Para restar bem claro, vale referir que, no regime da separação de bens convencional, prevalecem as regras da separação absoluta. E, na separação de bens decorrente da lei, aplicam-se as normas disciplinadoras ditadas pelo STF, ou seja, comunicam-se os aqüestos.
Talvez o tema mais controvertido para os familiaristas, em relação às previsões do Código Civil de 2002, seja a consentida mutabilidade do regime de bens, “mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges”, conforme mandamento do art. 1.639, em seu § 2º.
A controvérsia se instala no momento em que alguns juristas se manifestam favoráveis à extensão
dessa possibilidade legal aos regimes de bens dos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916.
Dentre esses juristas, destacam-se Sérgio Gischkow Pereira (“Revista Brasileira de Direito de Família” – IBDFAM – junho/julho 2003 – volume 18), Euclides de Oliveira (“Novo Código Civil – Questões Controvertidas”, Editora Método, São Paulo, 2003), que menciona Mário Luiz Delgado, Paulo Luiz Netto Lobo e Francisco José Cahali.
Empolga-me, porém, o entendimento de que existe um óbice legal à aplicação extensiva do permissivo de § 2º do art. 1.639 do Código de 2002. Trata-se da restrição expressa imposta pelo art. 2.039 dessa mesma codificação.
Maria Helena Diniz, na obra “Comentários ao Código Civil”, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, volume 22, firma posição contrária, admitindo apenas a revogabilidade do regime de bens, em casos excepcionais, para os casamentos anteriores a 11.01.2003.
Em outra obra, “Direito de Família”, Editora Saraiva, São Paulo, 2002, Maria Helena Diniz defende a modificação de regimes de bens em casamentos oriundos do CC de 1916, excepcionalmente, quando celebrados no estrangeiro pela separação de bens (jurisprudência); quando o pacto antenupcial estipular que, na hipótese de superveniência de filhos, o casamento com separação se converta em casamento com comunhão (decisão do Supremo Tribunal Federal).
Casamentos realizados sob a égide do Código de 1916 já estão com suas relações patrimoniais consolidadas, pois o casal teve ciência e anuiu ao princípio básico da irrevogabilidade do regime de bens (art. 230) que escolheu. Alcançando-lhes a permissão da modificação do regime de bens, a proteção, a segurança dos nubentes e de terceiros poderá ser fragilizada pela coação ou pela má-fé, respectivamente.
Em minhas aulas de Direito de Família, muito tempo antes da vigência da Lei nº 10.406/2002, sempre emiti opinião favorável à modificação do regime de bens para casamentos celebrados por menores que ainda não haviam atingido a idade núbil – separação legal de bens –, tão logo adquirissem a capacidade civil plena, o que já está sendo concedido agora, após a entrada em vigor do novo código, em alguns Juízos de Família, em consonância com o prudente ensinamento da professora da PUC de São Paulo.
Alguns doutrinadores chegam a admitir que a modificação do regime de bens é recomendada para casamentos vindos da Lei Civil de 1916, quando entre o casal esteja contratada uma sociedade e exista a vigência do regime da comunhão universal ou da separação obrigatória. Afirmam que se impõe o estabelecido no art. 977 do NCCB, devendo o casal alterar o regime de bens ou encerrar a sociedade. Ouso discordar desse posicionamento, sob o argumento de que o referido dispositivo do CC de 2002 não alcança os casamentos celebrados pelo Código anterior, isso em face do princípio constitucional de que a lei nova não pode prejudicar o ato jurídico perfeito.
Dessa forma, o casal cujo casamento ocorreu antes de 11.01.2003 terá que obedecer ao recomendado pelo art. 977 do NCCB, no caso de pretender estabelecer uma sociedade entre si após essa data. Esse mesmo casal, na hipótese de já haver contratado uma sociedade entre si antes da vigência do CC de 2002 não poderá ser penalizado pelas regras do art. 2.031 dessa nova lei civil (“terão o prazo de 1 (um) ano para se adaptarem à disposição deste Código”), pois a CF-88 lhe dá total proteção, ou seja, a sociedade preexistente é um ato jurídico perfeito.
Enfim, os princípios, os valores e os conceitos fundamentais que envolveram o par conjugal no casamento regulamento pelo Código de 1916 eram totalmente diferentes daqueles que estarão orientando os participantes do casamento previsto no CC de 2002. Decorrente disso, avulta enorme dificuldade, sério risco, na interferência do Direito para redisciplinar as relações de afeto e principalmente as patrimoniais já constituídas. O bom senso aconselha limites na intervenção do Estado na intimidade e na privacidade do casal. Resta-nos aguardar a manifestação do Poder Judiciário.
* Professor de Direito de Família e Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas. Diretor do IBDFAM no Amazonas. Professor da Escola Superior da Magistratura do Amazonas (ESMAM). Advogado familiarista.
Para reflexão, registro alguns temas polêmicos do NCCB. A teoria do ato jurídico nulo estabelece que este não se convalida com o decurso do tempo e não pode ser ratificado pelas partes envolvidas. Nasce morto para o mundo jurídico. Entretanto, o artigo 208 do CCB de 1916 previa: “É também nulo o casamento perante autoridade incompetente. Mas esta nulidade se considerará sanada, se não se alegar dentro em 2 (dois) anos da celebração”. O CCB atual corrigiu essa incoerência jurídica, quando, em seu artigo 1.550 determinou que: “É anulável o casamento: VI – por incompetência da autoridade celebrante”. Porém, o paradoxo jurídico de 1916 foi reproduzido em 2002. Sabe-se que é ato jurídico nulo o praticado por pessoa absolutamente incapaz. Em seu artigo 1.553, o NCCB afirma que: “O menor que não atingiu a idade núbil (mulher e homem aos 16 anos) poderá, depois de completá-la, confirmar seu casamento, com autorização de seus representantes legais, se necessária, ou com suprimento judicial”. (A expressão entre parênteses é alheia ao original).
Assim, a Lei 10.406 de 2002 admitiu a validação do ato jurídico nulo, pois praticado por pessoa absolutamente incapaz, validação essa decorrente da ratificação das partes.
Ainda para refletir. O artigo 1.521 do CCB de 2002 impõe a regra: “Não podem casar: VI – Os irmãos unilaterais ou bilaterais e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive”. O Decreto-Lei nº 3.200, de 19.04.1941, permite o casamento de colaterais de 3º grau, tio (a) e sobrinho (a), desde que seja provada, através de exame pré-nupcial, a inexistência de impedimentos de ordem genética. Essa previsão do Dec. Lei 3.200 está em vigor? Entendo que sim.
O artigo 1.641 do Código de 2002 prevê como regime obrigatório de bens o da separação de bens. Exsurge imediatamente a dúvida: relativa ou absoluta. O STF cristalizou suas decisões na Súmula 377, no sentido de que: “No regime da separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”. Essa súmula perdeu a eficácia? Cuido que não. Portanto, continua sendo o da separação relativa o regime obrigatório de bens imposto para certos casamentos pela atual codificação civil.
Para restar bem claro, vale referir que, no regime da separação de bens convencional, prevalecem as regras da separação absoluta. E, na separação de bens decorrente da lei, aplicam-se as normas disciplinadoras ditadas pelo STF, ou seja, comunicam-se os aqüestos.
Talvez o tema mais controvertido para os familiaristas, em relação às previsões do Código Civil de 2002, seja a consentida mutabilidade do regime de bens, “mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges”, conforme mandamento do art. 1.639, em seu § 2º.
A controvérsia se instala no momento em que alguns juristas se manifestam favoráveis à extensão
dessa possibilidade legal aos regimes de bens dos casamentos celebrados na vigência do Código Civil de 1916.
Dentre esses juristas, destacam-se Sérgio Gischkow Pereira (“Revista Brasileira de Direito de Família” – IBDFAM – junho/julho 2003 – volume 18), Euclides de Oliveira (“Novo Código Civil – Questões Controvertidas”, Editora Método, São Paulo, 2003), que menciona Mário Luiz Delgado, Paulo Luiz Netto Lobo e Francisco José Cahali.
Empolga-me, porém, o entendimento de que existe um óbice legal à aplicação extensiva do permissivo de § 2º do art. 1.639 do Código de 2002. Trata-se da restrição expressa imposta pelo art. 2.039 dessa mesma codificação.
Maria Helena Diniz, na obra “Comentários ao Código Civil”, Editora Saraiva, São Paulo, 2003, volume 22, firma posição contrária, admitindo apenas a revogabilidade do regime de bens, em casos excepcionais, para os casamentos anteriores a 11.01.2003.
Em outra obra, “Direito de Família”, Editora Saraiva, São Paulo, 2002, Maria Helena Diniz defende a modificação de regimes de bens em casamentos oriundos do CC de 1916, excepcionalmente, quando celebrados no estrangeiro pela separação de bens (jurisprudência); quando o pacto antenupcial estipular que, na hipótese de superveniência de filhos, o casamento com separação se converta em casamento com comunhão (decisão do Supremo Tribunal Federal).
Casamentos realizados sob a égide do Código de 1916 já estão com suas relações patrimoniais consolidadas, pois o casal teve ciência e anuiu ao princípio básico da irrevogabilidade do regime de bens (art. 230) que escolheu. Alcançando-lhes a permissão da modificação do regime de bens, a proteção, a segurança dos nubentes e de terceiros poderá ser fragilizada pela coação ou pela má-fé, respectivamente.
Em minhas aulas de Direito de Família, muito tempo antes da vigência da Lei nº 10.406/2002, sempre emiti opinião favorável à modificação do regime de bens para casamentos celebrados por menores que ainda não haviam atingido a idade núbil – separação legal de bens –, tão logo adquirissem a capacidade civil plena, o que já está sendo concedido agora, após a entrada em vigor do novo código, em alguns Juízos de Família, em consonância com o prudente ensinamento da professora da PUC de São Paulo.
Alguns doutrinadores chegam a admitir que a modificação do regime de bens é recomendada para casamentos vindos da Lei Civil de 1916, quando entre o casal esteja contratada uma sociedade e exista a vigência do regime da comunhão universal ou da separação obrigatória. Afirmam que se impõe o estabelecido no art. 977 do NCCB, devendo o casal alterar o regime de bens ou encerrar a sociedade. Ouso discordar desse posicionamento, sob o argumento de que o referido dispositivo do CC de 2002 não alcança os casamentos celebrados pelo Código anterior, isso em face do princípio constitucional de que a lei nova não pode prejudicar o ato jurídico perfeito.
Dessa forma, o casal cujo casamento ocorreu antes de 11.01.2003 terá que obedecer ao recomendado pelo art. 977 do NCCB, no caso de pretender estabelecer uma sociedade entre si após essa data. Esse mesmo casal, na hipótese de já haver contratado uma sociedade entre si antes da vigência do CC de 2002 não poderá ser penalizado pelas regras do art. 2.031 dessa nova lei civil (“terão o prazo de 1 (um) ano para se adaptarem à disposição deste Código”), pois a CF-88 lhe dá total proteção, ou seja, a sociedade preexistente é um ato jurídico perfeito.
Enfim, os princípios, os valores e os conceitos fundamentais que envolveram o par conjugal no casamento regulamento pelo Código de 1916 eram totalmente diferentes daqueles que estarão orientando os participantes do casamento previsto no CC de 2002. Decorrente disso, avulta enorme dificuldade, sério risco, na interferência do Direito para redisciplinar as relações de afeto e principalmente as patrimoniais já constituídas. O bom senso aconselha limites na intervenção do Estado na intimidade e na privacidade do casal. Resta-nos aguardar a manifestação do Poder Judiciário.
* Professor de Direito de Família e Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Amazonas. Diretor do IBDFAM no Amazonas. Professor da Escola Superior da Magistratura do Amazonas (ESMAM). Advogado familiarista.
Os artigos assinados aqui publicados são inteiramente de responsabilidade de seus autores e não expressam posicionamento institucional do IBDFAM