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A personalização da personalidade
O Direito civil é caprichoso. Com o impacto da CF/88, ocorreu a gradual personalização dos institutos clássicos do direito privado, fenômenos também conhecidos com a funcionalização dos institutos patrimoniais às exigências éticas do ordenamento jurídico. Propriedade e contratos receberam nova roupagem, de modo a compatibilizar o livre trânsito na ordem econômica com a proteção e promoção das pessoas envolvidas nesses fatos jurídicos. Mais tarde, deu-se a personalização da família. Com o protagonismo do IBDFAM, revoluciona-se um instituto tradicionalmente voltado a conservação patrimonial do matrimônio e da família legítima, que é rapidamente diluído em vários modelos de entidades familiares, nos quais prevalece a tutela de cada um de seus membros e a promoção de sua autonomia, intimidade e privacidade afetiva.
Porém, o que causava assombro era a recusa do direito civil brasileiro em personalizar a pessoa humana. Vocês duvidam? Abram os seus manuais de cabeceira e percebam que os autores ainda insistem em identificar os conceitos de personalidade e capacidade, como a aptidão genérica para a aquisição de direitos e obrigações na ordem privada. Sim, os dinossauros ainda passeiam livremente pelo planeta...
Sempre frisamos que a noção de personalidade só assume concretude se for assumida como direitos da personalidade, valor intrínseco à condição humana que antecede ao ordenamento jurídico, concernente aos atributos existenciais de cada ser humano. Trata-se de valor-fonte que não pode ser fracionado pela lei, mas tão somente por ela reconhecido e dignificado. A capacidade, ao contrário, diz respeito à subjetividade, a idoneidade do indivíduo de titularizar relações patrimoniais. Daí que o direito reconhece a personalidade e concede a capacidade, sendo infenso ao legislador mitigar o valor da personalidade. Na qualidade de medida de um valor, a capacidade pode sofrer restrições legislativas, desde que razoáveis e motivadas na própria proteção da pessoa.
Infelizmente, essa premissa teórica jamais fora concretizada no Brasil até 2016. A personalidade não era personalizada, pois prevalecia no CC/02 a teoria oitocentista das incapacidades, que assumia como um dogma a neutralização do indivíduo como absolutamente incapaz por ausência de discernimento. No conjunto da sociedade brasileira do século XXI não causava espanto o fato de uma sentença de interdição despojar a pessoa da aptidão de exercer pessoalmente os seus atributos existenciais, sendo substituída pelo alter ego do curador no exercício de sua personalidade. Percebam o paradoxo: humanizam-se negócios jurídicos, titularidades, conjugalidades, parentalidades, enquanto o ser humano prosseguia encarcerado na redoma abstrata do “louco de todo o gênero”, agente incapaz, cujo isolamento se mostrava essencial para o adequado funcionamento da sociedade civil.
Contudo, aos 45 minutos do segundo tempo, o Estatuto da Pessoa com Deficiência tratou de personalizar a personalidade. Não fez isso por altruísmo, mas por uma exigência da então internalizada Convenção Internacional das Pessoas com Deficiência. Sempre lembrando Guimarães Rosa, “O sapo não pula por boniteza, mas por precisão”. Entre outros inegáveis méritos, a Lei n. 13.146/15 foi precisa ao dispor em seu artigo 85 que: “A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial. § 1o A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto”.
Eureca! O legislador finalmente compreende que apenas no mundo da capacidade pode haver cisão entre a titularidade e o exercício de situações jurídicas. A representação é instituto que se legitima nas relações patrimoniais, mesmo quando excepcionalmente resultante de uma sentença que institua a curatela. Porém, quando tratamos da personalidade, é vedado ao legislativo fraturar a titularidade de situações existenciais do seu exercício pela própria pessoa.
Transferir compulsoriamente para um curador poderes para decidir sobre a própria existência do curatelado implica em uma delegação coercitiva de direitos fundamentais, o resgate da “morte civil” dos tempos de Roma. Evidente que a mais bem intencionada lei não pode cobrir a multifacetada realidade. Todos nós conhecemos ou convivemos com pessoas que não podem (v.g. estado vegetativo persistente, Alzheimer avançado) absolutamente decidir sobre a sua própria intimidade e vida privada. Nesses casos extremos a representação será mais ampla, compreendendo também a curatela sobre a dimensão existencial da pessoa. De qualquer forma, a norma é pedagógica, pois acaba com a banalização da personalidade por sentença, ao delimitar as fronteiras entre personalidade e capacidade. Quaisquer invasões territoriais serão excepcionais, cabendo o ônus persuasivo a quem queira ultrapassar o marco divisório definido pelo artigo 85 da Lei n. 13.146/15. Ao completar o aniversário de 160 anos (em 6 de Maio) Freud teria motivos para comemorar as boas novas, pois o pai da psicanálise sempre enfatizou que todos nós somos capazes e incapazes em certa medida e que os ditos “loucos” são apenas aqueles que em certo momento sucumbiram à luta em seu inconsciente.
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