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Reprodução assistida no berço das normas registrais
Reprodução assistida no berço das normas registrais
Jones Figueirêdo Alves
Os nascimentos de crianças geradas por técnicas de reprodução assistida, inclusive mediante gestação substituta, para efeito de registro civil, ganharam sua primeira regulamentação com o Provimento 21/2015, de 29.10.2015, da Corregedoria Geral da Justiça de Pernambuco.
A reprodução assistida começou a se desjudicializar – (Conjur, 21.11.2015).
De nossa autoria, enquanto Corregedor Geral de Justiça em exercício, o primeiro normativo administrativo registral buscou regulamentar o procedimento de registro de nascimento de filhos havidos de reprodução assistida, por casais heteroafetivos ou homoafetivos; tornou admitida, expressamente, a multiparentalidade e dispensou autorização prévia judicial à abertura do assento de nascimento.
Foi o primeiro normativo registral veiculado por Corregedoria Geral de Justiça, no país, a sufragar os entendimentos expostos no Enunciado nº 608, da VII Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, em 29.09.2015 e no Enunciado nº 12, do X Congresso Brasileiro de Direito de Família, do IBDFAM, de 23.10.2015 e segundo diretiva da Resolução nº 2.121/2015, do Conselho Federal de Medicina. Os Enunciados jurídicos consideraram possível o registro de nascimento de filhos havidos de reprodução assistida, diretamente no cartório de Registro Civil, tornando dispensável a propositura de uma ação judicial, sempre que haja regulamentação da Corregedoria local.
Agora, a Corregedora Nacional de Justiça, ministra Nancy Andrigui, em louvável iniciativa, vem editar o Provimento nº 52, de 14 de março de 2016, dispondo sobre o registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida, com latitudes que dignificam o tema, a partir de sua necessária uniformização em todo o território nacional.
As diretivas registrais de reprodução medicamente assistida constantes nos aludidos Provimentos consolidam uma conveniente, urgente e imperiosa resolução administrativa para os milhares de casos de maternidade de substituição, a de gestação por outrem, quando, em situações que tais, a parturiente, como cedente temporária do útero, não será havida, para os fins da lei, como a genitora da criança nascida. A todo rigor, será lançado em registro civil o nome da mãe genética, fornecedora do óvulo e titular do projeto parental, nada obstante o nome daquela esteja na Declaração de Nascido Vivo (DNV).
Consabido que desde junho de 2012, a Lei n 1.662 houve de conferir à Declaração de Nascido Vivo (DNV), o caráter de documento de identidade provisória, com idoneidade de servir com valor oficial até que aberto o assento de nascimento em registro civil, cuja certidão o substitui, tem-se que esta DNV, onde constante apenas o nome da gestante (parturiente) impedia que o registro civil viesse conter nome diverso de genitora, impondo-se o da parturiente. Ou seja, para os fins legais, como sucede no direito português, a parturiente é a mãe, não se cogitando nenhuma outra que não seja a biológica.
Os normativos editados preceituam, objetivamente, que “não será considerado para o conteúdo registrário o nome da parturiente constante da Declaração de Nascido Vivo – DNV...” (art. 2º, par. 3º - Prov. 21/15-CGJ-PE) ou seja, “na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo” (art. 2º, par. 2º - Prov. 52/16-CNJ), quando aquela, comprovadamente, é protagonista da gestação substituta, tudo em primazia do projeto parental a permitir que no registro civil seja indicada como genitora aquela fornecedora do material genético.
Mais. Os novos paradigmas normativos são muitos, em considerando aspectos pontuais da disciplina registral nela apontados, a exemplo:
(i) o assento será lavrado, independentemente de prévia autorização judicial, desjudicializando o trato da matéria registral (art. 1º - Prov. 21/15-CGJ-PE e art. 1º - Prov. 52/16-CNJ);
(ii) “nos casos de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna” (art. 1º, par. 2º, Prov. 52/16-CNJ), ou seja, “a inscrição será procedida com a devida adequação para que constem os nomes dos pais ou das mães, bem como seus respectivos avós, sem distinção se paternos ou maternos” (art. 1º, par. único, Prov. 21/15-CGJ-PE);
(iii) a documentação adequada e suficiente, indispensável a instruir o pedido registral de abertura do assento de nascimento (a dispensar, por isso mesmo, processo judicial preliminar), é relacionada com a segurança necessária a demonstrar o emprego das técnicas de reprodução assistida (art. 2º - Prov. 21/15-CGJ-PE e art. 2º - Prov. 52/16-CNJ). Com precisão, situam-se os documentos indicativos do nascimento adveniente dos usos das técnicas de RMA, como a declaração do diretor técnico da clinica, centro médico ou serviço de reprodução assistida em que foi realizada a técnica adotada ((art. 2º, II - Prov. 21/15-CGJ-PE ; art. 2º, II - Prov. 52/16-CNJ), ficando esta expressamente apontada;
(iv) nas hipóteses de reprodução assistida “post mortem”, além dos documentos antes referidos, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para o uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público (art. 2º, par. 3º - Prov. 52/16-CNJ).
Como se observa, inegáveis os avanços normativos.
Agora, o provimento nacional afigura-se eloquente a orientar os Ofícios de Registro Civil para a lavratura dos assentos de nascimentos oriundos de técnicas de RMA, com a documentação a instruir os registros, importando segurança, celeridade e eficiência para o ato registral e buscando contribuir, juridicamente, com a evolução científica dos direitos de reprodução. Adianta ser vedado aos Oficiais Registradores a recusa ao registro de nascimento e emissão da respectiva certidão para os filhos por técnicas de reprodução assistida, nos fins do referido Provimento n 52/16-CNJ (art. 3º).
No caso da reprodução póstuma, o Provimento nº 52/16-CNJ, vai além do provimento pernambucano nº 21/15, quando torna exigível, nesses casos, o instrumento público de autorização específica do falecido(a), para o uso do seu material biológico preservado (art. 2º, par. 3º) e não apenas o documento particular, com reconhecimento de firma (art. 4º, Prov. 21/15-CGJ-PE).
No ponto, chama-se a destaque que o artigo 1.597 do Código Civil reconhece a filiação dos filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido, presumindo que foram concebidos na constância do casamento. A expressão “fecundação” (óvulo fecundado) constante da norma codificada difere da técnica de “inseminação” não referida no aludido dispositivo, importando dizer que esta última não implica na presunção ficta, quando realizada post-mortem, tudo nos termos da codificação civil.
O Provimento nacional nº 52/16-CNJ, generaliza as hipóteses, quando as congregam, em gênero, na expressão “reprodução assistida “post mortem”. Bem de ver, é a justiça correcional que se coloca a serviço do cidadão e da ciência.
Pois bem. Nesse contexto, impende assinalar no atinente à multiparentalidade, esta apenas cogitada pelo Provimento nº 21/15-CGJ-PE, que situações excepcionais poderão dele ser extraídas, a exemplo de quando, no manejo das técnicas de RMA, obtenha-se a colaboração da gestante quando esta for companheira da mãe genética, em união homoafetiva e, por òbvio, uma e outra se colocam, efetivamente, como genitoras da criança (uma, a genética, fornecedora do óvulo fecundado; outra, a biológica, gestante e parturiente), certo que o filho nascido advém de um projeto parental comum.
Na hipótese, a expressão “multiparentalidade” prevista no normativo pernambucano oferece sua incidência a permitir que ambas (parturiente e mãe genética), tenham seus nomes lançados em assento, mediante concordância mútua. Assim dispõe o art. 1º do normativo:
“O assento de nascimento decorrente de filhos havidos por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro A, observada a legislação vigente, no que for pertinente, mediante comparecimento de um ou ambos os pais e/ou mães, munidos da documentação exigida neste provimento, independentemente de prévia autorização judicial: permitidas a duplicidade parental (multiparentalidaede) e a paternidade ou maternidade por pessoas do mesmo sexo”.
Induvidoso que as técnicas de reprodução humana assistida no projeto parental de geração de um filho têm assumido avanços científicos que o direito tem presenciado, de perto, sem acompanha-los, todavia, em molduras jurídicas adequadas. A falta de normas legais disciplinadoras, em paridade com as diversas vertentes da RMA, tem sido suprida, apenas, por normas éticas para a utilização das técnicas, constantes de Resoluções do Conselho Federal de Medicina e agora, pelos antes reportados provimentos normativos de corregedoria estadual e a nacional.
Os órgãos censores, no papel indutor de disciplinar tema de tamanha relevância haverão, por certo, de atender a uma correta interpretação e aplicação das normas de regência da atividade registral diante dos provimentos recentemente editados.
A Associação dos Registradores das Pessoas Naturais do Estado de Pernambuco (ARPEN-PE), já apresentou consulta, com arrimo regimental (Processo nº 00553/2015), perante a Corregedoria Geral de Pernambuco, em face do Provimento nº 21/2015-CGJ-PE, tendo, dentre outras, algumas premissas de base de controvérsia:
(I) a incidência da multiparentalidade, recepcionada em registro civil e sem dependência de ordem judicial, diante das hipóteses de emancipação e de consentimento para o casamento, quando se cuida identificar necessários ou não todos os pais para o ato judicial;
(ii) o conflito aparente de aplicabilidade de normas no tocante à recepção da Declaração de Nascido Vivo – DNV, entre o Provimento e as Leis nºs. 12.662/2012 e 6.015/1973;
(iii) a necessidade ou não de o registrador civil exigir provas de que a gestação de substituição não teve fins lucrativos;
(iv) como se dará a garantia do registro civil da criança pelos pais genéticos nos termos do Item 3.5. da Resolução nº 2.121/2015, do Conselho Federal de Medicina, in verbis: “garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez”; (v) nos casos de gestação de substituição, quando os pais genéticos recusarem a registrar a criança, haverá a possibilidade ou não de o registrador afastar a hipótese de vedação da figura da parturiente, como genitora, em face do Provimento, para que esta assuma a maternidade que lhe couber como mãe então substituta?
A última premissa da consulta da ARPEN-PE assume uma iniludível atualidade. O jurista Silvio Romero Beltrão, com ampla doutrina no direito biomédico e em bioética, tem problematizado, com agudeza notável, a questão seguinte:
“diante da possibilidade de a mãe de gestação por outrem (a chamada “barriga de aluguel”) ser contaminada pelo Zika vírus, com relação direta ao grande surto atual de microencefalia, será justo à mãe doadora do óvulo, que contratou o projeto de filiação, recusar a maternidade? Em muitas mulheres grávidas, o vírus tem sido encontrado no líquido amniótico.
Interessante questão a ser debatida em fóruns jurídicos e acadêmicos, sobretudo nos pretórios da razão consciente das plenas falibilidades da condição humana.
Dúvidas outras existirão, dentro da realidade fenomênica do uso tecnológico em direitos de reprodução, mormente quando se cuida prover normas administrativas e registrais diante de situações que envolvem relações pessoais. Uma resultará, por certo, em situação de reprodução assistida para casais homoafetivos masculinos, quando durante o projeto parental comum, houver o rompimento da relação afetiva. O doador do sêmen poderia exigir fazer constar não mais o nome do companheiro (duplicidade parental), mas o da própria parturiente que se dedicou contribuir àquele projeto?
Conflitos de interesses exsurgentes remeterão ao juiz registral a busca de suas superações ou de resultados de suas soluções úteis. O Registrador Civil, nos casos de qualquer dúvida, remeterá o expediente ao juiz registral competente, para apreciar e decidir a respeito (art. 3º, Prov. 21/15-CGJ-PE).
Por enquanto, à falta de uma legislação de regência que regulamente o uso das técnicas de reprodução assistida, para a implantação artificial de gametas ou de embriões humanos, fertilizados in vitro, no organismo de mulheres receptoras, os provimentos normativos agora editados à nível do direito registral visualizam a necessidade de se conferir, e de fato conferem, a devida filiação aos filhos da ciência.
Como bem expressou a ministra Nancy Andrigui a medida oferece a adequada proteção legal. No mais, cumpre realizar audiências públicas para novas reflexões, aprimorando os textos.
JONES FIGUEIRÊDO ALVES – O autor do artigo é desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco e Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade Clássica de Lisboa. Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), coordena a Comissão de Magistratura de Família. Autor de diversas obras jurídicas, integra a Academia Pernambucana de Letras Jurídicas. (APLJ).
Fonte: Consultor Jurídico. Coluna Processo Familiar, em 20.03.2016
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