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Novo CPC não recriou ou restaurou a separação judicial
Em 2010, com a Emenda Constitucional 66, foram removidos os últimos obstáculos para realização direta do divórcio judicial ou extrajudicial, no Brasil: as exigências de prévia separação judicial ou prévia separação de fato mínima de dois anos. Essa interpretação, que se tornou dominante, deve orientar a aplicação do CPC de 2015, quando alude à separação.
Após o advento da EC-66, o divórcio (direto) passou a conviver com a separação de fato, sem natureza de pré-requisito para aquele, e a separação de corpos. A separação de fato do cônjuge é contemplada no parágrafo 1º do artigo 1.723 do Código Civil como pressuposto de constituição de união estável, que não depende de prévio divórcio do novo companheiro, além de gerar dois outros efeitos: cessação dos deveres conjugais e interrupção do regime matrimonial de bens. A separação de corpos pode ser utilizada quando há ameaça ou consumação de violência física, psicológica ou social de um dos cônjuges contra o outro, ou contra os filhos, ou por quem deseja legitimar sua própria saída, para que não se caracterize o inadimplemento do dever conjugal de “vida em comum, no domicílio conjugal” (artigo 1.566 do Código Civil), ainda que este não tenha qualquer efeito ou consequência para o divórcio.
Os tribunais de Justiça estaduais consagraram fortemente a interpretação da revogação (e extinção) da separação judicial, em virtude de incompatibilidade com a norma constitucional de 2010, rejeitando a fundamentação do divórcio na culpa ou em qualquer outra causa subjetiva ou objetiva.
No mesmo sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça em 2014 (REsp 1483841) que: “1. Em razão da modificação do artigo 226, parágrafo 6º, da CF, com a nova redação dada pela EC 66/10, descabe falar em requisitos para a concessão de divórcio. 2. Inexistindo requisitos a serem comprovados, cabe, caso o magistrado entenda ser a hipótese de concessão de plano do divórcio, a sua homologação” (dispensou a audiência de conciliação).
Em outro julgado, mais incisivo, decidiu também em 2014 o STJ (REsp 236619) que “após a EC 66/10 não mais existe no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação judicial. Não foi delegado ao legislador infraconstitucional poderes para estabelecer qualquer condição que restrinja o direito à ruptura do vínculo conjugal”. O tribunal confirmou a conversão de ofício da separação judicial em ação de divórcio.
Não se pode extrair do CPC de 2015, quando alude à “separação”, um conjunto sistemático de normas que autorize afirmar que remete às normas revogadas do Código Civil relativas à separação judicial.
Destaquemos as referências encontradas no novo CPC à separação:
O primeiro artigo (artigo 23), onde há alusão expressa à “separação judicial”, é norma de Direito Internacional Privado, ou de conflito de leis, cuidando da competência da autoridade judiciária brasileira, para proceder à partilha dos bens situados no Brasil de estrangeiros ou domiciliados fora do Brasil.
Há quatro alusões à “separação”, sem qualificação:
1. No artigo 53, I, que trata de competência do foro;
2. No artigo 189, II, relativo ao segredo de Justiça;
3. No artigo 189, parágrafo 2º, que permite certidão do dispositivo da sentença em processo com segredo de Justiça;
4. No artigo 693, que define as ações de família, incluindo a separação.
Há duas alusões à “separação convencional”:
1. No artigo 731, que regula a homologação do divórcio ou da separação convencionais;
2. No artigo 733, que faculta o divórcio ou a separação consensuais mediante escritura pública, não havendo nascituro ou filho incapaz.
E, finalmente, uma única alusão à “separação de corpos”, no artigo 189, II, incluindo-a no segredo de Justiça.
A norma constitucional, nomeadamente a advinda com a EC 66/2010, revogou, por incompatibilidade, todas as normas do Código Civil que regulamentavam a antiga redação do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição, relativa ao requisito prévio de separação judicial. Houve revogação na modalidade tácita.
Se a norma jurídica desaparece, não pode ressurgir, quando a norma revogadora é revogada, ou quando a norma nova remete à norma antiga revogada. Segundo o artigo 2º, parágrafo 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, “salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência”.
Assim, para que a norma anteriormente abolida se restaure, é necessário que a norma nova expressamente regule a matéria. Não foi o que aconteceu com o CPC de 2015. A inclusão do termo “separação”, ao lado da normativa do divórcio, teve o propósito de provocar efeito repristinador. Contudo, se a matéria relativa à separação judicial fora revogada pela EC-66/2010, ela não poderia ser restaurada pela simples menção à separação na lei processual, pois remete ao que já não existia.
Dois caminhos se apresentam ao intérprete, relativamente às alusões feitas no CPC de 2015 à “separação”: 1) entender que são inconstitucionais e, portanto, inválidas tais alusões, por contrariedade à Constituição; 2) promover a interpretação em conformidade com a Constituição, de modo a lhe conferir sentido válido, sem redução do texto legal. Adotamos este caminho.
Sendo assim, qual o sentido que se deve conferir ao termo “separação”, que aparece sem qualificação nos quatro preceitos acima referidos do CPC de 2015? Não pode ser outro senão à separação de fato ou à separação de corpos, as quais, como vimos, permanecem com efeitos próprios após o início de vigência da EC-66/2010. Não é à separação judicial, porque não mais existe no ordenamento jurídico, nem como requisito prévio nem como alternativa ao divórcio.
Vejamos, agora, como interpretar a expressão “separação convencional”, que comparece em dois preceitos, também referidos acima. Por não mais existir a separação prévia, que apenas dissolvia a sociedade conjugal sem dissolver o casamento, a expressão “separação convencional”, na lei processual, deve ser entendida como relativa à separação de fato. A separação de fato não necessita de acordo para que produza seus efeitos jurídicos, mas os cônjuges poderão dele se utilizar relativamente aos itens que, em sua falta, dependerão de decisão judicial: guarda e proteção dos filhos, eventual pensão alimentícia ao outro cônjuge, partilha de bens. Trata-se, portanto, de separação de fato convencional, não se confundindo com o instituto jurídico anterior da separação judicial. Esse acordo poderá ser objeto de homologação judicial ou de escritura pública.
Porém, essa convenção sobre a separação de fato não é necessária para o divórcio nem produz os efeitos da antiga separação judicial. É inevitável o questionamento: para que serve?
Se os cônjuges, separados de fato ou não, podem requerer a homologação judicial do divórcio convencional, sem necessidade de justificação ou causa ou prévio acordo, ou promover a escritura pública do divórcio convencional, permitindo-lhes dissolver o casamento, estando de pleno acordo com os itens previsto em lei, qual a necessidade de realizar tal “separação convencional”?
Perdida sua razão histórica fundada na indissolubilidade matrimonial e de obstáculo à obtenção do divórcio direto, sua permanência vai de encontro e não ao encontro dos valores contemporâneos que se projetaram na Constituição e no ordenamento jurídico brasileiros de autonomia e liberdade de entrar e sair de qualquer relacionamento conjugal.
Os fins sociais do divórcio direto e irrestrito, adotado pela Constituição, são, portanto, incompatíveis com qualquer dificuldade ou obstáculo que a ele se anteponha, ainda que sob o sedutor argumento de autonomia dos sujeitos.
Em conclusão, o CPC de 2015 não recriou ou restaurou a separação judicial, nem prévia nem autônoma. As normas revogadas do Código Civil permanecem revogadas. As alusões que faz a “separação” e “separação convencional” devem ser entendidas, residualmente, como referentes à separação de fato.
O artigo foi originalmente publicado na Revista Consultor Jurídico, no dia 8 de novembro de 2015.
*Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Foi conselheiro do CNJ.
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