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O reconhecimento da união homoafetiva e o estatuto da família
O RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA E O ESTATUTO DA FAMÍLIA
Flávia Scalzi Pivato
Advogada Supervisora do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Vila Velha (NUPRAJUR/UVV), mestre em Educação, Administração e Comunicação pela Universidade São Marcos (UNIMARCO - SP), Especialista em Família pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV) e graduada em Direito pela Universidade Bráz Cubas (UBC - SP).
RESUMO: O presente artigo científico tem como objetivo discutir a aprovação do Projeto de Lei nº 6583/2013 e o reconhecimento da Família Homoafetiva, fazendo um breve comparativo com a Constituição Federal e seus princípios, enfatizando a visão social atual a respeito do tema. Observar-se-á, ao longo do trabalho que há uma infração quanto ao tratamento desigual da realidade das famílias homoafetivas existentes na atualidade. Neste prisma, este artigo visa trazer a reflexão da realidade social diante da existência das Famílias Homoafetivas.
PALAVRAS-CHAVE: Estatuto da Família; Princípios; União Homoafetiva, Entidade Familiar.
INTRODUÇÃO
O assunto sexualidade suscita debates e traz a baila discussões morais, sociais, culturais, religiosas, mas no que tange ao afeto, dúvida não há de que se trata de sentimento nobre e que todo ser humano merece senti-lo. Por isso, quando se fala em família, nada mais justo do que considerar a afetividade como um dos seus elementos estruturais. Nos últimos dias nos deparamos com o Estatuto da Família que se limita a reconhecer somente como entidade familiar, o relacionamento afetivo entre homem e mulher, contrariando a Constituição Federal. Entretanto, a sociedade necessita de soluções para modalidade diversa de entidade familiar, a qual foi dissipada do Projeto de Lei nº 6583/2013. E como ficariam estas famílias homoafetivas que existem de fato e necessitam do Direito para compor os conflitos surgidos no cotidiano da vida social e familiar? É certo que a realidade produz efeitos jurídicos e, portanto, necessário haver o reconhecimento das relações afetivas entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. Neste artigo, foi tomado como objeto de estudo a união homoafetiva contemporânea, sendo imprescindível analisa-la sob a ótica constitucional, e em consideração aos princípios fundamentais e direitos e garantias fundamentais, bem como o princípio da solidariedade. Assim, toda a análise e interpretação serão pautados na visão atual do Direito de Família, na doutrina e jurisprudências dos nossos Tribunais Superiores .
Considerações Pertinentes as Entidades Familiares Homoafetivas diante dos princípios constitucionais e da Constituição Federal
As relações homoafetivas quando desfeitas, assim como o divórcio, precisam do amparo jurídico para a busca da solução para os litígios. Desta forma, deixar de reconhecê-la, conforme fez o Estatuto da Família, não trará soluções para a sociedade que se depara com esta modalidade de entidade familiar. Não há razão para exclusão do reconhecimento da família homoafetiva, uma vez a dignidade da pessoa humana dever ser preservada. Os laços afetivos que ligam as pessoas transcende à sexualidade, e, portanto, não pode haver desigualdade no tratamento. Assim, entendeu o Supremo Tribunal Federal, explicando que “o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica”.
Apesar da previsão contida no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, tratando-se dos direitos fundamentais à dignidade da pessoa humana, relevante se faz traçar princípios que também resguardam a entidade familiar. Para tanto, o indivíduo na sociedade, representa e reflete uma realidade que merece respeito e respaldo jurídico não somente como indivíduo. Mas, também como sujeito integrante de entidade familiar, seja pela modalidade das famílias anaparentais, as famílias parentais; bem como as famílias homoafetivas.
Assim, o princípio da solidariedade traça paradigma nas relações de afeto em que a cooperação, a igualdade substancial e a justiça social se tornam valores principais do ordenamento. O referido princípio implica respeito e consideração mútuos em relação aos membros da entidade familiar. Desta forma, independentemente do vínculo biológico e jurídico, merece a prevalência dos laços afetivos entre os integrantes desta espécie de família.
Ainda é importante lembrar que todas as entidades familiares estão em pé de igualdade, em atenção ao princípio da igualdade entre as entidades familiares.
A visão do direito de família no Código Civil de 2002 e do Supremo Tribunal Federal
A Constituição Federal é marco histórico temporal quando se refere ao Direito de Família. Isto porque houve o reconhecimento da união estável e a possibilidade de convertê-la em casamento, estabelecendo assim regulamentação do que a sociedade já vivenciava há tempos. Resta estampada a pretensão de contornar as distinções, preconceitos e desigualdades existentes no Direito de Família brasileiro. Então, o Código Civil de 2.002, abarcou a união estável, conforme previsão contida no artigo 1.723, reconhecendo a família constitucionalizada. Observa-se a existência de diversos núcleos de relacionamentos afetivos, dentre eles, a própria união estável. Daí por diante, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4277 de 05/05/2011, declarou a inconstitucionalidade de distinção do tratamento legal da união estável heteroafetiva e homoafetiva, abrindo espaço para resolução nº 175, de 14 de maio de 2013, do Conselho Nacional de Justiça que vedou às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. A interpretação conforme o artigo 1.723 do Código Civil, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, veda que, na sua aplicação, se extraia qualquer significado que impeça o reconhecimento de união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, como entidade familiar.
A concepção da União Homoafetiva como Entidade Familiar e O Estatuto da Família
O Estado tem seu papel de mediador dos conflitos sociais, portanto, deve acompanhar a evolução da sociedade, objetivando a pacificação pela adequação ao novo contexto apresentado pela sociedade contemporânea, através do Direito. Deixar de reconhecer os novos núcleos familiares existentes na atualidade é retroceder e desrespeitar a Constituição Federal e o Direito de Família. Apesar de não haver especificamente a regulamentação do reconhecimento das famílias homoafetivas, a interpretação da lei merece se dar de forma inclusiva, considerando que não há normas proibitivas.
Relevante ponderar que a união estável irradia suas consequências em diversos campos, “projetando-se nas relações patrimoniais, de índole econômica, e também nas relações pessoais, domiciliadas no âmbito interno da relação mantida pelo casal”1.
Ainda afirmam os juristas, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald que:
“(...) o reconhecimento da união homoafetiva dentre do Direito de Família é imperativo constitucional, não sendo possível violar a dignidade do homem, por apego absurdo a formalismos legais”2.
Segundo Maria Berenice Dias, em seu artigo publicado no site do IBDFAM:
(...) a omissão preconceituosa do legislador, porém, não significa inexistência de direito. Não se pode falar em silêncio eloquente, com significado de conteúdo excludente. Ausência de lei não impede a inclusão no âmbito da tutela jurídica.3
A família homoafetiva é exemplo de família eudemonista, que possui amparo jurídico previsto na Constituição Federal e no Código Civil de 2.002, garantida pelos princípios constitucionais da igualdade, liberdade e dignidade.
Comentando o tema, preleciona MARIA BERENICE DIAS que:
O princípio norteador da Constituição, que serve de norte ao sistema jurídico, é o que consagra o respeito à dignidade humana. O compromisso do Estado para com o cidadão sustenta-se no primado da igualdade e da liberdade, estampado já no seu preâmbulo. Ao conceder proteção a todos, veda discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade e assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Mais: ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama (CF 5º): todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Esses valores implicam dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do Estado de Direito.4
Nos deparamos com a aprovação da redação do Projeto de Lei nº 6583/2013, que define a família como “o núcleo formado a partir da união entre um homem e uma mulher”. Percebe-se o esquecimento dos direitos de liberdade e igualdade e principalmente da importância das relações afetivas. Definitivamente, pode-se concluir que a denominação “Estatuto da Família”, é termo equivocado, tendo em vista que é contra todas as famílias que compõe a nossa sociedade contemporânea.
O não reconhecimento das uniões do mesmo sexo, conforme o Estatuto das Famílias, contraria além dos preceitos fundamentais da igualdade, da liberdade, da dignidade da pessoa humana, também a segurança jurídica. Vale ressaltar que todos esses direitos estão anunciados dentre os princípios e garantias fundamentais da Constituição brasileira e, são reconhecidos pela doutrina e jurisprudência do nosso sistema jurídico-legal. Aliás, é de suma importância o pilar de sustentação do Direito de Família, qual seja, o afeto.
A aprovação do Estatuto das Famílias destrói o progresso alcançado pelo direito brasileiro, através de julgados reconhecendo a união homoafetiva, representando o mencionado Projeto de Lei, o retrocesso. Diante disto, a sociedade não merece uma leitura homofóbica da Constituição Federal.
CONCLUSÃO
O Poder Judiciário ao reconhecer a união homoafetiva, fazendo valer os ditames constitucionais e os princípios norteadores do Direito de Família, demonstrou o amadurecimento e a progressão do Direito diante da realidade social. Já era tempo das uniões estáveis homoafetivas serem reconhecidas e obter a proteção em nossa jurisprudência e doutrina recentes. É imprescindível asseverar que o afeto é o principal fundamento das relações familiares. Com tudo isso, o Poder Judiciário fez valer um dos maiores princípios constitucionais, qual seja, o da dignidade da pessoa humana. Contudo, os posicionamentos contrários à necessidade social, precisam tirar a venda dos olhos e enxergar a realidade da sociedade, e ouvir o clamor, pois a Justiça somente se fará com o respeito aos direitos e garantias fundamentais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DIAS, Maria Berenice. Família ou famílias? Disponível em http://www.ibdfam.org.br/noticias/5784/Desabafo%3A+Fam%C3%ADlia+%C3%A9+no+plural. Acesso em outubro de 2.015.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, 542 p.
FARIAS, Cristiano Chaves de Farias; ROSENVALD, Nelson. A união estável (A família convivencial). In: ______. Direito das famílias. 2. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 427-509.
1 FARIAS, Cristiano Chaves de Farias; ROSENVALD, Nelson. A união estável (A família convivencial). In: ______. Direito das famílias. 2. ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 427-509.
2 FARIAS, Cristiano Chaves de Farias; ROSENVALD, Nelson. Op.cit, 2010. p. 427-509.
3DIAS, Maria Berenice. Família ou famílias? Disponível em http://www.ibdfam.org.br/artigos/1067/Fam%C3%ADlia+ou+fam%C3%ADlias%3F. Acesso em outubro de 2.015.
4 DIAS, Maria Berenice. Família ou famílias? Disponível em http://www.ibdfam.org.br/artigos/1067/Fam%C3%ADlia+ou+fam%C3%ADlias%3F. Acesso em outubro de 2.015.
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