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Construção social da paternidade resultante da interação entre pai e filho
Hodiernamente, a criança encontra-se num status de sujeito capaz, saindo, pois, de sinônimo de coisa, passando a sujeito objeto de tutela, até chegar numa posição elevada de sujeito de direitos. Enfim, um sujeito capaz.
A indagação básica que aqui se propõe é a seguinte: “Seria legítimo um pai biológico elidir a relação construída entre uma criança e um pai sócio-afetivo em face dos direitos fundamentais da criança e do adolescente?”
A afirmação da impossibilidade dessa desconstrução é a hipótese pela qual seguiremos, por um caminho lógico-argumentativo visando a sua demonstração.
O Marco Teórico neste caso, ou Aparato Teórico, ou mesmo Farol Teorético, pode ser delimitado no conceito de paternidade sócio-afetiva, defendida por Villela, já na década de 80, e a doutrina do "best interest of the child", que busca, cada vez mais, a autonomia da criança e do adolescente. Em outras palavras, o menor não é só objeto de tutela, mas autor de seus próprios direitos, inclusive o de "escolher" seu próprio pai, construindo assim uma legítima relação de paternidade.
O tema tratado mostra-se viável por se tratar de um ponto extremamente relevante que não só se atém à comunidade jurídica, mas enfim, à comunidade em geral. Afinal tal tese não se direciona a um ou a alguns, mas pode se dar a qualquer um, ou a todos, sem exceção ou regra definida. Ademais disso, apresenta-se como um problema original, por não haver grandes estudos ou obras a respeito.
Algumas pesquisas científicas sobre o tema já foram elaboradas, mas, porém, além de raras, apresentam-se, no mais das vezes, com bastante precariedade. O novo Código Civil, recentemente em vigor, e que, para muitos, já nasce velho (tal expressão já virou quase que um aposto quando se trata da questão “O Novo Código Civil”), deixou de abordar assuntos polêmicos tais como a paternidade socioafetiva ou a desbiologização da paternidade, além de outros importantes pontos de debates, como a Biotecnologia, a Guarda Compartilhada, a União Civil de Pessoas do Mesmo Sexo.
A filiação é hoje tema ligado a três tipos de formulações no que tange à paternidade, quais sejam: a paternidade jurídica, a paternidade biológica e a paternidade socioafetiva ou desbiologização da paternidade.
Na legislação brasileira a paternidade jurídica se impõe à paternidade biológica e, a socioafetiva sequer (ou minimamente) é aqui considerada. Esta última, para nós brasileiros, somente pode ser vista em alguns poucos artigos jurídicos (que, apesar de escassos, alguns bastante respeitados, principalmente na doutrina estrangeira) ou em doutrinas esparsas.
O ponto categórico deste trabalho, conforme dantes mencionado desenvolve-se em torno do seguinte mote: “Seria legítimo o pai biológico desconstruir a relação entre uma criança e um pai sócio-afetivo com base nos direitos fundamentais da criança e do adolescente?”
A paternidade nos dias de hoje é vista levando-se em conta tão-somente a vontade do pai, desconsiderando ou não despejando o devido valor ao que realmente pensa e deseja a criança - o filho.
A verdade, porém, e principalmente graças à colaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, é que a tendência hoje é de se considerar a criança um sujeito de direitos, sujeito capaz, e não coisa ou objeto de tutela como anteriormente. Como prova disso, podemos nos voltar à Convenção sobre os Direitos da Criança adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989, que serviu de inspiração e corroboração pelo Brasil quando da elaboração do ECA (Lei 8.069/1990), em 13 de setembro de 1990.
A Convenção dos Direitos da Criança, em seus artigos 12, 13 e 14, trata, respectivamente, da autonomia e da capacidade de entendimento da criança, da liberdade de expressão, incluindo aí a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e idéias de todo tipo, da liberdade de associação e da liberdade de pensamento, de consciência e de crença, in verbis:
Art.12
1- Os Estados Partes assegurarão à criança que estiver capacitada a formular seus próprios juízos o direito de expressar suas opiniões livremente sobre todos os assuntos relacionados com a criança, levando-se em consideração essas opiniões, em função da idade e da maturidade da criança.
2- Com tal propósito, proporcionar-se-á à criança, em particular, a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais de legislação nacional.
Art.13
1- A criança terá direito à liberdade de expressão. Esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e divulgar informações e idéias de todo tipo, independentemente de fronteiras, de forma oral, escrita ou impressa, por meio das artes ou de qualquer outro meio escolhido pela criança.
2- O exercício de tal direito poderá estar sujeito a determinadas restrições, que serão unicamente as previstas pela lei e consideradas necessárias:
a) para o respeito dos direitos ou da reputação dos demais, ou
b) para a proteção da segurança nacional ou da ordem pública, ou para proteger a saúde e a moral públicas.
Art.14
1-Os Estados Partes reconhecem os direitos da criança à liberdade de associação e à liberdade de pensamento, de consciência e descrença.
2- Os Estados Partes respeitarão os direitos e deveres dos pais e, se for caso, dos representantes legais, de orientar a criança com relação ao exercício de seus direitos de maneira acorde com a evolução de sua capacidade.
3- A liberdade de professar a própria religião ou as próprias crenças estará sujeita, unicamente, às limitações prescritas pela lei e necessárias para proteger a segurança, a ordem, a moral, a saúde pública ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais”.
Analisando os artigos supra em, sua íntegra, percebe-se que a “orientação” é no sentido de que prevaleça a vontade da criança, sendo claro, pois, que limitada à observância de sua idade e do seu grau de maturidade e, primordialmente, desde que visando o seu próprio bem aliado ao da família.
O ECA em seus artigos 16 e 111, por exemplo, aborda, respectivamente, a capacidade no direito positivo e a capacidade de entendimento do menor, como se depreende, in verbis:
Art.16. O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:
I – ir, vir, e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais;
II – opinião e expressão;
III – crença e culto religioso;
IV – brincar, praticar esportes e divertir-se;
V – participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI – participar da vida política na forma da lei;
VII – buscar refúgio, auxílio e orientação.
(...)
Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:
I – pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente;
II – igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
III – defesa técnica por advogado;
IV – assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei;
V – direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
VI – direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento.
Para a doutrina tradicional brasileira, mais especificamente aquela atinente ao Código Civil dos idos de 1916, em seus artigos 5º e 6º, a incapacidade era vista como algo imutável e inarredável, que não vislumbrava nenhum tipo de situação peculiar, nem mesmo a idade ou o grau de maturidade para se tentar estabelecer ou considerar, ao menos, a capacidade de entendimento.
A propósito, sobre a capacidade de entendimento, STANCIOLI, neste sentido expõe, e, com ele concordamos, o seguinte:
“[...] a capacidade de entendimento (Einsichtsfähigkeit) denota o domínio cognitivo e habilidade decisional, ou “poder de avaliar”, julgar”. Este outro critério leva em conta, portanto, o ethos crítico da pessoa natural, tendo em vista sua maturidade e educação. Não apresenta critérios objetivos, mas deve ser avaliada de forma situacional. Em outras palavras, busca-se analisar se o indivíduo tem capacidade para uma tarefa determinada. A capacidade de entendimento tem, portanto, uma imbricação muito mais íntima com a autonomia da vontade”. (STANCIOLI, 2001, p. 02)
Objetiva-se aqui realizar um trabalho de indução à desvinculação do fator meramente biológico ou jurídico, para uma inclusão do papel social do pai (e da mãe também, por evidente). Nesta linha é que o Estatuto veio a ampliar o conceito de pai, dando-lhe a importância de função social. Aliás, como bem assegura Pereira:
“[...] o direito ao pai é condição básica para que alguém possa existir como sujeito. Portanto, é mais que um DIREITO FUNDAMENTAL, é o DIREITO FUNDANTE DO SER HUMANO COMO SUJEITO. Desta forma, podemos dizer que sem paternidade não é possível existir o sujeito, ou seja, não há sujeito sem que alguém tenha exercido sobre ele uma função paterna”. (CUNHA PEREIRA, 2001, p. 07)
Assim, como afirma Cunha Pereira anteriormente, sendo o direito a um pai mais que um direito fundamental, este se torna muito mais legítimo quando é exercido consentaneamente com a real vontade da criança.
Neste sentido, e em outra ocasião, o autor anteriormente referido pontuou com bastante segurança, e não menos sapiência que:
“Temos de achar um meio-termo, pois não se pode retirar do laço biológico sua vinculação familiar. Esse vínculo também é importante e deve ser considerado. A idéia não é excluir o laço biológico, mas incluir a paternidade socioafetiva. E aí teremos de criar normas de condutas para regular essa situação. É por isso que têm sido desenvolvidos estudos e teorias (...) neste sentido: pensar a família a partir da cidadania, da inclusão e dos direitos humanos” (CUNHA PEREIRA, 2002, p. 6-7).
Ora, nas sociedades modernas, e em especial no Direito de Família, o afeto é considerado, mais e mais, um elemento de importância basilar. Principalmente em se tratando de questões de foro tão íntimo e delicado como aquelas diretamente atinentes ao menor e seus direitos.
Continuando nesta linha de raciocínio, João Batista Villela magistralmente asseverou interessantes questões:
“Que os próximos tenham uma palavra a dizer, é justo, natural e razoável. Mas não têm – nem eles nem mesmo os pais – o direito de dispor do pátrio poder. O pátrio poder é uma verdadeira magistratura doméstica. Não uma simples faculdade ou um mero direito, senão um poder-dever que, sob a supervisão permanente e contínua do Estado, se exerce no interesse exclusivo do menor. Nenhuma deslocação se faz nesse domínio sem que o juiz primeiro o investigue e depois o decida”. (VILLELA, 2003, p.10)
Nesta mesma ocasião, comentando episódios ocorridos após a morte da cantora Cássia Eller, em 29 de dezembro de 2001, em que restou pública e notória a discussão relativa acerca de com quem deveria ficar Chicão, filho da cantora, salientou Villela que, não obstante a decisão ter sido sábia nos resultados, ao sentenciar que Chicão ficaria sob a guarda de Eugênia, companheira de Cássia Eller durante todos os anos de vida da criança, e não com seu avô Altair Eller, a mesma foi equívoca nos fundamentos. Afinal, para o professor, a observação do magistrado de que só homologou o desejo das partes é equivocada e desprovida de razão. Ainda, que “tutela não se defere segundo o desejo das partes que a estejam postulando, senão segundo o superior interesse do menor. Tal seja a situação, fora do desejo das partes e até mesmo contra o desejo das partes”. (2003, p.10).
É notório que após a ruptura do Estado Liberal e, posteriormente, do Estado Social, insurgiu-se, o paradigma constitucional do Estado Democrático de Direito, tendo como característica um Direito pluralista, participativo e constituído por uma sociedade aberta, detentora de interesses dos mais variados. Houve, pois, uma significativa evolução no que tange à atividade do juiz, exigindo-se que este não mais se posicionasse somente perante os textos jurídicos dos quais se extrairia a norma, mas sim, também, dos elementos fáticos do caso concreto.
À vista de um Estado Democrático de Direito como ora predomina, é característica e marcante a existência de interesses diversos e conflitantes, conseqüência natural de uma sociedade pluralista em que há multiplicidade de valores, culturas e multiplicidade de concepções de formas de vida, como aqui temos. O pluralismo é idéia ínsita ao paradigma do Estado Democrático de Direito.
Adicionando ao discurso de Villela, quando este salienta que os próximos é que têm o direito de manifestar-se na busca de um provimento jursidiconal, mas que, muito além disso, é imprescindível ouvir o maior interessado, o menor, surge Günther. Este último defende uma justiça avaliada de forma imparcial pelo juiz. Mas esta imparcialidade se dá no sentido de que se deve “levar em conta a reconstrução fática de todos os ‘afetados pelo provimento’” (CARVALHO NETTO, 1999, p. 481). Os destinatários do provimento jurisdicional devem, nesse sentido, participar diretamente, em simétrica paridade.
Deste modo, resta claro ser tal discussão condizente com a realidade atual. Basicamente, é essa a preocupação deste trabalho: desvendar o verdadeiro papel da criança hoje, tanto perante a família, quanto perante a sociedade, evidenciando, assim, sua vontade baseada nos direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Villela situa seu raciocínio em cima da idéia de desbiologização da paternidade frente `as teorias da paternidade jurídica e da paternidade biológica e, ao fazê -lo, ele preleciona com extrema sabedoria que:
“Em momento particularmente difícil, quando o mundo atravessa aguda crise de afetividade, e dentro dele o País sofre com seus milhões de crianças em abandono de diferentes graus e espécies, a consciência de que a paternidade é opção e exercício, e não mercê ou fatalidade, pode levar a uma feliz aproximação entre os que têm e precisam dar e os que não têm e carecem receber”. (VILLELA, 1979, p.417)
Portanto, trata-se de considerar que o direito vigente, pois, é o da criança de “escolher” um pai (consentaneamente com a vontade deste), e não do pai de, simplesmente, “aceitar” o filho. Afinal, conforme se aventou, a criança encontra-se numa posição de sujeito de direitos, sujeito capaz e, como tal, tem liberdade de expressão e de idéias. Assim, o enfoque central a ser defendido é a construção social resultante da interação entre pai e filho.
Alias, bastante ajuizada a declaração de Villela em sua obra, Liberdade e Família, quando afirma que, em suma, a maior função da família moderna se traduz na pedagogia da escolha , fundada, essencialmente, na liberdade; na liberdade de escolher.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO NETTO. Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, Belo Horizonte: Mandamentos, mai./1999, p. 473-486
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. Pai porque me abandonaste? [texto on line]. Disponível em
CUNHA PEREIRA, Rodrigo da. A vitória da ética sobre a moral. Revista jurídica Del Rey. Belo Horizonte, ano IV, n.º 8, p. 5-8.
STANCIOLI, Brunello. Sobre a Capacidade de Fato da Criança e do Adolescente: Sua Gênese e Desenvolvimento na Família [texto on line]. Disponível em
VILLELA, João Baptista. Desbiologização da Paternidade. Revista da Faculdade de Direito [da] Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, nº 21, maio, 1979, p. 401-419.
VILLELA, João Batista. Despreparo ou Manipulação? A tragédia Cássia Eller um ano depois. Revista Jurídica Del Rey. Belo Horizonte, ano V, n.º 10, p. 9-10.
VILLELA, João Baptista. Liberdade e Família. Belo Horizonte: Movimento Editorial [da] Faculdade de Direito da UFMG, 1980.
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