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Com avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes
Pessoas com deficiência mental ou intelectual deixaram de ser consideradas absolutamente incapazes. O Código Civil de 1916 qualificava-as como “loucos de todo o gênero” e as impedia, pela interdição, de praticar qualquer ato da vida civil. O Código Civil atenuou essa discriminatória qualificação, mas manteve a incapacidade absoluta para pessoas com “enfermidade ou deficiência mental”, sem o necessário discernimento para a prática desses atos.
Após cinco séculos de total vedação jurídica, no Direito brasileiro, tudo mudou com o advento da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno brasileiro por meio do Decreto Legislativo 186, de 9.7.2008 e por sua promulgação pelo Decreto Executivo 6.949, de 25.8.2009. Finalmente, a Lei 13.146, de 6.7.2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), regulamentou a Convenção.
A Convenção considera pessoas com deficiência (e não “portadoras de deficiência”) as que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas. O artigo 12 da Convenção estabelece que as pessoas com deficiência “gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida”; essa capacidade legal é mais ampla que capacidade civil em geral. A Convenção explicita, sem configurar enumeração taxativa, que a pessoa com deficiência pode possuir ou herdar bens, controlar as próprias finanças e ter igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro.
Após o início de vigência da Convenção, no direito brasileiro, em 2009, portanto, a pessoa com deficiência não mais se inclui entre os absolutamente incapazes de exercício dos direitos. A Convenção, nessa matéria, já tinha derrogado o Código Civil. A Lei 13.105, de 2015, tornou explícita essa derrogação, ao estabelecer, em nova redação ao artigo 3º do Código Civil, que são absolutamente incapazes apenas os menores de dezesseis anos, excluindo as pessoas “com enfermidade ou deficiência mental” e qualificando como relativamente incapazes os que, por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade (na redação originária, eram absolutamente incapazes).
Porém, em situações excepcionais, a pessoa com deficiência mental ou intelectual poderá ser submetida a curatela, no seu interesse exclusivo e não de parentes ou terceiros. Essa curatela, ao contrário da interdição total anterior, deve ser, de acordo com o artigo 84 do Estatuto da Pessoa com Deficiência, proporcional às necessidades e circunstâncias de cada caso “e durará o menor tempo possível”. Tem natureza, portanto, de medida protetiva e não de interdição de exercício de direitos.
Essa específica curatela apenas afetará os negócios jurídicos relacionados aos direitos de natureza patrimonial. A curatela não alcança nem restringe os direitos de família (inclusive de se casar, de ter filhos e exercer os direitos da parentalidade), do trabalho, eleitoral (de votar e ser votado), de ser testemunha e de obter documentos oficiais de interesse da pessoa com deficiência. O caráter de excepcionalidade impõe ao juiz a obrigatoriedade de fazer constar da sentença as razões e motivações para a curatela específica e seu tempo de duração.
Assim, não há que se falar mais de “interdição”, que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos.
Quem pode promover essa específica curatela e quais os procedimentos que devem ser adotados?
O novo CPC revogou os artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil, justamente os que tratam da promoção da curatela (“interdição”), aparentemente por disciplinarem assuntos de direito processual e não de direito material. O novo CPC desconsiderou tanto o projeto de lei que se converteu no Estatuto da Pessoa com Deficiência, quanto, o que é mais grave, a Convenção promulgada em 2009, que tem força de emenda constitucional (Constituição, artigo 5º, § 3º), por ser matéria de direitos humanos, com supremacia sobre qualquer lei ordinária. Nos artigos 747 e seguintes, o novo CPC, alude a “interdição” e a “interditando”, quando não há mais nem uma nem outro.
O Estatuto de 2015, por sua vez, publicado posteriormente ao novo CPC, restaura os artigos do Código Civil relativos à curatela revogados por este, dando-lhes nova redação, em conformidade com a Convenção. Ocorre que tanto o novo CPC quanto o Estatuto estabeleceram diferentes tempos para vacatio legis: o Estatuto entrará em vigor no dia 3 de janeiro de 2016 (180 dias) e o novo CPC no dia 17 de março de 2016 (um ano). A desatenção do legislador fez brotar essa aparente repristinação. Assim, os artigos 1.768 a 1.773 do Código Civil, relativos à curatela, terão nova redação dada pelo Estatuto, mas apenas produzirão efeitos durante dois meses e quatorze dias, sendo revogados com a entrada em vigor do novo CPC.
As regras do novo CPC deverão ser interpretadas em conformidade com as da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pois esta tem força normativa superior àquele, relativamente á curatela especial, como medida protetiva e temporária, não sendo cabível a interpretação que retome o modelo superado de interdição, apesar da terminologia inadequada utilizada pela lei processual.
Ainda bem que duas inovações da Lei 13.146/2015 escaparam dessa confusão, criada pelo novo CPC: a curatela compartilhada e a tomada de decisão apoiada. Pela primeira, a pessoa com deficiência poderá contar com mais de um curador, para incumbências específicas; pela segunda, a pessoa com deficiência poderá escolher pelo menos duas pessoas para apoiá-lo no exercício de sua capacidade. A segunda, dependente de decisão judicial, não se confunde com a curatela e tem por objetivo, principalmente, o apoio para celebração de determinados negócios jurídicos; se houver divergência entre os apoiadores e a pessoa apoiada, caberá ao juiz decidir.
Paulo Lôbo é advogado, doutor em Direito Civil pela USP, professor emérito da UFAL e diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família. Foi conselheiro do CNJ.
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