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É preciso amar como se não houvesse eleições
Em 13 de julho de 2015 o estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069 de 13/07/1990) completa 25 anos de idade. Ele continua sendo um dos textos normativos mais avançados do mundo e modelo de inspiração para vários países. Introduziu novas concepções jurídicas e maneiras de ressocializar crianças, como um verdadeiro tratado de Direitos Humanos, e acima de tudo outorgando um lugar de sujeito de direitos à criança e adolescente.
Apesar do belo e moderno texto, crianças e adolescentes continuam sendo abandonados pelos pais e também pelo Estado. O conteúdo político do ECA não efetivou de maneira satisfatória e o problema e necessidade de milhares de crianças abandonadas e pobres no Brasil. Neste sentido podemos dizer como Lacan, que “a criança não existe”, copiando o seu aforismo “a mulher não existe” e que tanto inquietação e indignação ainda provoca. Mas foi a partir dessa negação que se pôde dar à mulheres um estatuto de sujeito. As crianças, como os idosos, os loucos, índios, transexuais não fazem parte da engrenagem da máquina política, mesmo nos regimes que se anunciam democráticos. Criança não dá voto.
Não há políticas públicas sérias para a implementação dos direitos das crianças e adolescentes. Por isso o Congresso Nacional tapa o sol com a peneira ao querer reduzir a maioridade penal, querendo que a população acredite que isto vai reduzir ou amenizar a violência no Brasil: “As crianças arregimentadas pelo crime são evidências de nosso fracasso em cuidar, educar, alimentar e oferecer futuro a um grande número de brasileiros. Esconder nossa vergonha atrás das grades, não vai resolver nosso problema” (Maria Rita Khel, Folha de S.Paulo de 14/6/15, pag. A3).
Os políticos, que defendem a ideia da diminuição de maioridade penal, certamente nunca visitaram um abrigo de menores. Se, e quando visitarem, certamente mudarão de opinião, se forem políticos realmente comprometidos com o interesse e direitos das crianças e adolescentes. Se realmente interessassem por esses adolescentes, que querem que estejam atrás das grades, cuidariam deles implementando políticas públicas sérias que certamente diminuiria a criminalidade. Detalhe: a quase totalidade são adolescentes pobres.
As crianças e adolescentes infratores são fruto do descaso e do abandono dos pais e também do Estado, que tem também a função simbólica do Pai. Mas o que é o Estado, senão a composição de forças políticas do executivo, legislativo e judiciário? Já virou piada dizer “culpa do governo”, ou seja, culpa de ninguém. Mas os políticos que propõem e defendem a redução da maioridade penal, são também responsáveis por essa situação de marginalidade e criminalidade. Será que estão realmente interessados em resolver a situação da criminalidade?
Na raiz do problema está o abandono, que gera não apenas a criminalidade, mas o trágico desfecho do aumento de usuários de drogas, gravidez indesejada na adolescência, enfim, todos sintomas do mesmo abandono, que o Estado insiste em não ver. Melhor esconder todos estes sinais e sintomas, assim eles param de nos incomodar. E, jogando para debaixo do tapete tudo isto, ainda parece que estão fazendo um bem à humanidade. Isto pode dar muitos votos e continuar elegendo e mantendo o poder. Deveriam se preocupar, por exemplo, em melhorar o serviço de adoção de crianças e adolescentes. Há milhares à espera de pais adotivos.
Mas o sistema de adoção no Brasil é caótico. Não apenas por falta de boa vontade dos políticos, mas também porque ela está envolvida em muitos preconceitos. Muitas pessoas deixam de adotar por achar que filho adotivo é problemático. Ora, todo filho dá problema, adotivo ou não. O problema está é na forma como se lida com o abandono e o desamparo, que é estrutural em todos nós; a própria lei de adoção contém preceitos equivocados em relação ao conceito de família, porque, para se adotar, tem que se esgotar todas as possibilidades da criança permanecer na família extensa (biológica).
Apesar da antropologia e psicanálise já terem esclarecido ao mundo que a família é muito mais da ordem da cultura e não da natureza, o poder judiciário continua interpretando a lei ao pé-da-letra, desconsiderando toda a evolução científica, e empurrando crianças para seus parentes que não querem adotá-las, e as recebem porque não conseguem ficar livre da culpa de não recebê-las. Nestes casos, a adoção não é por amor, mas por culpa, mesmo em detrimento das milhares de pessoas dispostas a serem pais e mães amorosos; a lentidão dos processo de adoção é um desestímulo e uma insegurança para quem pretende adotar, aliado ao risco de no meio do caminho, após estabelecido laços de família, ter que devolver a criança ou adolescente para o abrigo ou pai biológico, como já aconteceu.
Além disso, o Ministério Público, demora requerer a destituição do poder familiar, requisito para que a criança seja adotada. Tal demora, por mais razões que se queira dar, não se justifica. Ora, se não se concretizar a destituição, ótimo, pois significa que a criança restabeleceu seu vínculo com os pais biológicos. Se destituído o poder familiar, também atenderá ao melhor interesse da criança, pois significa que ela será entregue à pais adotivos e ganhará uma nova família.
O sistema de adoção no Brasil é caótico, não apenas por uma lei deficitária e preconceituosa. Sua ineficiência, afora a boa vontade do Conselho Nacional de Justiça, que tem expedido regulamentos para melhorar o serviço de adoção, nenhuma politica pública efetiva tem sido feita. Crianças ficam anos em abrigos à espera de pais adotivos, enquanto pais adotivos esperam meses e anos por uma criança. Uma verdadeira crueldade! Assim como querem adolescentes atrás das grades aos 16 anos, querem que esta realidade continue invisível aos olhos da população. As crianças desapareceram das ruas para ficarem nos abrigos, ou perambulando pelas cracolândias da vida.
É preciso mudar a qualidade do serviço público de adoção e do sistema de medida socioeducativa para a verdadeira implementação dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, e consequentemente adoções mais seguras, rápidas e eficazes, evitando assim que crianças se tornem “institucionalizadas” nos abrigos, que os “filhos do crack” não se tornem os “netos do crack”. Para isto bastaria mudar o olhar e a perspectiva para o verdadeiro interesse das crianças e adolescentes. Mas para chegarmos a esta sonhada realidade de implementação de verdadeira e eficazes políticas públicas é preciso amar como se não houvesse eleições.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil, autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise e advogado em Belo Horizonte.
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