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O despertar da consciência da homoafetividade feminina
A história mostra que as mulheres sempre tiveram um papel secundário nas decisões familiares políticas e nos meios de produção. Durante um longo período da humanidade, os meios de produção eram exclusividade dos homens. A própria História era escrita sob sua ótica. As leis eram criadas por eles somente para favorecê-los.
As mulheres eram relegadas ao ostracismo e suas vontades subjugadas aos interesses dos homens, que as oprimiam, limitando-as às atividades domésticas, formando-as para o matrimônio e a procriação. Ainda assim, algumas delas conseguiram se destacar, v.g., Joana D’Arc que, pela sua coragem, assumiu na sociedade posições firmes na defesa de seus ideais.
A maioria das mulheres, antigamente, era criada para servir aos ímpetos masculinos, principalmente o sexual, deixando de lado, por seu turno, o desejo sexual feminino.
Com a revolução industrial, a mulher começou a ocupar espaços na vida econômica, participando ativamente da renda familiar, ganhando um tímido respeito no meio social, conquistando a independência financeira e o reconhecimento profissional.
A partir dos anos 60, com o surgimento do movimento feminista, as mulheres conquistaram maior liberdade sexual e de expressão.
Mesmo tendo conquistado a liberdade, não era fácil para elas exporem a sua sexualidade, e, mais difícil ainda, exporem a homossexualidade. Ser mulher homossexual era uma aberração da natureza, um pecado, um crime.
Durante todos esses séculos, pouco se tem notícia da homoafetividade feminina. Uma das primeiras mulheres homossexuais que se ouviu falar foi a poetisa grega Safo (625-580 a.C.), cujo nome derivou o termo safismo, que significava o amor entre mulheres. Safo era natural de Lesbos (Ilha do Mar Egeu), região da qual se extraiu a segunda denominação, qual seja, o lesbianismo. Esse termo ainda é utilizado até hoje para identificar mulheres que se relacionam amorosa e sexualmente com outras mulheres.
Mais do que uma denominação o termo “lésbica” era uma taxação, um convite à discriminação, uma condenação para o resto da vida. A mulher não podia nem pensar em expor a homossexualidade como orientação sexual, tendo a sua consciência obrigada a se adaptar interna e externamente ao comportamento que a sociedade impunha, e, que no passado era imposta pela lei, vez que se considerava crime – como ainda é considerado em alguns países árabes - relações sexuais entre duas pessoas do mesmo sexo.
A repressão sexual exercida contra as mulheres inibiu as manifestações homossexuais femininas, obrigando-as a viverem em silêncio, transparecendo até hoje um número bem menor em relação aos homossexuais masculinos.
Roger Raupp Rios comenta que é “Importante atentar para a perspectiva masculina predominante na caracterização dos atos homossexuais. Com efeito, amores sexuais femininos mereceram menor atenção e mais difusa repressão, na medida em que às mulheres era reservado um papel secundário na sociedade, desde o início do cristianismo até a metade do século XX.[i]”
Como conseqüência da repressão que sofrem, muitas delas só descobrem ou assumem o seu lado homossexual depois de adulta, quando independentes financeiramente, mesmo depois de casadas. Elas se sentem assustadas e pressionadas por todos. Por um lado à sociedade as condenam e impõe um comportamento heterossexual. Por outro, a sua consciência reage, mostrando que, para ser feliz, é preciso libertar seus sentimentos, anseios e desejos.
As reações são diversas quando descobrem suas verdadeiras orientações sexuais. Ocorre, por parte de algumas, uma mudança de vida responsável pelo abandono do todo o passado amoroso à conseqüente experiência de viver um novo amor (homossexual). Outras levam uma vida paralela, quer dizer, mantendo as aparências para a sociedade e, ao mesmo tempo, assumindo um amor homossexual às escondidas. Por fim, há aquelas que não têm coragem de ir de encontro aos valores tradicionais e se mantêm em um relacionamento frustrado, vivendo um amor homossexual platônico, sem manter nenhuma atividade sexual prazerosa, sempre se aproximando da pessoa amada, sem revelar os seus sentimentos.
O receio que a mulher tem de ser discriminada ao “sair do armário” é muito maior em relação aos homossexuais masculinos, os quais assumem sua condição e são aceitos com maior freqüência pela sociedade. A maioria delas esconde sua orientação sexual por medo da discriminação. Segundo Charlotte Wolff “As lésbicas levam uma vida subterrânea e usam máscaras em seus contatos com o mundo exterior”[ii]. A comunicação delas funciona como uma rede invisível, onde a identificação é quase imperceptível pela sua menor exposição. Em seguida a mesma autora aduz que “Precisa-se muita percepção e olho vivo para identificá-la pela conduta expressiva. Ela se trai pelos gestos inconscientes e nisso se parece com o tipo feminino do homossexual”[iii].
A lésbica vive presa à sua consciência sem a possibilidade de expor seus sentimentos e afetos, isso porque, quando identificadas como homossexuais, passam a conviver com o estigma da anormalidade e são colocadas à margem pela sociedade.
Esse “desvio de comportamento” conduz a um escasso enfrentamento da matéria por escritores e repórteres. Por isso é que os relatos e reportagens apresentados em livros e revistas sobre lésbicas são em números bem menores que em relação aos gays. Estamos diante de um reflexo da opressão sofrida ao longo dos anos, e, em conseqüência dessa opressão, ocorre uma menor exposição pública das mulheres homossexuais.
O medo de perder o emprego, a amizade e o respeito fazem com que as lésbicas tenham uma tendência introspectiva, tornando-as angustiadas e agressivas quando provocadas.
Segundo Charlotte Wolff “a lésbica vive entre a simulação mágica do amor romântico na vida particular e a tensão nervosa do fingimento constante na vida profissional”.[iv] O vínculo emocional representa a essência da homoafetividade feminina, por isso elas exigem entre si: amor, afeto, companheirismo, bondade, tolerância, compreensão e sexo.
A sua inibição decorre da preocupação em proteger a identidade sexual que, se for divulgada, poderá trazer graves transtornos para sua vida futura, pessoal e profissional. Então, quando elas se sentem acuadas e isoladas por conta da orientação sexual, seus sentimentos freqüentes são de: agressividade, angústia, solidão, nervosismo, depressão e ódio. Com isso, são encontrados em muitas homossexuais femininas um elevado índice de envolvimento com bebidas alcoólicas, cigarros, drogas e até suicídios, cujas causas verdadeiras não são registradas.
O respeito às lésbicas somente acontece quando elas se destacam profissionalmente, seja na música, na literatura, ou ainda, como profissional liberal de renome. Fora isso, são rejeitadas pela sociedade, sendo inclusive motivo de críticas, insinuações, discriminações e violências.
Para reduzir o preconceito e a discriminação, os homossexuais contam como aliados os meios de comunicação que trabalham em duas vertentes: 1) Por um lado eles divulgam os crimes homofóbicos praticados contra os homossexuais, e, 2) por outro, fazem campanhas educativas para reduzir o preconceito e a discriminação, introduzindo em seus programas, cenas do cotidiano de personagens homossexuais, a exemplo da novela que passou na Rede Globo “Mulheres apaixonadas” que apresentou duas adolescentes que se amavam, porém não eram aceitas pela família e pela sociedade. Esses programas tentam mostrar a igualdade entre as pessoas, de uma maneira natural.
As constituições democráticas voltam o foco para o cidadão, enfatizando como princípios fundamentais o direito à liberdade, à igualdade e à dignidade, e condena aquele que praticar qualquer tipo de discriminação ou violência contra as minorias.
Esses princípios fundamentais formam a sustentação para o princípio basilar da constituição, objetivo supremo do ser humano, que é o direito à felicidade.
O conceito de felicidade é subjetivo, onde cada pessoa tem uma definição própria, de acordo com a formação familiar, religiosa, ideológica e cultural, e ainda, conforme suas ambições, sonhos e limites impostos pelas leis e pela sociedade.
A felicidade plena, planejada por cada um de nós, não é fácil de ser alcançada. Para isso é preciso coragem e persistência para encontrá-la. É necessário sintonizar o eu interior e o eu exterior. O principal caminho para alcançar a felicidade é não ter receio de expressar seus sentimentos e desejos, assumindo os sentimentos e desejos interiores.
Todavia, não basta que a pessoa se assuma para que a felicidade seja plena. É preciso uma maior conscientização do indivíduo com o fito de observar a Lei Maior, reduzindo o preconceito e a discriminação, aceitando as minorias do jeito que elas são.
Apesar das garantias constitucionais, a sociedade ainda mantém costumes seculares, desrespeitando o cidadão com suas características particulares, seja pela cor, sexo, idade ou outra qualquer. Isso porque nem sempre o que a Carta Constitucional prescreve, a sociedade aceita e cumpre, porque o preconceito social ainda está enraizado na cultura e nos costumes da população que ainda oprimem a consciência do cidadão.
O direito à objeção de consciência é um instituto que pode auxiliar o cidadão a ter proteção em face do poder familiar e das normas sociais impostas, que oprimem a liberdade da orientação sexual, que é um direito constitucional, uma vez que se trata de liberdade de consciência prevista em algumas constituições democráticas, a exemplo da brasileira, nos artigos 5º, IV e VI e 143, § 1º.
O caminho é árduo, contudo, se forem respeitados os princípios constitucionais, juntamente com uma mobilização do governo federal lançando campanhas educativas e uma maior conscientização da população respeitando as diferenças das pessoas, o preconceito e a discriminação vão ser reduzidos gradativamente, tornando o mundo não apenas mais cidadão e sim mais humano.
(*) Advogado no Estado de Sergipe; Área de atuação: Direito Previdenciário e Família; Membro do IBDFAM - Instituto Brasileiro do Direito de Família; Associado do IEDC – Instituto de Estudos Direito e Cidadania.
E-mail: joalberto1@bol.com.br
BIBLIOGRAFIA
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