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Desrespeitar diferentes formas de família não é cristão nem ético
A nostalgia das antigas utopias, da família ideal e patriarcal, as noções de esquerda e direita, gradativamente vêm sendo substituídas pelas noções de público e privado. Por isto a relação das pessoas com a pátria se inverteu: não são mais as pessoas que devem servi-la ou sacrificar-se por ela. É a pátria, a nação, que deve estar a serviço das pessoas. Por essa razão, a História e a Política hoje se escrevem e se inscrevem é a partir da vida privada , que começa e termina na família. E assim a principal razão política dos Estados democráticos contemporâneos está na vida privada e, portanto, na família.
Mas quando falamos de família devemos pensá-la em seu sentido maior e mais profundo: o núcleo formador e estruturador do sujeito. É ali, e a partir dali, que tudo se inicia. São os núcleos familiares que formam a nação. Pátria é a família amplificada. Mas não estamos mais no tempo da família singular. A família hoje é plural, aberta, fraterna, solidária, menos hierarquizada, menos patrimonializada, mais autêntica e mais verdadeira. Os políticos e legisladores que não entenderem isto, e ficarem paralisados em sua utopia saudosista já estão condenados a terminar a vida no “tal do bloco da saudade”, como diz a música do Martinho da Vila.
Há um descompasso entre a realidade das famílias e os textos legislativos brasileiros, que não traduzem e nem refletem a vida como ela é. Ainda há milhares de famílias à margem da legislação, como aquelas que se constituíram paralelamente à outra família, até então denominadas pelo Código Civil de 2002 pelo estigmatizante nome de concubinato. Essas e outras famílias continuam condenadas à invisibilidade jurídica e social, repetindo as injustiças históricas de ilegitimação, exclusão e expropriação de cidadanias, como se fez até pouco tempo com os filhos havidos fora do casamento, que recebiam a pecha de ilegítimos, espúrios, bastardos e outras designações discriminatórias. Foi neste sentido que o Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), após discutir com a comunidade jurídica, elaborou o Estatuto das famílias, apresentado ao Congresso Nacional pela Senadora Lídice da Mata (PSB-BA) e que tramita sob o número PLS 470/13. Ele vem no espírito de se construir micro sistemas para assegurar uma justiça mais ágil e próxima da realidade, a exemplo do Estatuto da Criança e do Adolescente, do Idoso etc. Assim, ele revoga todo o Livro de Família do CC/2002 e instala novas regras, mais modernas, e que realmente atendam a realidade e inclua e dê um lugar social a todos os núcleos familiares.
Copiando a ideia do nome “Estatuto das Famílias” foi apresentado na Câmara um Projeto Lei a que denominaram “Estatuto da Família”. Maliciosamente, e para tentar aprovar o tal projeto, têm feito circular nas redes sociais de computador pergunta que induz a resposta: família é formada por homem e mulher? A resposta é óbvia. Claro que sim. Mas não apenas por homem e mulher. E assim, a população induzida a erro tem respondido positivamente a este projeto, que na verdade deveria ser chamado de Estatuto contra a Família. Sim, porque ele pretende excluir milhares de famílias da ordem jurídica e social, “tapando o sol com a peneira”, como se essa realidade não existisse.
O Direito de Família contemporâneo está intrinsecamente ligado aos Direitos Humanos. Não é possível desconsiderar todas as conquistas sociais feitas a duras penas e às custas de muito sofrimento ao longo da história. É anticristão continuar marginalizando e excluindo pessoas e famílias em razão de suas escolhas diferentes dos padrões tradicionais. Os “fariseus” que dizem defender a “tradição, família e propriedade”, são os mesmos que condenam à morte milhares de mulheres pobres que fazem aborto. Ora, ninguém é a favor do aborto, mas tão somente ao direito de fazê-lo, ou não. O aborto é livre no Brasil, basta ter dinheiro para pagar por ele: “Deixemos de hipocrisia. Nossa legislação só não muda porque as mulheres de melhor poder aquisitivo abortam em condições relativamente seguras. As mais pobres é que correm o risco de morte e sentem na pele os rigores da lei” (Drauzio Varella, Folha de S.Paulo, 7/3/15, p. E8).
É inconcebível que em pleno século XXI, após o desenvolvimento e compreensão das noções de sujeito de direitos e desejos, da dignidade humana, e de Estado laico, alguém ainda queira excluir o próximo da ordem social e jurídica em razão de suas preferências sexuais e formas de constituir família. A religião que deveria ensinar o amor ao próximo, a tolerância, compreensão e solidariedade, tem sido invocada para interpretações constitucionais equivocadas. Será que esses defensores da moral e bons costumes realmente acreditam no que estão “pregando em nome de Deus”, ou fazem isto apenas por interesses de mercado ou razões eleitoreiras? Pode-se até não gostar, não querer que a família tenha mais liberdade e mais autonomia, mas ninguém tem o direito de excluir e não permitir que as pessoas possam escolher as formas de viver sua conjugalidade e parentalidade.
É preciso parar de legislar em causa própria e aprender a conviver com a alteridade, isto é, respeitar as diferentes formas de viver e não querer impor ao próximo o seu próprio ideal. Isto não é cristão e nem ético. Quer gostemos ou não, queiramos ou não, a família transcenderá sempre a sua historicidade, pois ela é da ordem da cultura, e não da natureza. Portanto novas estruturas parentais e conjugais estão em curso. E, por mais que variem, por mais diferentes que sejam ou venham a ser, ela terá sempre consigo aquilo que ninguém quer abrir mão, que ela seja o locus do amor do companheirismo, da privacidade. E o Estado deve respeitar e proteger todas as formas de constituição de famílias, parentais e conjugais. Esta é a verdadeira politica de um Estado laico e democrático.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), doutor (UFPR) e mestre (UFMG) em Direito Civil, autor de vários artigos e livros em Direito de Família e Psicanálise e advogado em Belo Horizonte.
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