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A proteção da família no Direito Sucessório: necessidade de revisão?
Muito se discute sobre a pertinência de o ordenamento jurídico garantir para certos parentes parte da herança de forma obrigatória, limitando a liberdade de testar. No Brasil, a legítima dos herdeiros necessários é fixada em metade da herança, sendo herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes, o cônjuge e, para boa parte da doutrina e da jurisprudência, o companheiro.
Argumenta-se que a legítima dos herdeiros necessários concilia no Direito Sucessório a autonomia privada quanto às disposições causa mortis e a proteção da família, garantindo aos familiares mais próximos e dependentes do autor da herança uma proteção de cunho patrimonial.
Sem dúvida, a proteção da família é objetivo que encontra amplo respaldo na normativa constitucional, valendo ressaltar que a Constituição Federal prevê que o Estado deve garantir assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, demonstrando uma preocupação com os membros da família e não com a instituição familiar em si mesma, em clara busca da concretização da dignidade da pessoa humana no âmbito do Direito de Família.
Nesse cenário, questiona-se se essa proteção direcionada à pessoa de cada um dos que integra a entidade familiar encontra-se na legítima dos herdeiros necessários, uma vez que, em relação aos descendentes e aos ascendentes, por exemplo, não há qualquer diferenciação nas regras sucessórias com base nas características e especificidades dos herdeiros, bastando que integrem tal categoria de parentes para que possam ser considerados herdeiros necessários.
De fato, uma das críticas que é direcionada ao Direito Sucessório é a sua neutralidade, já que, no Brasil, raras vezes a lei estabelece a divisão da herança com base em critérios concretos de proteção da pessoa de cada um dos que integram a família, como ocorreu com a lei 10.050/2000, que previu o direito real de habitação em relação ao único imóvel residencial do monte para o filho órfão portador de deficiência que o impossibilitasse para o trabalho, incluindo o § 3º ao art. 1.611 do Código Civil de 1916.
Quanto ao cônjuge, o legislador brasileiro tenta adequar a sua tutela sucessória ao regime de bens do matrimônio quando há a concorrência com os descendentes, objetivando criar um sistema que afasta a herança nesses casos quando o cônjuge já é contemplado com parte do patrimônio do casal por força da comunhão, assentando o pressuposto sucessório não apenas na conjugalidade, mas também nas relações concretas patrimoniais decorrentes do regime de bens do matrimônio.
Em que pese tal constatação, o que se percebe é uma má sistematização da matéria no inciso I do art. 1.829 do Código Civil, que ao se valer de um critério abstrato, a saber, o regime de bens em si do casamento, gera inúmeras distorções, exatamente porque o critério deveria ser concreto, ou seja, deveria estar baseado no resultado da aplicação das regras do regime de bens no patrimônio do casal, de forma a realmente alcançar uma gradação da tutela sucessória do cônjuge conforme as relações patrimoniais decorrentes do regime matrimonial de bens.
Paralelamente, assiste-se na jurisprudência posições que, ao argumento de uma interpretação sistemática da lei, afastam o cônjuge casado pelo regime da separação total convencional de bens da sucessão, quando a lei prevê exatamente o oposto, sob a alegação de que, ao eleger o regime de separação de bens, não pretendiam os nubentes instituírem-se herdeiros recíprocos, mas, ao contrário, pretendiam exatamente uma total separação patrimonial.
Dito diversamente, tal posicionamento jurisprudencial pretende que as consequências do regime de bens do casamento sejam projetadas para a atribuição de direitos sucessórios ao cônjuge quando em concorrência com os descendentes, estendendo-se, também, para as hipóteses de sucessão entre pessoas casadas pelo regime de comunhão parcial de bens, quando se argumenta que, nesses casos, a sucessão do cônjuge só poderia ocorrer em relação aos bens que integram o patrimônio comum do casal, porque os demais foram escolhidos pelos nubentes para integrarem patrimônio exclusivo e particular de cada um.
Tal posição jurisprudencial está em franca oposição ao princípio presente no art. 426 do Código Civil, que veda que a herança de pessoa viva seja objeto de contrato. Sem dúvida, se o legislador proíbe os pactos sucessórios, resta incoerente justificar a exclusão do cônjuge da sucessão com base em manifestação de vontade que, em relação à herança, é vedada nos negócios celebrados com efeitos inter vivos, como ocorre com o pacto antenupcial.
Ainda quanto ao cônjuge, é possível encontrar na jurisprudência decisões que, também ao arrepio do texto da lei, afastam o direito real de habitação previsto no art. 1.831 do Código Civil quando o cônjuge sobrevivente já é detentor de imóvel que lhe garante a moradia, demonstrando a preocupação de a tutela sucessória imiscuir-se nas especificidades daquele que é agraciado com a herança do falecido, em crítica ao dispositivo referido que acabaria, em certos casos, protegendo excessivamente o cônjuge em detrimento dos descendentes ou dos ascendentes.
As aludidas posições jurisprudenciais parecem direcionar a análise para um debate mais amplo, a saber, aquele relativo à imposição de uma legítima para certos parentes, demonstrando um reclame por uma ampliação da liberdade de testar e por uma revisão da posição neutra do Direito Sucessório em relação às singularidades dos chamados à sucessão.
Com efeito, diante da igualdade entre os cônjuges na família; da maior expectativa de vida das pessoas, que leva à sucessão em favor dos filhos quando estes já alcançaram a idade adulta e aquela em que mais se produz e em favor dos pais quando estes estão muito idosos e dependentes e, ainda, diante do fenômeno cada vez mais comum da recomposição das famílias em virtude dos divórcios e das novas núpcias, pondera-se se a proteção à família extraída da legislação sucessória está realmente em consonância com a proteção da família fundada na pessoa de cada um de seus membros, como determina o mandamento constitucional fundado na dignidade da pessoa humana.
Nessa perspectiva, a legislação sucessória deveria prever uma especial atenção aos herdeiros incapazes e idosos e, ainda, aos cônjuges e companheiros quanto a aspectos nos quais realmente dependiam do autor da herança, buscando concretizar na transmissão da herança um espaço de promoção da pessoa, atendendo às singularidades dos herdeiros, em especial diante de sua capacidade e de seus vínculos com os bens que compõem a herança, e, ainda, atendendo à liberdade do testador quando não se vislumbra na família aqueles que necessitam de uma proteção patrimonial diante da morte de um familiar.
Em suma, o estado atual do debate, hoje com foco na sucessão do cônjuge e, em consequência, naquela do companheiro, demonstra que a legislação sucessória precisa se encaixar na configuração da família atual, que é plural, igualitária e democrática, com atenção voltada aos vulneráveis, em especial às crianças, aos incapazes e aos idosos.
Ana Luiza Maia Nevares·
· Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora de Direito Civil da PUC-Rio e do Curso de Pós-Graduação lato sensu em Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Advogada.
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