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Inovações (e provocações) a respeito do Cumprimento da obrigação de prestar alimentos
O propósito que anima este ensaio perpassa pela necessidade de se compartilharem inquietações, provocações talvez, sobre algumas novidades trazidas pelo novo CPC, especialmente no que concerne ao cumprimento da obrigação de prestar alimentos, estabelecida por pronunciamento judicial. Diversas dessas inovações merecem aplausos; algumas, severas críticas; outras, detida reflexão.
Um primeiro ponto digno de aplauso parece surgir logo na epígrafe do Capítulo destinado à disciplina da matéria, cuja redação manteve mais simetria à natureza da obrigação alimentar (Parte Especial, Livro I, Título II, Capítulo IV). Outra inovação merecedora de elogios vem em seu artigo inaugural, cujo texto enuncia que “no cumprimento de sentença que condene ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixe alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em 3 (três) dias, pagar o débito, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo”, eliminando, de vez, as sérias e fundadas dúvidas a respeito do procedimento a ser aplicado à então execução da Decisão Interlocutória que fixava os alimentos provisórios. Agora, portanto, parece ter havido a definição no sentido de que o rito adequado à efetivação deste pronunciamento será o estabelecido pelos artigos 528/533 (na hipótese de ser pretendida a coerção pessoal) ou aquele disciplinado pelos arts. 523/527 (na hipótese de ser pretendida a coerção patrimonial), e não o procedimento adequado à efetivação das tutelas provisórias (arts. 297, §ún. c/c 520 e ss.), o que significa dizer que o seu cumprimento será sempre definitivo, embora seu processamento deva ocorrer em autos apartados (art. 531, §1º). Também parece não mais haver espaço a dúvida de que a intimação do executado deverá ser feita pessoalmente e de que a execução fundada em título executivo extrajudicial que contenha obrigação alimentar também comportará a incidência das regras inerentes a este rito, incluindo a possibilidade de decretação de prisão civil (art. 911, §ún.), o que será de enorme valia aos alimentandos que tiverem seus créditos alimentares estabelecidos em escrituras públicas de divórcio ou de separação jurídica, por exemplo.
Alçando ao estado de lei federal a orientação já predominante no STJ (REsp nº 750.805/RS, DJe de 16.06.09), o §1º do art. 528, em mais uma inovação elogiável, autoriza que o juiz mande protestar o pronunciamento judicial se o executado, no prazo referido no caput, não efetuar o pagamento, não provar que o efetuou ou não apresentar justificativa, devidamente comprovada, acerca de fato que gere a impossibilidade absoluta de efetuá-lo. Cumulativamente a esta medida, poderá ser decretada a prisão do executado pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses, se o débito alimentar perseguido compreender “até as 3 (três) prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo”, como deixam claro os §§3º e 4º do artigo sob comentário. Afora a louvável atitude de positivar aquilo que já representava o entendimento sumulado no enunciado nº 309 do Superior Tribunal de Justiça, a opção legislativa, neste ponto, talvez mereça mais críticas que elogios. Isto porque, desde a falta de definição sobre a possibilidade de o juiz decretar o segregamento de ofício, até a ampliação do tempo dessa custódia em relação àquele prescrito pela Lei de Alimentos, uma série de pequenas incoerências pode comprometer significativamente a estrutura do novo sistema, dificultando sua implantação no campo prático. Observe, para tanto, que o legislador parece ter contrariado a orientação que ilumina os prazos de duração de todas as medidas privativas de liberdade, independentemente de sua origem, pois estabeleceu o prazo prisional em meses, quando talvez devesse prestigiar a técnica de prazo em dias. Veja, ainda, que houve a definição de que “a prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns”, quando, de repente, a criação de um regime específico fosse mais adequado, sobretudo pela incoerência de se aplicar um regramento voltado para a sanção de índole punitiva a uma medida de natureza coercitiva que, por lei, deve ser cumprida em estabelecimento adequado ou em seção especial da cadeia pública, mas jamais na penitenciária, ambiente especificamente criado para os condenados à pena de reclusão em regime fechado, nos termos dos arts. 87 e 201 da Lei de Execução Penal, aplicada em caráter excepcional às execuções de alimentos (STJ, HC nº 181.231/RO, DJe de 14.04.11). Isso sem falar que parecem ter sido ignorados os substanciosos estudos desenvolvidos na seara do Direito Penal, voltados à busca de alternativas menos severas de cumprimento de pena até mesmo para os réus condenados pela prática de crimes hediondos, não raro proporcionando a edição de súmulas pelos Tribunais de Superposição no sentido de admitir, por exemplo, a adoção do regime prisional semiaberto a reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos (STJ, Súm. 269), ou a progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado (STF, Súm. Vinculante nº 26). De mais a mais, não seria de se estranhar a altamente paradoxal possibilidade de um devedor de alimentos cumprindo a prisão sob as regras do regime fechado passar a possuir, ao menos em tese, o direito à percepção do auxílio-reclusão previsto no art. 116 do Regulamento da Previdência Social (Dec. nº 3.048/99), pois o dispositivo legal emprega indistintamente o vocábulo "reclusão", sem fazer qualquer referência a crime ou à origem da medida privativa de liberdade, mas tão somente ao fato objetivo de haver segurado recolhido à prisão sob regime fechado ou semiaberto, o que poderia conduzir à absurda situação de o Estado acabar arcando com a dívida contraída pelo alimentante negligente, na medida em que os beneficiários da quantia são os dependentes do segurado, nos quais certamente se incluiria o credor promovente da execução de alimentos.
A preocupação ganha proporções ainda maiores quando se para pra pensar que o rito prescrito pelos artigos acima mencionados poderá ser aplicado ao cumprimento das sentenças que incluírem a prestação de alimentos indenizatórios, conforme expressamente previsto pelo art. 533. Mas, talvez as maiores críticas sejam direcionadas à não revogação expressa do art. 19 da Lei de Alimentos pelo art. 1.072, inc. V do CPC/15. É que, com a vigência simultânea dele e do art. 528, §3º do Código, a conhecida e criticada antinomia existente entre as regras prescritas pelos dois diplomas a respeito do prazo da prisão civil do devedor de alimentos continuará existindo no sistema. Isto porque, enquanto este artigo enuncia que “se o executado não pagar ou se a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do §1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses”, aquele preceitua que “o juiz, para instrução da causa ou na execução da sentença ou do acordo, poderá tomar todas as providências necessárias para seu esclarecimento ou para o cumprimento do julgado ou do acordo, inclusive a decretação de prisão do devedor [por] até 60 (sessenta) dias”, rendendo ensejo a dúvidas não só a respeito da vigência de dois prazos prisionais previstos para uma mesma hipótese fática, como também sobre a possibilidade de ser ordenada a prisão do executado pelo descumprimento de outros deveres que não o de propriamente pagar a dívida alimentar, como, por exemplo, o de prestar esclarecimento sobre algum ponto considerado duvidoso pelo juiz, o de se abster de criar inconvenientes à eventual penhora, na hipótese prevista pelo art. 530 ou de adotar conduta procrastinatória, na forma vedada pelo art. 532, dada a amplitude semântica de que este enunciado se reveste.
Bom, estes são os pontos que, provavelmente, mais acarretarão desconforto. Como o texto legal já foi sancionado praticamente sem vetos, resta-nos, agora, torcer para que os estudiosos se debrucem sobre essas e tantas outras inquietações e apresentem soluções para que o cumprimento da obrigação de prestar alimentos se desenvolva sem maiores percalços.
Rafael Calmon Rangel é mestre em Direito Processual Civil pela UFES, magistrado e associado ao IBDFAM.
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