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Considerações sobre a Lei nº 13.046 de 1º de dezembro de 2014
A fim de coibir a violência perpetrada em face de crianças e adolescentes e seguindo a mesma trilha da Lei Menino Bernardo (Lei nº 13.010/2014), veio à luz em 1º de dezembro de 2014, a Lei nº 13.046.
Trata-se de uma lei que inseriu três novos dispositivos na Lei nº 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente de maneira a aperfeiçoar o tratamento da prevenção à violência, especialmente no que tange à obrigação das entidades de terem, em seus quadros, pessoal capacitado para reconhecer e reportar maus-tratos de crianças e adolescentes (arts. 70-B; 94-A e 136, XII do ECA).
Passemos à análise destes novos dispositivos.
De início, impende lembrar que a Lei Menino Bernardo conceituou o que o considera castigo físico e tratamento cruel e degradante. A Lei nº 13.046, por sua vez, refere-se exclusivamente aos maus tratos que não foram definidos no ECA. Utiliza-se, então, a definição dada no art. 136 do Código Penal: “expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, que privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando dos meios de correção ou disciplina”. Assim, maus tratos abrangem, também, castigos físicos e tratamento cruel e degradante.
Com o fito de evitar os maus tratos em face de crianças e adolescentes, a Lei nº 13.046/14 inseriu no capítulo da prevenção do ECA, o art. 70-B determinando às instituições, públicas e privadas, a inclusão, em seus quadros, de pessoas capacitadas a reconhecer e comunicar ao Conselho Tutelar suspeitas ou casos de maus-tratos praticados contra infantes e jovens.
De logo, se verifica que bem andou o legislador a conferir proteção desde a suspeita dos maus tratos, o que pode evitar outras práticas de violência. Esta regra acompanha o que já preceitua o art. 13 do ECA, com a redação da Lei nº 13.010/14: “Os casos de suspeita ou confirmação de castigo físico, de tratamento cruel ou degradante e de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”.
Analisando o caput do art. 70-B, todavia, não se pode deixar de efetuar críticas à sua redação. O dispositivo aduz que a obrigação das instituições de inclusão em seus quadros de pessoas capacitadas a reconhecer aos maus tratos se estende às entidades que atuem nas áreas referidas do art. 71, dentre outras.
No que toca às entidades do art. 71, deve-se ter em mira que o legislador claramente equivocou-se ao mencionar esta regra. O art. 71 do ECA não dispõe acerca instituições. Diz o referido artigo que “a criança e o adolescente têm direito a informação, cultura, lazer, esportes, diversões, espetáculos e produtos e serviços que respeitem sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”. Ou seja, o intérprete do ECA ao invés de complementar a norma com o art. 71, deve buscar integração com o art. 90 que trata das instituições de atendimento.
Outra questão que merece destaque é a ausência de especificação de quais seriam as entidades obrigadas a terem esta equipe, na medida em que se reporta a “dentre outras”, expressão genérica que em nada favorece a interpretação da regra.
Estes erros materiais do art. 70-B nos parecem prejudiciais, pois o art. 245 do ECA, que tipifica a infração administrativa de deixar de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente, possui como sujeito ativo os profissionais de atenção à saúde, ensino fundamental, pré-escola e creche. Logo, as entidades do “art. 71 dentre outras” não estão sujeitas à sanção desta infração, em respeito ao princípio da legalidade. Melhor andaria o legislador se especificasse quais as entidades responsáveis e ampliasse o rol do art. 245.
A seguir, a nova lei preceitua no parágrafo único do art. 70-B que são igualmente responsáveis pela comunicação de que trata este artigo, “as pessoas encarregadas, por razão de cargo, função, ofício, ministério, profissão ou ocupação, do cuidado, assistência ou guarda de crianças e adolescentes, punível, na forma do Estatuto, o injustificado retardamento ou omissão, culposos ou dolosos”.
As atividades compreendidas como “cargo, função, ofício, ministério, profissão ou ocupação” engloba funcionários públicos, eclesiásticos, autônomos, enfim, todos aqueles que tiverem acesso à situação de violência perpetrada contra criança ou adolescente, na esteira do que já ditam os artigos 13, 18, 56, I e 70 do ECA e, principalmente, o art. 227 da Lei Maior que estabeleceu o princípio da cooperação ou da corresponsabilidade. No entanto, não se estabeleceu qualquer sanção em caso de descumprimento daquela regra do parágrafo único do art. 70-B.
A novel lei, também, determina no art. 94-A a capacitação da equipe a todas as entidades, públicas ou privadas, que abriguem ou recepcionem crianças e adolescentes, ainda que em caráter temporário. Inobstante tratar de instituições de “abrigamento e recepção de crianças”, a regra em comento foi inserida no bojo do preceito que cuida das entidades que desenvolvam programas de internação de adolescentes infratores.
A única interpretação possível para este outro equívoco legal é entender que a reforma visou alargar a abrangência da responsabilidade, não somente em defesa do adolescente infrator vítima de maus tratos, mas também na prevenção da violência em relação às crianças e adolescentes em acolhimento institucional.
Por fim, cabe destacar a inserção de nova atribuição ao Conselho Tutelar de cunho operacional voltada à política de atendimento (art. 136, inciso XII). Pela Lei nº 13.046/14, ao CT incumbirá “promover e incentivar, na comunidade e nos grupos profissionais, ações de divulgação e treinamento para o reconhecimento de sintomas de maus-tratos em crianças e adolescentes”. Percebe-se que nas duas últimas reformas do ECA (Lei nº 13.010 e Lei nº 13.046) privilegiou-se o trabalho do Conselho Tutelar em todas as suas vertentes no sistema de garantia de direitos, como expressão democrática do atendimento às crianças.
Depreende-se, assim, que as alterações conferidas pela Lei nº 13.046/14 ao ECA foram pontuais e, apesar dos evidentes erros materiais encontrados, fortalecem o enfrentamento dos maus-tratos praticados contra crianças e adolescentes ao envolver toda a sociedade, especialmente aqueles que diretamente cuidam desta parcela da população, ao exigir que as entidades possuam pessoas/equipes capacitadas para diagnosticar esta mal que atinge meninos e meninas brasileiras e possam comunicar ao Conselho Tutelar com provas mais substanciais para uma efetiva proteção das vítimas.
*Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel é Procuradora de Justiça da Infância e da Juventude do MPRJ e Presidente da Comissão da Infância e da Juventude do IBDFAM
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