Direito de Família na Mídia
Paternidade ignorada
03/05/2007 Fonte: Jornal de BrasíliaCerca de mil processos de reconhecimento de paternidade tramitam, mensalmente, na Promotoria de Defesa da Filiação do Ministério Público do Distrito Federal (MPDF). Isso significa uma média diária de 33 ações, movidas por mulheres na esperança de preencher o espaço em branco na Certidão de Nascimento onde deveria constar o nome do pai. Dos processos existentes, aproximadamente 200 vêm dos cartórios e o restante de mutirões de reconhecimento ou do atendimento a mães que vão à promotoria. A estimativa é que 12% das crianças nascidas no DF não sejam reconhecidas pelos pais.
Portanto, embora de acordo com o artigo 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) o reconhecimento do estado de filiação seja um direito garantido, é grande a quantidade de crianças e jovens que se vêem privados dele. Não existe qualquer controle oficial, no País e nos estados, sobre a quantidade de filhos não-reconhecidos. Entretanto, é possível dimensionar o grande volume de crianças e adolescentes nessa situação pela alta demanda de pedidos de reconhecimento que chega às instâncias da Justiça.
Certidões
O dado de crianças nascidas no DF que não possuem o nome paterno no registro foi obtido graças ao esforço da professora Ana Liése Thurler, do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Ela realizou um levantamento em mais de 183 mil certidões de nascimento de anos diferentes, em 10 cartórios do DF, e chegou aos 12% que, segundo ela, podem ser transpostos para a realidade de Brasília e demais regiões administrativas.
"Acompanhei alguns mutirões de reconhecimento da Promotoria de Filiação e essa média sempre se repetiu, com pequenas variações", explica a professora. Quanto ao Brasil, pode-se apenas supor que o índice de não-reconhecimento seja maior do que o do Distrito Federal. "Os indicadores sociais do DF são sempre melhores do que a média nacional. É uma constante", diz ela. Na França, onde é mantido um controle, apenas 2% das crianças nascidas não são registradas.
Cultura machista
Para Ana Thurler, o motivo da grande quantidade de filhos não-reconhecidos no Brasil é a prevalência, em pleno século XXI, de uma cultura machista. "Ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, sexista, na qual o homem não se sente comprometido a assumir os filhos tidos fora do casamento ou em uniões não-estáveis", analisa ela.
A pesquisadora da UnB também cita a incapacidade de o Estado assegurar alternativas de contracepção para as classes de renda mais baixa. "Como as mulheres de extratos sociais mais baixos muitas vezes não podem escolher entre engravidar ou não, acontecem muitas gestações indesejadas", argumenta Ana Thurler.
Lei ampara crianças não reconhecidas
Para que toda criança tenha garantido seu direito de filiação previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), foi aprovada, em 1.992, a Lei 8.560, que facilita o reconhecimento da paternidade. É graças a ela que, se a mãe declarar o nome do pai no momento do registro do bebê em cartório, uma ação de paternidade é iniciada automaticamente.
Também foi essa lei que determinou a criação de instâncias como a Promotoria de Filiação do Distrito Federal, que move ações sem quaisquer custos, e realiza mutirões (projeto Pai Legal) para reconhecimento sem necessidade de pagamento das taxas cartoriais para inclusão do nome do pai após a emissão do primeiro registro.
Atualmente, é preciso pagar em torno de R$ 108 pelo reconhecimento tardio em cartório. É possível mover uma ação gratuita de paternidade procurando os núcleos da Defensoria Pública, mas a Promotoria de Filiação do DF cuida exclusivamente deste assunto.
"A primeira coisa que fazemos é procurar o pai, por indicação da mãe da criança. Muitos vêm por conta própria aos mutirões e muitos não apresentam relutância quando são encontrados. Entretanto, caso não queiram registrar o filho, entramos com uma ação na Vara de Família do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT)", explica Renata de Salles, uma das duas promotoras que trabalham na Promotoria de Defesa da Filiação.
Para ela, ter o reconhecimento do pai biológico é uma questão que influi na auto-estima da criança. "O nosso objetivo é que nenhuma criança do Distrito Federal fique sem pai", declara. A partir do momento em que a Promotoria de Filiação move um processo, o TJDFT pede um exame de DNA.
Custo
O exame já chegou a custar R$ 2 mil em clínicas particulares, mas hoje está entre R$ 280 a R$ 300, valor que pode até ser dividido em parcelas. No entanto, caso a família não tenha condições ou o suposto pai se recuse a pagar as despesas, quem faz o teste é o Instituto de Pesquisa de DNA Forense da Polícia Civil.
"Há um decreto da Câmara Legislativa segundo o qual a Polícia Civil tem de realizar no mínimo 240 exames por ano. No ano passado, no entanto, fizemos 384. Como o DNA ficou mais barato, cerca de 30% da nossa demanda hoje é pelo exame post-mortem, que é feito quando o pai já faleceu e pode custar até R$ 7 mil", explica Cláudia Oliveira Mendes, diretora do DNA Forense. Como o exame sai muito caro, o Instituto de DNA Forense tenta ao máximo determinar a filiação usando material de parentes do falecido pai, mas nem sempre isso dá certo.
Mutirões da cidadania
A autônoma Rita das Graças Nunes, 43 anos, é toda elogios para o programa Pai Legal, do Ministério Público do DF. Graças a ele, o filho dela, Phelipe Vinícius Nunes Lourenço, 10 anos, foi reconhecido pelo pai nove anos após o seu nascimento.
Quando Rita começou a sair com o pai de Phelipe, o serralheiro José Lourenço, 60 anos, ele era casado. Um mês após começarem a se ver, a autônoma engravidou. Três meses depois, José ficou viúvo. "A esposa dele já tinha um câncer terminal. Mesmo antes de ela morrer, ele dizia que o Phelipe não ficaria desamparado, mas foi sempre adiando o momento de registrá-lo. Então, no ano passado, o mutirão Pai Legal veio aqui em Ceilândia e eu o chamei para ir", relata a mãe.
Segundo Rita Nunes, José Lourenço concordou tranqüilamente em comparecer ao mutirão para reconhecer o filho. "Acho que ele não registrava o Phelipe porque não tem muito dinheiro. Mas não posso reclamar dele como pai, porque sempre foi presente na vida do meu filho", comenta.
Hoje, Phelipe, que vive com a mãe perto da casa do pai, continua visitando-o sempre. A diferença é que agora, em sua Certidão de Nascimento, consta o nome do serralheiro. "O meu nome ficou mais bonito assim", orgulha-se o menino, que agora também assina Lourenço.
A professora Ana Liése Thurler reconhece que a Lei 8.560/92 trouxe alguns avanços quanto à questão da paternidade, e elogia o trabalho do Ministério Público do DF no sentido de cumpri-la, mas defende algumas mudanças na legislação relativa ao assunto.
"O Brasil deveria fazer o que já foi feito no Peru, em 2005: reverter o ônus da prova, que na Lei 8.560 cabe à mulher. É preciso dar mais crédito à mãe, o homem é que deve ter a obrigação de provar que não é pai", afirma a professora.
Vara
Entretanto, para Fernanda Xavier, juíza da Vara de Família do TJDF e professora de Direito de Família na UnB, a legislação atual já tem mecanismos satisfatórios para que nenhuma criança deixe de ser reconhecida. "Se o suposto genitor se recusar a fazer o exame de DNA, a Justiça presume que ele é de fato o pai. Não é automático, são necessárias testemunhas de que ele e a genitora tiveram um relacionamento, mas é um ponto a favor da mãe", diz.
Ela admite, no entanto, que é comum a pessoa apontada como pai não comparecer quando chamado a fazer o exame de DNA. "Nesses casos, vamos atrás dele, mas devido ao mecanismo da presunção, não é prudente e não adianta muito ele fazer isso", analisa.
Novo mutirão
Nesta segunda-feira (4/05), as crianças que não tiveram ainda a paternidade reconhecida têm uma boa oportunidade. A Promotoria de Defesa da Filiação, do Ministério Público do DF, realiza nova audiência do programa Pai Legal para atender as escolas de Ceilândia.
O mutirão, desta vez, ocorrerá na sede da administração regional, a partir das 14h, até quarta. O programa funciona em parceria com as escolas públicas. Por meio dele, a mãe assina uma declaração indicando o nome completo do pai e do seu endereço. Em seguida, o pai pode registrar a criança de imediato, como ocorreu com Rita e seu filho Phelipe.
Desde a primeira audiência do projeto, em 2002, mais de duas mil crianças obtiveram reconhecimento espontâneo da paternidade.
"Se o suposto genitor se recusar a fazer o exame de DNA, a Justiça presume que ele é de fato o pai"