Direito de Família na Mídia
Estupro Marital frente aos deveres conjugais
22/12/2016 Fonte: JusBrasilMesmo tratando se de uma cultura milenar, pois desde que o mundo existe, há essa idéia de submissão da mulher, onde ela era vista como um objeto, primeiramente de seu pai e posteriormente de seu marido. Porém, hoje com o avanço cultural, a inserção da figura feminina no mercado de trabalho vem quebrando esses paradigmas e, portanto, o empoderamento feminino é uma realidade incontestável.
Além disso, não é pela questão cultural que algumas violações legais devem ser ignoradas. O estupro marital é algo pouco visualizado e que se for considerado, de fato, uma conduta criminosa deve ser combatido e discutido pelos responsáveis por elaborar e aplicar leis, pela sociedade, e até mesmo por um trabalho de conclusão de curso. E a possibilidade do estupro dentro da relação conjugal é um tema bastante recorrente e deve ser estudado, pois os crimes contra a dignidade sexual já são de difícil comprovação, e quando o sujeito ativo é o marido essa questão torna se mais complicada.
Trata-se de um estudo de bastante relevância acadêmica e social pelo fato da possibilidade de tal conduta ser vista como crime, e não mais como um dever matrimonial.
A cultura quando é maléfica pode e deve ser modificada. E essa cultura de que a mulher deve satisfazer os desejos sexuais do marido independente de sua vontade perpetua a cultura do estupro, especificamente a do Estupro marital, que não deve ser propagada e sim combatida.
O desenvolver da sociedade é um fato notório, entretanto, resta claro que, ainda hoje está enraizado em nossa cultura o poder patriarcal, onde é pregada a submissão das mulheres em relação aos homens, e isso é um assunto que nos acompanha desde os primórdios das relações sociais.
A idéia de que a mulher era propriedade do homem, primeiramente do seu pai e irmãos, e educada para servir posteriormente a seu marido, é algo que vem sendo perpetuado desde que a sociedade existe, ou até mesmo antes dela, e mesmo hoje com todas as informações que se tem acesso, o avanço social e cultural pelo qual passamos o patriarcalismo ainda permanece encravado no subconsciente das sociedades atuais, que mantêm até involuntariamente essa cultura sexista.
Nesse sentido, uma das formas que retrata essa opressão perante à classe feminina é o estupro marital, pois historicamente a relação sexual estava ligada a um dever contratual ligada ao casamento.
O Estupro marital consiste na conjunção carnal forçada dentro da relação conjugal, ou seja, do marido e sua mulher, que foi tratada ao longo dos tempos como uma das obrigações do casamento, embora não existisse nada expresso.
A imposição social para que a cônjuge, independentemente de sua vontade, satisfizesse os desejos de seu marido, era tido como algo extremamente natural, afinal, a história e os costumes assim as educaram.
No mundo jurídico existem duas correntes contrárias a respeito de tal assunto. A primeira, defendida por alguns grandes doutrinadores, entre eles, Nelson Hungria, afirma que é impossível ocorrer o crime de estupro cometido pelo marido em relação a sua mulher, uma vez que a relação sexual entre pessoas casadas trata-se de uma das obrigações desse contrato, e, portanto, qualquer um dos consortes tem o direito de exigi-la. Magalhães Noronha concorda com esse posicionamento e aduz (1990, p. 70) “a violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo”
A segunda corrente é defendida por juristas como Damásio de Jesus e Mirabete, e vai de encontro com a primeira, quando os mesmos acreditam que é plenamente possível a ocorrência do estupro no âmbito conjugal, uma vez que a lei não permite o uso de violência ou grave ameaça na relação matrimonial, ou em qualquer tipo de relação social.
Conforme explica Damásio de Jesus (2000, p.96):
“Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual [...]. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”
E tem essa idéia complementada por Julio Mirabete (2003, p.411):
“Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial”
No livro dos delitos e das penas, Beccaria (2005, pag.48) diz:“Quanto maior for o número dos que compreenderem e tiverem entre as mãos o sagrado código das leis, menos freqüentes serão os delitos.”
Desse modo, quando a lei silencia a respeito de um assunto, a sociedade acompanha e cala-se também considerando a conduta delituosa como algo que se pressupõe legal.
Porém, o Código Penal brasileiro traz em seu artigo 213 o crime de estupro e diz em seu caput:
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos
O artigo é bem claro em suas palavras, e deve ser aplicado em qualquer situação onde tenha ocorrido o constrangimento no sentido de forçar, obrigar, subjugar a pessoa ao ato sexual e se relacionar com ela independente de sua vontade, sendo ela esposa ou não do agressor.
Posteriormente, a Lei Maria da Penha, criada em 2006, foi um marco no Brasil, e até mesmo no mundo, que trouxe para debate essa questão da violência contra a mulher, e seu artigo 7, III, in verbis:
Art. 7o São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.
Reforçando o que foi dito no Código Penal de que essa ação é uma conduta ilegal.
Uma das questões mais pertinentes a se resolver e analisar trazido pela jurisprudência relativo a esse tema é “o consentimento do ofendido”, que afastaria a ilicitude do ato, pois uma vez que a mulher aceitasse aquela condição, desapareceria o crime.
Outro ponto relevante seria sobre como comprovar a materialidade do delito conforme aduz Nucci:
Não se desconhece, por certo, a dificuldade probatória que advém de um estupro cometido no recanto doméstico, inexistindo muitas vezes, testemunhas da violência ou da grave ameaça, mas também porque singela alegação do cônjuge por ter sido vitima de estupro pode dar margem a uma vindita de ordem pessoal, originária de conflitos familiares. (NUCCI, 2010, p. 907).
Mas isso é algo bem peculiar que deve ser estudado com bastante cuidado, em razão de ser um assunto delicado e presente ao nosso redor, mesmo que de maneira imperceptível ou de pouca relevância.
Pode se ter esse contato com essa realidade quando assistimos à televisão e nos deparamos com esse tipo de situação que embora fictício causam um desconforto.
Dois exemplos que podem ser citados são: o da novela Gabriela, da obra de Jorge Amado, onde o coronel Jesuíno Mendonça, interpretado por José Wilker, para mostrar a sua mulher o seu devido lugar (já que trata de uma novela de época), a trata com rispidez e diz sempre para ela: “Deite que eu vou lhe usar”, se é da vontade dela ou não, pouco importa para ele.
Outro exemplo disso, esse bem mais forte, no meu ponto de vista, é da série de grande sucesso na atualidade, Game of thrones, a cena na qual Sansa Stark é obrigada a casar com lorde Ramsay Bolt, que a estupra sem nenhum remorso.
Embora isso tenha sido abordado em programas fictícios, nos apresentam uma triste e cruel realidade.
Países como Índia, China e Sudão do Sul, o estupro dentro do casamento não é nem cogitado, e a cultura de que para ter masculinidade depende desse poder sobre a mulher permanece em diversas civilizações, inclusive na nossa, onde até mesmo as mulheres não sabem que estão sendo vitimas de um crime, por achar que aquilo é seu dever como esposa.
Conseqüentemente, esse tipo de ato ainda é pouco denunciado, seja por não saber de seus direitos e/ou principalmente por medo, para tentar manter o núcleo familiar intacto. Prova disso é uma pesquisa realizada no Brasil em 2014 pelo Instituto de pesquisa econômica aplicada (Ipea) apontou que 25% das pessoas entrevistadas concordam que as mulheres devem satisfazer os maridos mesmo sem vontade e isso não seria estupro.
A cultura perpetuada atualmente em nossa população ainda reforça a supremacia masculina, mesmo que aos poucos venha sendo combatida, ela
permanece forte, sendo necessária a mudança da mentalidade social em conjunto, pois algo que é cultura hoje pode não ser amanhã, só depende do pensamento das pessoas de determinado grupo. Hoje a violência lato sensu contra a mulher é a violação de direitos humanos mais tolerados no mundo, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU).
E isso não pode ser tolerado, portanto, um assunto delicado, conhecido e encoberto que precisa ser discutido por nossa sociedade, uma temática que por tantas vezes fica silenciada dentro dos próprios lares, mas esse silêncio precisa ser quebrado e será.