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TJDFT condena pai por abandono afetivo
A 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) manteve sentença que condenou um pai ao pagamento de danos morais para o filho por abandono afetivo.
De acordo com a ação que tramitou na 3ª Vara Cível de Brasília, o autor relatou ter sofrido com a ausência do pai, que nunca fez questão de exercer o direito de visita estipulado no juízo de família. Marcava de ir encontrá-lo e não aparecia; telefonava bêbado e na companhia de mulheres estranhas; transferiu bens de sua propriedade para não lhe deixar herança; e sempre tratou os seus dois outros filhos do atual casamento de forma diferenciada. Revelou que, por causa desse abandono, foi acometido de doença pulmonar de fundo emocional e de problemas comportamentais. O autor pediu na Justiça a condenação do pai no dever de indenizá-lo em R$ 200 mil pelos danos morais sofridos por ter crescido sem o apoio e o auxílio paterno esperados.
O pai negou o abandono lamentado pelo filho. Afirmou que sempre esteve presente e o ajudou; que as visitas não eram realizadas regularmente porque a mãe dele impunha dificuldades, mas mesmo assim encontrava o filho em locais públicos; e que a instabilidade da ex mulher gerou situação desagradável para ele e sua atual esposa.
A juíza de 1ª Instância julgou procedente em parte o pedido indenizatório e arbitrou os danos morais em R$ 50 mil. De acordo com a magistrada, nas relações familiares, o dano moral afetivo ganha contornos diferenciados, não se descuidando que sua existência deve ser exceção e somente se configura quando claramente são comprovados os elementos clássicos do dever de indenizar: a) dano; b) culpa e c) nexo de causalidade.
Todavia, segundo ela, “não há danos morais diretamente decorrentes da falta de afeto, como parece pretender a expressão “danos morais por abandono afetivo”. A simples falta de afeto, ou mesmo a falta de amor, não são puníveis pelo ordenamento jurídico, considerando que não há qualquer obrigação jurídica de dar afeto. Na realidade, para que se fale em danos morais, é necessário perquirir sobre a existência de responsabilidade, no caso, subjetiva, que gere o dever de indenizar”.
Para a professora Dóris Ghilardi, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), a decisão está em consonância com o entendimento majoritário da doutrina. “E dentro dos critérios técnicos da responsabilidade civil, pode-se dizer que andou bem, tecendo uma análise cuidadosa dos pressupostos da responsabilidade civil, não só para entender cabível a indenização, mas também em relação à sua quantificação”, analisa.
Segundo a professora, para caracterizar o dever de indenizar não basta o abandono, posto que o dano não se presume por si só, não é hipotético. “O que se pode admitir nesses casos é tão somente a indenizabilidade do dano concreto e comprovado”, diz.
“A aceitabilidade da tese do autor não se deu a partir do pressuposto de que o simples abandono é apto a gerar o dever de indenizar. Cada um dos elementos da responsabilidade civil foi analisado e identificado como configurado e, somente após a verificação de preenchimento de todos eles, é que a sentença foi favorável ao pedido indenizatório”, explica.
“Tema precisa ser melhor debatido”
Dóris não é favorável à indenização por abandono afetivo. Para ela, o tema precisa ser “melhor” debatido. “Não se pode pretender resolver tudo pela solução simplória da indenização”, afirma.
Deslocar a questão do afeto para o cuidado, em sua opinião, não resolve o problema. “Obrigar alguém a amar ou a cuidar de outrem, no meu ponto de vista, são duas faces da mesma moeda, posto que, na prática, nascem não da razão ou da obrigatoriedade, mas da vontade, da espontaneidade e do querer. Requerem atitudes permanentes de dedicação e zelo, a fim de cumprirem o papel de garantir o equilíbrio emocional e a inserção social saudável do ser em desenvolvimento”, reflete.
Dóris diz que a função paterna não precisa necessariamente ser exercida pela figura do genitor, podendo ser substituída pelo avô, pela própria mãe ou por qualquer outra pessoa. “Na contemporaneidade, diante da descaracterização do modelo tradicional de família, cada vez mais isso se comprova”. Contudo, enquanto não estabilizado o assunto, a priori, não se pode afastar completamente a aplicação de indenização, explica.
“A sua incidência, em casos restritos, pode ser aceita desde que configurado o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, a saber: a conduta antijurídica, seja na forma de ação ou omissão, a existência do dano, do nexo causal e da culpa. A observância desses requisitos é fundamental para que se admita a aplicação das regras da responsabilidade civil ao direito de família, tornando a sua aplicabilidade criteriosa e, na maior parte das vezes, casuística, dada a sua característica de excepcionalidade”, esclarece.
O que diz a Lei
A indenização por abandono afetivo não está prevista em lei. O sistema brasileiro optou por trabalhar com um sistema aberto de responsabilidade civil, ou seja, não se tem na lei condutas taxativas do que caracteriza ou não um dano indenizável.
“O Código Civil traz uma cláusula geral do dever de indenizar no seu art. 927, combinado aos arts. 186 e 187, que tratam da ilicitude. Isso, na prática, dificulta, a priori, identificar uma conduta como apta ou não de ser indenizada. Se o dano material é mais facilmente identificável, em relação ao dano moral, várias críticas são tecidas pela ausência de rigor técnico, ao que de fato, o caracteriza”, observa a professora Dóris Ghilardi.
A tarefa se torna ainda mais árdua, segundo ela, quando se trata do direito de família, “pela própria especificidade e fragilidade das relações humanas, aliada à maior liberdade e autonomia de seus membros”.
De modo geral, o que se tem concluído é pelo cabimento da responsabilidade civil no direito de família, porém não de modo irrestrito. Remanesce, ainda, diversas controvérsias relacionadas ao alcance e caracterização de ilicitude nas relações familistas.
A professora conclui que o tema é “delicado” e controvertido em vários aspectos. “Tanto a doutrina quanto à jurisprudência são divergentes. Contudo, a doutrina já se mostra em maior parte favorável, ao contrário dos tribunais, que ainda é reticente na maioria dos julgados”, diz.
E conclui: “A temática é espinhosa e certamente não se restringe à consideração ou não da ilicitude decorrente da ausência paterna/materna na vida de um filho como conduta apta a gerar o dever indenizatório. A discussão vai mais além e requer ponderação das reais implicações do exercício do poder familiar até a efetiva compreensão de conteúdo e natureza jurídica do afeto/cuidado, sem descuidar-se dos principais motivos e interesses em jogo”.
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