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União poliafetiva: escritura é necessária?
Em 1º de abril, o funcionário público Leandro Jonattan da Silva Sampaio, de 33 anos, se uniu oficialmente a duas mulheres, no 15º Ofício de Notas, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Trata-se da primeira união estável poliafetiva entre um homem e duas mulheres registrada no estado.
A tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, do 15º Ofício de Notas, é a responsável pelo registro de duas escrituras desse tipo. A primeira, uma união entre três mulheres, em outubro de 2015, e a de Leandro, Thaís e Yasmin.
“A repercussão foi imensa, jornais, TVs e mídias impressas realizaram matérias e divulgaram amplamente o assunto na internet. No âmbito pessoal, tivemos o apoio praticamente de todos os nossos amigos. Quanto aos parentes, tiveram certa resistência no início, mas agora começam a aceitar melhor. As piadinhas dos amigos são inevitáveis. Embora o assunto seja sério, não podemos descartar o bom humor do povo brasileiro e entender que mesmo dessa forma peculiar e extrovertida, o principal objetivo está sendo alcançado, que é o estímulo ao debate com relação a esse tema”, conta Leandro.
Tamanha repercussão gerou manifestação por parte da Corregedoria Geral da Justiça do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (CGJ/RJ) que, no dia 8 de abril, emitiu nota de esclarecimento sobre Escritura Declaratória de União Poliafetiva.
A nota diz que a escritura “não tem o condão de criar direitos, uma vez que a união poliafetiva não é reconhecida no ordenamento jurídico”, que “os efeitos de uma escritura declaratória de união poliafetiva não são equiparados aos efeitos do registro de casamento ou da escritura de união estável”. E ainda que "os demais cartórios com atribuição notarial no estado não estão obrigados à confecção de escrituras semelhantes, uma vez que a união poliafetiva não é respaldada por lei".
União Estável não é constituída por escritura -
“O problema é que somos um País cartorial e temos ainda o casamento como critério e régua para medir uma conjugalidade sem matrimônio. Digo de forma categórica: não existe escritura pública que constitua união estável”, afirma o advogado Marcos Alves da Silva, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM).
Segundo ele, o que constitui uma união estável não é o seu registro em cartório, mas os pré-requisitos exigidos por lei, quais sejam, o fato social, ostensibilidade ou publicidade, durabilidade, continuidade e um elemento teleológico que é a intenção de constituir família, “essa última dimensão subjetiva é perceptível a partir de dados muito concretos”.
“Pois bem, se duas pessoas comparecem diante de um Cartório de Notas e fazem, por escritura pública, um ‘pacto de união estável’, mas, nunca venham a estabelecer entre si qualquer união, em verdade a escritura por si só não produz efeito jurídico algum. Trata-se de uma declaração inócua. Isto porque, nos termos do Código Civil brasileiro, é o fato social e não a formalização de uma escritura que tem o condão de fazer surgir a união estável”, explica.
Finalidade da declaração-
O advogado explica que a declaração de união estável tem duas finalidades: dar certeza quanto ao tempo de vigência da união estável e também para que sejam definidos pelos companheiros os efeitos patrimoniais.
O notário, afirma Marcos Alves, não celebra nem preside a celebração de um contrato de união estável, como faz o juiz de paz. Ele reduz a termo a declaração ou transcreve a minuta apresentada pelos companheiros que, nos termos do Código Civil, podem afastar, por via de contrato escrito, a incidência do regime da comunhão parcial de bens, que é o regime legal dispositivo-supletivo, previsto para a união estável.
“A união estável não precisa de cartório. Inclusive, a escritura pública é plenamente dispensável. O contrato (pacto), nos termos da lei, pode ser por instrumento particular, ou, como já disse, pode nem sequer existir”, ressalta o advogado.
Segundo Alves, não existe diferença “ontológica” ou de natureza jurídica de contrato ou pacto de união estável entre duas, três ou seis pessoas.
O advogado entende que o notário não pode negar-se a fazer a escritura de união poliafetiva. “Não concebo a possibilidade de um notário negar-se a reduzir a termo, por escritura pública, uma declaração feita por uma pessoa sobre um determinado fato”, diz.
“Como poderia o notário negar-se a fazer a escritura pública de um pacto entre três pessoas que querem viver vida em comum, definindo os efeitos patrimoniais que devem decorrer daquela convivência? Ora, os cartórios exercem função delegada do Estado. Não faz sentido algum que o Estado venha imiscuir-se na intimidade das pessoas, vedando que elas declarem o que bem lhes aprouver e o façam por meio que empreste fé-pública ao que querem deixar registrado. Agora, a validade e a eficácia das declarações vertidas em Escritura pública sempre poderão ser submetidas ao escrutínio do Poder Judiciário”, reflete Marcos Alves.
Evolução do Direito de Família-
“Para mim, família são duas ou mais pessoas que mantêm um vínculo afetivo e que coexistem no mesmo ambiente.” Este é o conceito de família para o funcionário público Leandro Jonattan da Silva Sampaio. Mas nem sempre foi assim.
Na história do Direito de Família, houve um tempo em que família era somente aquela originada do casamento. Assim, o concubinato permaneceu durante longo tempo na invisibilidade jurídica.
“Quando conseguiram enxergá-lo com os óculos jurídicos, não viram uma família, mas, no máximo, algo assemelhado a uma relação obrigacional derivada de uma sociedade de fato. Em meados da década de 1960 do Século XX, a solução foi reconhecer o que era chamado concubinato, como uma sociedade de fato, para que especialmente a mulher não padecesse as agruras das mais graves injustiças”, conta o advogado Marcos Alves.
Depois, as uniões homoafetivas tiveram que passar pelo “duro” e “massacrante” caminho do reconhecimento de sua existência como família. “Ora, somos todos diferentes. As famílias, também, não se conformam da mesma maneira. O que está em questão é a rejeição do diferente, e, sobretudo, sua exclusão. Por que devemos fazer passar pelo mesmo calvário todo tipo de família diferente daquela que estava monoliticamente consagrada no casamento?”, questiona o advogado. Para ele, não é mais possível a “catalogação” ou “taxação” prévia do que é e do que deixa de ser família.
“O Supremo Tribunal Federal reafirmou essa compreensão, ao julgar a ADIn 4277 e ADPF 132, determinando que a hermenêutica do art. 1.723 do Código Civil deveria ser realizada por meio da técnica da leitura conforme a constituição, de modo a imputar às uniões homoafetivas os mesmos efeitos e idênticas consequências da união estável heterossexual. Então a conclusão é simples, não é somente a leitura do caput do art. 1.723 que deve ser realizada conforme a Constituição, mas, a leitura das situações subjetivas existenciais que podem configurar conjugalidade, mesmo que não haja previsão legal expressa "tipificando" aquele "novo" modelo de família. Em outras palavras, depois da Constituição de 1988, as famílias existem, independentemente, de previsão expressa em Lei”, afirma.
Contudo, o advogado garante que a construção da noção jurídica de "família" ou mais especificamente de "conjugalidade" sofre limites, pois, se assim não fosse tudo poderia ser considerado conjugalidade.
“As famílias ‘diferentes’, por isso mesmo, têm sempre que lutar por sua afirmação social e, consequentemente, jurídica. Não é estranho que o Direito se apresente sempre como campo de luta, como já sinalizava Ihering. Não tenho dúvida de que ainda estamos por descobrir o sentido mais profundo e o alcance mais amplo do princípio constitucional da pluralidade das entidades familiares”, diz.
Segundo Marcos Alves, isso vai depender das futuras decisões judiciais. “Se tenderão a assegurar efetiva liberdade às situações subjetivas coexistenciais ou espelharão uma determinada moral, supostamente hegemônica, lançando à completa invisibilidade jurídica quem não se enquadra nos modelos previamente admitidos? Só o futuro dirá. Mas o passado, com certeza, ensina. Por isso, ainda tenho esperança de que sejamos capazes de construir um País onde caibam todos, sem discriminações, exclusões, e desqualificação de pessoas e das relações mais profundas que, efetivamente, as constituem como seres humanos”.
Leandro Sampaio concorda. “Os paradigmas estão aí para serem quebrados, se não fosse isso até hoje estaríamos escravizando pessoas e as mulheres sequer teriam direito ao voto. Decidimos oficializar porque não vemos diferença entre nosso relacionamento com um relacionamento ‘tradicional’, o mundo está mudando, então as leis devem acompanhar essas mudanças e isso só ocorre através da mudança de comportamento”, destaca.
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