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Rio de Janeiro registra mais uma união poliafetiva
O funcionário público Leandro Jonattan da Silva Sampaio, de 33 anos, se uniu oficialmente a duas mulheres na última sexta-feira (1º), no 15º Ofício de Notas, na Barra da Tijuca, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Trata-se da primeira união estável poliafetiva entre um homem e duas mulheres registrada no estado. Segundo informações do jornal “O Globo”, Leandro, Thaís e Yasmin decidiram oficializar a união para regularizar questões previdenciárias e de plano de saúde.
A tabeliã Fernanda de Freitas Leitão, do 15º Ofício de Notas, é a responsável pelo registro de duas escrituras desse tipo. A primeira, uma união entre três mulheres, em outubro de 2015, e a de Leandro, Thaís e Yasmin. Ela explica os fundamentos que devem ser observados na lavratura da escritura pública de união poliafetiva. “Princípio da afetividade, como novo pilar do Direito de Família. O princípio da dignidade da pessoa humana, da personalidade, da autonomia da vontade, da não-discriminação e, por fim, o silêncio normativo, pois no âmbito do Direito Privado, tudo o que não é proibido é permitido”, diz.
Segundo ela, estes fundamentos convergem para a compreensão do conceito de família como algo plural e aberto nos dias de hoje. “Além disso, a união deve ser pública, contínua e duradoura, com objetivo de formar família, e as partes devem ser maiores e capazes, não havendo nenhum dos impedimentos constantes do art. 1.521, do Código Civil”, ressalta.
Para Fernanda, o ordenamento jurídico brasileiro não estava “preparado” para essas situações. No entanto, isso não significa que não é permitido. “Dizer que o nosso ordenamento jurídico não permite esse tipo de união é imaginar que o legislador pátrio pensou nessa situação e a proibiu, o que, a meu ver, absolutamente não aconteceu”, assegura.
Poliamor ou poligamia?
A poligamia é uma forma de relacionamento entre duas ou mais pessoas, podendo ser a poliginia (quando o homem tem mais de uma mulher ou companheira) ou poliandria (quando a mulher tem mais de um marido ou companheiro). A maior parte das nações que aceitam a poligamia se concentra na África, região de forte influência da religião muçulmana.
Fernanda Leitão explica que a união poliafetiva não se trata de uma relação poligâmica. A diferença, segundo ela, está na formação de vários – poligamia – ou de somente um núcleo familiar – união poliafetiva. “Reitere-se que não há entre esses núcleos poligâmicos que conhecemos a noção de unidade, de concomitância. Na verdade, são diversos núcleos familiares que dividem o mesmo teto ou em lares diversos", diz.
Ela conta que, neste caso, um homem e duas mulheres compareceram ao cartório para tornar pública a relação, declarando que convivem sob o mesmo teto há três anos, com objetivo de formar família e de terem filhos em comum. Além disso, provaram que são maiores, capazes e que não existe para a união deles qualquer impedimento que haveria para o casamento, de acordo com o artigo 1.521 do Código Civil. “Enfim, nada mais comum do que uma família tradicional. Eles não têm uma relação aberta; ao contrário, são monogâmicos, formando um único e sólido núcleo familiar. Eis aí a grande diferença”, garante.
Oficialização
Segundo o advogado Marcos Alves da Silva, membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), nenhum notário ou tabelião, no Brasil, poderia se recusar a fazer Escritura Pública de Contrato de União Estável entre mais de duas pessoas.
A razão é simples, afirma o advogado. A existência de contrato estabelecido entre os companheiros não é requisito para configuração de união estável. “O contrato constitui mera faculdade estabelecida pela lei, para que, por meio dele, os companheiros possam definir os efeitos patrimoniais da união entre eles estabelecida, conforme dispõe o artigo 1.725 do Código Civil.
Ele explica que o contrato pode ser celebrado por escritura pública ou por instrumento particular e que ambos têm o mesmo valor jurídico. “A escritura pública tem apenas a vantagem da certeza, da autenticidade, isto é, da fé pública”, afirma. “Não é o contrato que constitui a união estável”, ressalta.
O advogado garante que qualquer pessoa pode comparecer a um cartório e solicitar que uma declaração sua seja reduzida a termo, por Escritura Pública. “O notário não pode negar-se a prestar esse serviço”, diz. No entanto, explica Marcos Alves, os efeitos jurídicos dessa declaração irão depender do entendimento do Poder Judiciário quando for provocado.
Reconhecimento
“O problema é não ver, não reconhecer, isto é, negar o status jurídico de família a esse tipo de união”, afirma o advogado Marcos Alves.
Para ele, não existem razões para se negar o reconhecimento jurídico a uma família ou conjugalidade. “Presentes os requisitos da afetividade, publicidade, continuidade, durabilidade e a intenção de constituição de família, não importa a estrutura que tome a família”, diz.
A forma como uma família vai se constituir não é questão que diz respeito ao Estado, afirma Marcos Alves. O Estado só tem legitimidade para interferir no âmbito da família para assegurar a liberdade e o respeito àqueles que integram o núcleo familiar, especialmente os que se encontram em situação de vulnerabilidade, como as crianças e os idosos. “Fora dessas circunstâncias, deve prevalecer o que dispõe o próprio Código Civil - que é retrógrado em muitos aspectos, mas, neste ponto, é de grande valor: ‘É defeso a qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família’ (CC, art. 1.513)”.
Neste sentido, segundo ele, a doutrina e a jurisprudência têm apontado na direção da “maximização” da liberdade. “Se no campo das titularidades, das relações contratuais ou das relações de consumo a intervenção reguladora do Estado se faz cada vez mais presente e necessária, nas situações subjetivas existenciais tem prevalecido o entendimento da expansão da liberdade e da autodeterminação das pessoas”, destaca.
O advogado acredita que há, no Judiciário brasileiro, resistência ao reconhecimento de famílias estranhas ao protótipo estabelecido pelo casamento. “Note-se que a própria concepção jurídica da família formada da união estável constitui um arremedo de casamento”, diz. Isso porque “o casamento ainda persiste no imaginário e no senso comum dos juristas como o grande e único protótipo de família”. Para ele, quanto mais o arranjo familiar se distanciar do modelo, maior dificuldade encontrará para ser abarcado e reconhecido como família merecedora de tutela jurídica.
No entanto, ele reconhece os avanços do Judiciário com as questões de família. “Se estivéssemos a depender exclusivamente do Legislativo, até hoje as uniões homoafetivas não teriam sido reconhecidas como entidade familiar; muito menos chegaríamos ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, como atualmente ocorre”.
O advogado destaca a necessidade de uma construção “autóctone” de união estável, desapegada do modelo do casamento. “É uma pena que a legislação, a doutrina e a jurisprudência não tenham ainda atentado para essa necessidade premente. O Direito tem o seu próprio tempo. Sopesar, agir com prudência, com parcimônia, é próprio dos Tribunais. A doutrina, isto é, a construção teórica do Direito, porém, deve lançar luzes sobre os novos caminhos a serem percorridos. Deve ser vanguardista sem, contudo, ingressar na exaltação da novidade pela mera novidade. Repito: a nova racionalidade instaurada pela Constituição Federal de 1988 em relação à compreensão da família ainda está a produzir reverberações. O novo paradigma abre enorme leque de possibilidades para responder às demandas contemporâneas”, reflete.
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