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Caso de cuidadora que alegou união estável com incapaz traz à tona reflexões sobre afeto e sexualidade
Na última semana, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) não reconheceu a união estável alegada pela cuidadora de um paciente portador de esquizofrenia grave. A cuidadora foi contratada para prestar cuidados ao rapaz e, conforme afirmou na ação de reconhecimento de união estável, com o decorrer do tempo o convívio transformou-se em amor.
Em primeira instância, a sentença julgou a ação improcedente, mas o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reformou a decisão com base no depoimento do psiquiatra que tratou o rapaz por 12 anos. Segundo o TJRS, o médico foi taxativo ao afirmar que o paciente não era capaz de gerir sua vida financeira, porém tinha discernimento para entender as relações conjugais e para firmar relacionamentos afetivos.
De acordo com o ministro Marco Aurélio Bellizze, relator do recurso no STJ, ficou comprovado que o rapaz, com idade mental comparável à de uma criança de sete anos, possui limitações de juízo crítico e responsabilidade civil e não tem capacidade para tomar decisões de cunho patrimonial ou assumir responsabilidades financeiras. “Encontrando-se o indivíduo absolutamente inabilitado para compreender e discernir os atos da vida civil, também estará, necessariamente, para vivenciar e entender, em toda a sua extensão, uma relação marital, cujo propósito de constituir família, por tal razão, não pode ser manifestado de modo voluntário e consciente”, disse o relator.
O ministro explicou que essa compreensão a respeito da união estável está de acordo com o tratamento previsto para o casamento no Código Civil de 2002. Esclareceu ainda que as normas legais relativas à capacidade civil para contrair núpcias são aplicáveis à união estável na íntegra, até mesmo porque a Constituição Federal alçou a união estável à condição de entidade familiar.
O caso traz à tona a questão do afeto, da sexualidade e de seus desdobramentos no Direito de Família. Neste sentido, a psicanalista Giselle Groeninga, diretora de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, explica que o transtorno do rapaz implica um alto grau de vulnerabilidade e, assim, de necessidade de cuidado e compreensão.
Sobre a alegação da cuidadora, de que o cuidado transformou-se em amor, a especialista explica que amor também é cuidado e, no exercício profissional que ela assumiu – cuidadora- é mais difícil ainda dissociar profissão do afeto. Todavia, é ainda mais importante diferenciar os afetos e sua finalidade. Segundo Giselle, houve uma mudança por parte da profissional quanto à finalidade do relacionamento e, ao que tudo indica, uma distorção, como se a vontade e o amor a todos se equiparasse. “Mesmo se o tempo, se o convívio e se a própria vontade de ambos, que deve ser relativizada no caso do rapaz, houvesse concorrido para a mudança no tipo de relacionamento, é de se perguntar o que foi feito das diferenças quanto à vulnerabilidade”, reflete.
Giselle destaca que todos têm direito à realização afetiva e sexual na medida de suas capacidades, discernimento e responsabilidade. Assim, o ensinamento que estes casos podem trazer, para além da interpretação de “interesses escusos”, é o de que devem ser contemplados níveis de incapacidade, de vulnerabilidade e de interdição. Mas às limitações devem corresponder alternativas, sempre no sentido do cuidado para que se possam realizar os direitos da personalidade.
“A cada dia nos surpreendemos com a revelação de capacidades que, não faz muito tempo, tínhamos como inalcançáveis. Capacidades que, graças ao amor cuidado, podem se revelar. Tais surpresas nos fazem repensar nossa visão a respeito dos incapazes e daqueles que são os mais vulneráveis, mas também sujeitos de direito”, observa.
Ela explica que a incapacidade para os atos da vida civil, total ou parcial, implica em representação. No entanto, nas situações que envolvem a afetividade e a sexualidade, não há que se falar em representação, mas em responsabilidade pelo cuidado com o incapaz. “A área da intimidade que envolve a afetividade e a sexualidade pode trazer desdobramentos que a transcendem, inclusive a geração de filhos ou, como no caso, a pretendida união estável. E, como sempre, mas em especial nestes casos, as relações devem ser pensadas em sua complementaridade – o incapaz é aquele que dele cuida e, portanto, em certa medida, que por ele se responsabiliza, mas que não necessariamente é aquele que por ele responde”, disse.
A especialista aponta, ainda, que deve-se pensar formas possíveis de realização afetiva e sexual dos incapazes. “O sentimento expressa-se em relação a alguém e, em geral, a sexualidade também. E, embora ambos estejam presentes naqueles considerados incapazes, em geral com maior intensidade tendo em vista sua maior imaturidade, cabe ao objeto, seja dos impulsos, seja dos sentimentos, a escolha da forma como a estes corresponder, cabendo-lhes maior responsabilidade e cuidado. Ou seja, não se trata apenas de negar a realização, mas pensar em suas formas possíveis. Desta forma abrem-se os caminhos das possibilidades”, reflete.
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