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O contrato de convivência na união estável e a autonomia privada
RESUMO
O presente artigo visa analisar a maneira como a autonomia privada incide nas relações familiares, mais especificamente no que concerne à celebração de contrato escrito para dispor sobre os efeitos patrimoniais da união estável, isto é, sobre o regime de bens aplicável à relação. A partir da análise das condições de validade desse contrato e de suas características, foi possível realizar um cotejo entre os contratos firmados no âmbito das relações patrimoniais e este, que se trata de um contrato de Direito de Família. Assim, foi possível observar as especificidades do instituto do contrato de convivência, bem como analisa-lo em face das características comuns a todos os negócios jurídicos.
Palavras chave: autonomia privada; contrato de convivência; união estável.
ABSTRACT
This article aims to analyze the way how the private autonomy applies to family relationships, more specifically to the possibility of establishing a property agreement in order to prescribe the financial consequences of a stable union in case of the breakdown of the relationship. Based on the analysis of the conditions for a validity property agreement and of its characteristics, it was possible to find a connexion between contracts in general and this one, which is a family law contract. Thereby, it was possible to observe the specificities of the so called cohabitation contract as well as to analyze it in light of the common characteristics of all agreements.
Keywords: private autonomy; cohabitation contract; stable union.
INTRODUÇÃO
Durante anos houve pouco espaço para inter-relacionar todas as matérias previstas no Código Civil. Os conceitos jurídicos eram formulados de modo a serem aplicados tão somente para os institutos que a eles se relacionavam diretamente.
As relações familiares, profundamente influenciadas pelo Direito Canônico, eram dotadas de tratamento rígido. O casamento era o único instituto que permitia ao homem e à mulher que eles se unissem e constituissem uma família, tendo por muito tempo sido entendido como uma instituição de natureza divina.
Qualquer relação que se formasse à margem da união matrimonial era vista com repúdio pela sociedade e pelo ordenamento pátrio então vigente, que a desprovia de tutela jurídica. Diante desse cenário, a união estável por um longo período foi conhecida pelo nome de concubinato, expressão que objetivava incutir a essa relação o caráter de ilícita e associada ao adultério, devendo ser rejeitada.
Aos poucos essa situação passou a ser tolerada pela sociedade, uma vez que se trata de um fato da vida. E, no âmbito da tutela previdenciária, começou a ser timidamente reconhecida como situação apta a produzir alguns efeitos jurídicos. Mais especificamente, passou-se a aceitar de forma limitada a proteção da mulher nos casos de falecimento do amásio.
A partir de então a união estável passou a ser vista pela jurisprudência como um fato social merecedor de tutela jurídica. Porém, foi a Constituição Federal de 1988 que realmente inovou no âmbito das relações familiares, prevendo a união estável como entidade familiar.
Ao mesmo tempo, observa-se facilmente que as situações de cunho obrigacional, também, durante muito tempo foram tratadas de forma limitada em nosso ordenamento. O Direito das Obrigações, em razão da forte influência do Direito Romano, surgiu de modo a regulamentar tão somente as relações eivadas de conteúdo econômico.
Até hoje encontramos muitos escritos doutrinários defendendo que somente se caracteriza como contrato o pacto feito entre duas pessoas que estejam ligadas por uma relação patrimonial.
Ocorre, entretanto, que, aos poucos, teve início um movimento no sentido de ampliar o objeto das relações jurídicas contratuais. Assim, passou-se a entender que relações que não detém conteúdo iminentemente patrimonial também podem figurar no âmbito obrigacional.
O que se verifica, portanto, é que com a evolução do Direito foi ocorrendo uma relativização dos seus institutos e uma maior inter-relação entre eles.
Dessa forma, as relações familiares vêm se desvencilhando das amarras do Direito Canônico, ao mesmo tempo em que as relações obrigacionais vão se afastando dos conceitos rígidos que decorreram do Direito Romano.
Passou-se a aceitar outras formas de constituição de família além daquela que decorre do matrimônio, como também se passou a aceitar que a matéria contratual não se encontra adstrita tão somente às relações de cunho econômico.
Assim, foi possível que nosso Código Civil de 2002 incluísse, de forma expressa, a previsão sobre a possibilidade de os conviventes em união estável pactuarem os efeitos patrimoniais da relação, mais especificamente no que concerne ao regime de bens aplicável, por meio de um contrato escrito, o chamado contrato de convivência.
Esse contrato, assim como todos aqueles nominados dentro do Título VI do Código Civil, decorre da autonomia privada das partes. Ou seja, tendo em vista a liberdade que as pessoas possuem para autorregulamentar as suas relações jurídicas, podem elas contratar, inclusive, para tratar dos efeitos patrimoniais de uma relação familiar.
E não se pode dizer que a autonomia privada não se verifica pelo fato de as relações familiares serem tratadas por normas cogentes. Isso porque, as normas cogentes, bem como os bons costumes, limitam a liberdade das pessoas para estabelecer contratos em quaisquer âmbitos.
Trata-se, tão somente, de um contrato com requisitos e características específicos, que deve ser analisado à luz não só dos preceitos de Direito de Família, mas também das disposições relativas aos Negócios Jurídicos. E é justamente essa análise que será feita no presente estudo.
1. Evolução histórica
1.1.União estável antes da Constituição Federal de 1988
O primeiro Código Civil brasileiro, de 1916, foi editado ainda sob a forte influência do Direito Canônico, principalmente no que concerne às relações de família. Naquele momento o matrimônio era a única forma de criação da família legítima.
Nosso ordenamento jurídico não reconhecia qualquer espécie de relação extramatrimonial, fosse ela decorrente do adultério ou da simples união de fato entre pessoas solteiras. A livre união era tida como um fato ilícito que deveria ser rejeitado.
Conforme leciona Francisco Cahali (2002, p. 03), esse entendimento vigorava tanto nas Constituições Federais anteriores quanto na mentalidade de nossa população, que repudiava o concubinato.
Diante dessa situação, o Código Civil de 1916 pouco tratou sobre as uniões que não eram legitimadas pelo casamento. Nesse sentido é o ensinamento de Pablo Stolze Gagliano (2013, p. 412): “Com efeito, permitindo-nos um breve olhar na codificação anterior, vê-se que, nas poucas vezes em que o Código Civil brasileiro de 1916 se referiu a tal modalidade de relação jurídica, o fez normalmente para repeli-lo”.
Ocorre, porém, que o Direito não é uma matéria estática. Diante das constantes mudanças sociais, é sempre levado a se adequar às demandas dessas novas realidades.
Em razão disso, ao longo do tempo o quadro de repúdio a qualquer organização familiar extramatrimonial foi transmudando para um panorama de tolerância dessa situação, até alcançar o seu reconhecimento e proteção em nosso ordenamento atual.
Com efeito, o Decreto-lei nº 7.036, de 10 de novembro de 1944, no parágrafo único do artigo 21 concedeu à companheira o direito de receber indenização pela morte do companheiro em acidente, desde que ele não fosse casado e a tivesse declarado como beneficiária.
Posteriormente, a Lei 4.297, de 23 de dezembro de 1963, no âmbito da tutela previdenciária passou a reconhecer o concubinato como situação merecedora de proteção jurídica em caso de falecimento do companheiro.
Nesse momento histórico foi editada a Súmula 35 do Supremo Tribunal Federal, estabelecendo que “em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem direito de ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio”.
Percebe-se, então, que as primeiras regulamentações relativas à união estável surgiram para proteger a mulher concubina nos casos em que o homem com o qual ela conviva viesse a falecer.
A partir de então, a jurisprudência passou a construir entendimento no sentido de que a relação entre companheiros configurava uma sociedade de fato, de modo que a mulher teria direito a parcela do patrimônio comum para cuja formação tivesse contribuído.
Foi então que o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 380, prevendo que “comprovada a existência de sociedade de fato entre os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço comum”.
Ressalta-se, entretanto, que o reconhecimento do companheirismo como modalidade familiar, enquanto situação merecedora de proteção jurídica, somente se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que introduziu o conceito de união estável em nosso ordenamento jurídico.
1.2.União estável após o advento da Constituição Federal de 1988
O advento da Constituição Federal de 1988 deu início ao chamado processo de constitucionalização do Direito Civil, que se caracteriza pela necessidade de se confrontar os institutos de Direito Privado com os princípios constitucionais.
Esse processo, por óbvio, implicou na constitucionalização do Direito de Família. Aniquilaram-se antigos princípios, o que permitiu o surgimento de um novo paradigma para o conceito de família, baseado nos princípios da dignidade da pessoa humana e na solidariedade (LÔBO, 2011, p. 33).
A Constituição Federal de 1988 regulou os temas de família no Capítulo VII, do Título VIII – Da Ordem Social. O seu artigo 226 estabelece que a família é uma forma de organização social que pode decorrer do casamento civil (artigo 226, §§1º e 2º), da união estável entre homem e mulher (artigo 226, §3º) ou da comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (família monoparental – artigo 226, §4º).
Porém, tem-se entendido, e com razão, que o dispositivo em comento traz apenas um rol exemplificativo, sendo admitidas outras manifestações familiares, como a família anaparental (família sem pais – STJ, REsp 57.606/MG), a família homoafetiva (ADPF 132/RJ e ADI 4.277/DF) e a família mosaico ou pluriparental.
Nessa seara, percebe-se que a Constituição Federal de 1988 institucionalizou o concubinato, dando-lhe o nomen iuris de união estável e o elevando à categoria de entidade familiar.
A previsão constitucional deixa clara a intenção de garantir proteção jurídica também à formação familiar que não decorra do casamento, mas tão somente da situação de fato na qual o casal vive como se casados fossem.
E foi a partir da inclusão da categoria da união estável dentre as formações familiares constitucionalmente protegidas que teve início a sua regulamentação por leis infraconstitucionais, culminando, inclusive, na previsão acerca da possibilidade de formalização de um contrato escrito entre os conviventes.
1.2.1. A Lei nº 8.971, de 29 de dezembro de 1994
Em que pese a introdução do conceito de união estável em nosso ordenamento, a Constituição Federal de 1988 não determinou a forma como seria regulada a questão patrimonial decorrente da formação familiar estabelecida em concubinato.
Vigia, então, o entendimento esposado na Súmula 380 do STF. Desse modo, para que a companheira tivesse direito a parcela do patrimônio do companheiro, deveria ser feita a prova da vida em comum, da aquisição de bens nesse período e do esforço conjunto na aquisição. Nesse sentido leciona Euclides de Oliveira:
Esforço conjunto subentende trabalho, participação, colaboração financeira na aquisição dos bens. A divisão nesse contexto não se exige igualitária, na forma de meação; depende do grau de colaboração de cada um dos sócios de fato, para daí se extrair o percentual do seu direito aos bens havidos pelo esforço comum (OLIVEIRA, 2000, p. 24).
Essa questão evoluiu na jurisprudência para um entendimento mais amplo, deixando de se exigir tão somente a contribuição de cunho pecuniário para considerar tanto a colaboração no âmbito doméstico quanto a união de vida com vistas à alcançar o bem comum (OLIVEIRA, 2000, p. 24).
Diante desse quadro, foi editada a Lei nº 8.971, de 24 de dezembro de 1994, que regulava o direito dos companheiros aos alimentos e à sucessão. Conforme o artigo 1º da Lei, estariam enquadrados no conceito de união estável os casais formados por homem e mulher solteiros, separados judicialmente, divorciados ou viúvos, desde que convivessem por mais de 5 anos ou que tivessem prole resultante dessa união.
A Lei nº 8.971/94, portanto, inovou ao conceder aos companheiros direitos que até então só eram concedidos às pessoas casadas, quais sejam: os alimentos e a participação na herança.
Entretanto, notadamente tímida foi a disposição legislativa, uma vez que estabeleceu critério temporal rígido para a configuração da união estável e somente previu o direito à divisão patrimonial diante da morte de um dos pares, nada mencionando sobre a dissolução de tal sociedade por vontade das partes.
1.2.2. A Lei nº 9.278, de 10 de maio de 1996
Diante da escassa regulamentação do tema na Lei nº 8.971/94, foi editada a Lei nº 9.278/96, que objetivava regulamentar a união estável nos moldes previstos pelo artigo 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988, derrogando as previsões em que a Lei anterior fosse com ela incompatível.
Dentre as alterações trazidas pela Lei, verificou-se a possibilidade de estipulação patrimonial em contrato escrito, apta a afastar a participação legalmente prevista.
A partir de então, passou a ser admissível a estipulação de um contrato escrito de convivência pelas partes (CAHALI, 2002, p. 54).
Verifica-se, portanto, que o denominado contrato de convivência surge em nosso Direito como o pacto possível de ser firmado entre os companheiros com vistas a disciplinar os efeitos patrimoniais da união estável.
1.3.Código Civil de 2002
O Código Civil de 2002 trouxe um capítulo específico sobre a união estável, regulando a matéria entre os artigos 1.723 a 1.727. Repetindo o artigo 1º da Lei nº 9.278/96, o artigo 1.723 do Código Civil conceitua a união entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura que se estabelece com o objetivo de constituição familiar.
Ademais, o artigo 1.725 abarcou o quanto disposto no artigo 5º da Lei 9.278/96, prevendo a possibilidade de os companheiros celebrarem contrato escrito para a formalização da união estável.
A partir de então a previsão sobre a possibilidade de os companheiros celebrarem contrato escrito para determinar o regime de bens e as relações patrimoniais passou a constar do Código Civil. A novidade trazida por esse diploma legal diz respeito à adoção expressa do regime da comunhão parcial de bens como regime legal supletivo para o caso de não haver contrato escrito dispondo em contrário.
Consolidou-se, então, o cabimento da pactuação pelos conviventes de contrato escrito para estipular os efeitos patrimoniais da união estável.
- A autonomia privada e o contrato de convivência
2.1.Autonomia privada
Da lição de Massimo Bianca depreende-se que a autonomia privada deve ser entendida como o poder de autodeterminação do sujeito, ou seja, o poder que ele tem de decidir sobre sua própria esfera jurídica. E, tendo em vista que não há como constituir, modificar ou extinguir direitos sem incidir sobre a esfera jurídica de terceiros, o ato de autonomia privada depende do consenso da outra parte (BIANCA, 1987, p. 10-11).
Pietro Perlingieri conceitua a autonomia privada como “[...] o poder, reconhecido ou conhecido pelo ordenamento estatal a um indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente assumidos” (PERLINGIERI, 1999, p. 17).
A autonomia privada consiste, portanto, na possibilidade jurídica de o indivíduo disciplinar as suas relações. É o gênero do qual a liberdade de contratar é espécie, uma vez que esta se refere à liberdade conferida ao sujeito para estabelecer, ou não, um contrato.
Nesse sentido, Renan Lotufo explica que a autonomia privada “[...] é o supedâneo da liberdade negocial, posto que é, para alguns, o poder reconhecido, para outros o poder atribuído, às pessoas de autorregularem seus próprios interesses” (LOTUFO, 2011, p. 15).
Conforme verifica Francisco dos Santos Amaral Neto (2010, p. 128), a autonomia privada decorre da liberdade que o ordenamento confere aos particulares para regular as suas relações. Trata-se de um espaço livre para o exercício do poder de autorregulamentação dos seus interesses.
Ou seja, o ordenamento jurídico não abarca todas as situações da vida cotidiana, nem prevê exaustivamente todas as relações que os indivíduos poderão estabelecer. E é esse espaço que confere a liberdade necessária para o exercício da autonomia privada.
O artigo 421 faz alusão à autonomia privada no âmbito das relações contratuais. Desse dispositivo decorrem dois sentidos que podem ser atribuídos à essa liberdade conferida aos particulares: liberdade de contratar e liberdade de estabelecer o conteúdo da avença. Sobre o tema leciona Araken de Assis:
[...] de um lado, implica a liberdade de contratar, ou seja, a de concluir, ou não, o contrato (princípio da liberdade de conclusão ou de contratar); de outro, importa a liberdade de fixação do conteúdo (princípio da liberdade contratual). Esta liberdade respeita à seleção de um tipo contratual e, inversamente, à rejeição de todos os conhecidos e a criação de um contrato revolucionário, bem como a estipulação de quaisquer cláusulas (ASSIS, 2007, p. 73).
Tal liberdade, entretanto, sofre restrições, não se tratando a autonomia privada de um princípio absoluto e ilimitado.
Em primeiro lugar, aos contratantes somente se autoriza que, por meio do contrato, derroguem regras jurídicas dispositivas. Não podem, portanto, interferir no que preveem as normas cogentes.
Os bons costumes também aparecem como limitadores do conteúdo de vários pactos, sendo necessário realizar uma análise de adequação com o momento histórico no qual estão sendo analisados (ASSIS, 2007, p. 80).
Ocorre, entretanto, que a liberdade conferida às pessoas para autorregulamentar as suas relações não aparece somente no âmbito dos direitos obrigacionais, mas, como veremos, também está presente no que concerne às relações familiares.
2.2.Autonomia privada nas relações familiares
Atualmente é impossível entender que o conceito de autonomia privada está restrito às situações negociais de cunho eminentemente patrimonial. Isso porque ele também se aplica para as relações jurídicas extrapatrimoniais, incluindo as familiares.
Por óbvio, nas situações que envolvem Direito de Família a autonomia privada aparece mais limitada do que nas relações puramente patrimoniais, mas isso não impede o seu reconhecimento (PERLINGIERI, 1999, p. 19).
Percebe-se, portanto, que a liberdade expressada pela autonomia privada não se coaduna somente com as relações de cunho obrigacional, mas também deve ser analisada frente às relações familiares.
A possibilidade de os conviventes contratarem por escrito é a demonstração cabal de que o Código Civil de 2002 conferiu espaço para que a autonomia privada também apareça no âmbito das relações familiares.
E, conforme veremos adiante, o contrato de convivência nada mais é do que um negócio jurídico de Direito de Família. Possuem os companheiros, portanto, a liberdade de, nos limites legais, fixar os efeitos patrimoniais da união estável, escolhendo, se assim desejarem, o regime de bens que será aplicável à relação.
Percebe-se, portanto, que ao consagrar a possibilidade de um contrato escrito firmado pelos conviventes, o Código Civil de 2002 abriu espaço para o exercício da autonomia privada não somente no que concerne à possibilidade de se formar uma unidade familiar por meio da união estável, mas também pela possibilidade de os companheiros regulamentarem os efeitos patrimoniais dessa relação.
2.3.Conceito e características do contrato de convivência
Orlando Gomes conceitua o contrato como: “[...] uma espécie de negócio jurídico que se distingue, na formação, por exigir a presença pelo menos de duas partes. Contrato é, portanto, negócio jurídico bilateral, ou plurilateral” (GOMES, 2007, p. 4).
Historicamente vinha-se entendendo que as relações jurídicas obrigacionais possuíam conteúdo eminentemente econômico. Ocorre, porém, que após a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de 2002, tem-se passado a admitir, lentamente, a possibilidade de contratar no âmbito de outras relações, tais como as familiares (JORGE JUNIOR, 2011, p. 195).
Não há vedação em nosso ordenamento para que se formem contratos de direito de família. O que existe, entretanto, são normas cogentes que não podem ser derrogadas pela autonomia privada.
O entendimento sobre a liberdade de contratar no âmbito das relações familiares encontra, inclusive, embasamento legal. No que concerne à união estável aqui tratada, conforme já mencionado, o artigo 1.725 do Código Civil dispõe sobre os seus efeitos patrimoniais, prevendo a possibilidade de celebração de contrato escrito.
Trata-se esse contrato escrito do chamado contrato de convivência, que na lição de Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery (2013, p. 1.491-1.492), caracteriza-se como um negócio jurídico de direito de família, razão pela qual deve se balizar pelas regras gerais da seara contratual e pelas limitações típicas das relações familiares.
A sua estipulação não é necessária para a formalização da união estável, mas apenas uma opção disponível para aqueles que desejem regular os efeitos dessa situação de fato.
Francisco Cahali, em sua tese de doutorado, o conceitua como:
O contrato de convivência, na amplitude tratada neste estudo, representa o instrumento pelo qual os sujeitos de uma união estável promovem a auto-regulamentação quanto aos reflexos da relação, podendo revestir-se da roupagem de documento solene, escritura pública, escrito particular, levado ou não à inscrição, registro ou averbação, pacto informal, e, até mesmo, ser apresentado apenas como disposições ou estipulações esparsas, instrumentalizadas em conjunto ou separadamente em negócios jurídicos diversos, desde que contenham a manifestação bilateral da vontade dos companheiros, identificando o elemento volitivo expresso pelas partes (CAHALI, 2002, p. 306).
O contrato de convivência é, portanto, um ato de vontade de duas pessoas que desejam viver em uma união estável, regulamentando de modo particular os efeitos dessa convivência.
Embasado na autonomia privada, o contrato escrito pode ser firmado para dispor sobre o regime dos bens do casal e, em razão disso, trata-se de um verdadeiro negócio jurídico de Direito de Família.
- Formação do contrato de convivência
3.1.Condições de validade
O artigo 104 do Código Civil estabelece como requisitos de validade do negócio jurídico que o agente seja capaz, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável e que a forma seja prescrita ou não defesa em lei.
Assim como ocorre em todos os negócios jurídicos, para que o contrato de convivência seja apto a produzir efeitos jurídicos, possibilitando que os companheiros adquiram, modifiquem ou extingam direitos relativos ao patrimônio, ele também deve preencher tais requisitos (DINIZ, 2011, p. 455).
Portanto, a formação do contrato de convivência exige o preenchimento de requisitos de validade comuns a todos os contratos.
Passaremos, então, a analisar individualmente cada um desses requisitos.
3.1.1. Capacidade do agente
A capacidade dos contratantes se apresenta como o primeiro requisito subjetivo para a validade dos contratos, vez que as partes devem estar aptas a emitir a sua vontade.
Para os contratos em geral a regra é no sentido de que a incapacidade absoluta ou relativa de uma ou ambas as partes deve ser suprida pela representação ou pela assistência.
Na união estável, entretanto, ao contrário da maioria das situações negociais, as partes não apenas estabelecem direitos e deveres mútuos, mas regulamentam os efeitos patrimoniais de uma situação de vida comum, a qual implica na formação de uma entidade familiar (artigo 1.723, Código Civil).
Diante dessa situação, o requisito da capacidade dos contratantes deve ser analisado à luz do artigo 1.517, do Código Civil, que estabelece como idade núbil mínima os 16 anos completos, mas ressalva que até que se atinjam os 18 anos completos, a realização do casamento poderá ocorrer mediante suprimento da incapacidade por autorização do responsável pelo menor.
Ademais, o artigo 1.548 do Código Civil estabelece que a enfermidade mental é causa de nulidade do casamento, enquanto o artigo 1.550, que a ausência de idade núbil ou de suprimento desta por autorização é causa de anulabilidade.
A jurisprudência pátria já tem se posicionado no sentido de que os requisitos de validade do casamento também são aplicáveis, por analogia, à união estável:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DECLARATÓRIA DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL - NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL - NÃO-OCORRÊNCIA - ALTERAÇÃO DA BASE FÁTICA SOB A QUAL SE FUNDOU O ARESTO A QUO - IMPOSSIBILIDADE NESTA INSTÂNCIA ESPECIAL - INTELIGÊNCIA DA SÚMULA N. 7/STJ - PRETENSO COMPANHEIRO DESPROVIDO DO NECESSÁRIO DISCERNIMENTO PARA A PRÁTICA DOS ATOS DA VIDA CIVIL - IMPOSSIBILIDADE DO RECONHECIMENTO DA RELAÇÃO PRETENDIDA (UNIÃO ESTÁVEL) – RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. Não existe negativa de prestação jurisdicional no acórdão que, a despeito de adotar fundamento diverso daquele pretendido pela parte, efetivamente decide de forma fundamentada toda a controvérsia, como sucede in casu. 2. O recurso especial presta-se a definir a interpretação da lei federal e não a rediscutir a base fática sobre a qual se fundou o acórdão recorrido. 3. Se o "enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil" (artigo 1.548, inciso I, do Código Civil) não pode contrair núpcias, sob pena de nulidade, pela mesma razão não poderá conviver em união estável, a qual, neste caso, jamais será convertida em casamento. A adoção de entendimento diverso, data venia, contrariaria o próprio espírito da Constituição Federal, a qual foi expressa ao determinar a facilitação da transmutação da união estável em casamento. 4. A lei civil exige, como requisito da validade tanto dos negócios jurídicos, quanto dos atos jurídicos - no que couber -, a capacidade civil (artigo 104, 166 e 185, todos do Código Civil). 5. Não só pela impossibilidade de constatar-se o intuito de constituir família, mas também sob a perspectiva das obrigações que naturalmente emergem da convivência em união estável, tem-se que o incapaz, sem o necessário discernimento para os atos da vida civil, não pode conviver sob tal vínculo. 6. Recurso especial desprovido (REsp 1201462/MG, Rel. Min. Massami Uyeda, Terceira Turma, DJe 27/04/2011. Grifo nosso).
União estável. Ação declaratória. Suposto companheiro portador de necessidades especiais (esquizofrênico-paranóico, ébrio habitual e usuário de drogas). Pessoa sem controle sobre a própria vontade. Capacidade civil como requisito da união estável. Falta de consciência e vontade de constituir união estável. Ação improcedente. Recurso desprovido (Apelação nº 0052578-62.2008.8.26.0000, Rel. A. Santini Teodoro, 2ª Câmara de Direito Privado, 03/02/2009. Grifo nosso).
Também nesse sentido se manifestou Francisco Cahali (2002, p. 128), ao explicar que a validade da união estável das pessoas sujeitas ao poder familiar, à tutela ou à curatela depende de autorização do representante legal. E, uma vez autorizada a formação da unidade familiar, permitida estará a contratação, desde que o representante legal participe da celebração.
Sendo assim, verifica-se que o requisito da capacidade dos agentes deve ser analisado tal como se dá no tocante ao casamento. Ou seja, somente os menores em idade núbil (16 anos incompletos) poderão constituir união estável, desde que autorizados pelos responsáveis.
Ademais, no que concerne aos casos de incapacidade superveniente, verifica-se que, caso a pessoa tenha passado a viver em união estável enquanto capaz, uma vez ocorrida a sua incapacidade, o contrato poderá ser firmado desde que esta seja suprida pelo representante legal (CAHALI, 2002, p. 101).
Percebe-se, portanto, que a regra aplicada aos contratos em geral, segundo a qual a incapacidade (absoluta ou relativa) pode ser suprida pela representação ou pela assistência, permitindo a contratação, não deve ser analisada isoladamente. Isso porque, tratando-se de uma situação de Direito de Família, exige-se a vontade de iniciar uma vida em comum com outra pessoa, vontade essa que, dentro dos preceitos legais vigentes, não pode ser manifestada pelos menores de 16 anos nem pelos incapazes de exercer os atos da vida civil.
3.1.2. Objeto
Conforme dispõe o inciso II do artigo 104, do Código Civil, o objeto dos negócios jurídicos deve ser “lícito, possível, determinado ou determinável”.
A licitude se verifica como inafastável para a validade dos contratos, vez que vedada a negociação com conteúdo ilícito.
A possibilidade, por sua vez, aparece para impedir que surjam avenças cujo cumprimento se verifique impossível para uma ou ambas as partes contratantes.
Finalmente, o objeto deve, também, ser determinado ou determinável. Renan Lotufo (2004, p. 283) explica que a determinabilidade aparece como condição de existência da obrigação, pois não se admite o estabelecimento de avença na qual as partes não tenham conhecimento de suas responsabilidades.
No que concerne ao contrato de convivência, verifica-se que em razão da existência de normas cogentes de direito de família, não possuem as partes liberdade total no estabelecimento do seu objeto.
Depreende-se dos ensinamentos de Francisco Cahali (2002, p. 307), que o contrato somente poderá abranger disposições relativas a questões patrimoniais: “A convenção pode abranger a universalidade dos reflexos patrimoniais da união estável, ou regulamentar efeitos específicos contendo disposições destinadas exclusivamente a certos e determinados bens e direitos”.
O objetivo da contratação, portanto, deve ser tão somente a regulamentação dos efeitos patrimoniais decorrentes da união estável. Ou seja, quando os companheiros não quiserem se submeter ao regime da comunhão parcial de bens legalmente previsto (Código Civil, art. 1.725), poderão estabelecer de comum acordo como se dará a administração do patrimônio durante a relação e após eventual ruptura.
Verifica-se que a licitude do conteúdo do contrato de convivência deve se pautar no respeito à moral, aos bons costumes e aos princípios gerais do direito. Ademais, as normas de ordem pública não podem ser objeto de regulamentação nesse contrato (CAHALI, 2002, p. 307).
Não cabe, portanto, a formalização de contrato de convivência para regulamentar os efeitos pessoais da união estável, bem como os direitos relativos à filiação (LÔBO, 2011, p. 181).
É possível perceber, portanto, que embora a regra em relação aos contratos seja a autonomia da vontade, no que diz respeito ao contrato de convivência esta encontra limites ainda maiores.
Não somente os preceitos fundamentais devem pautar o conteúdo desse contrato, mas também as normas cogentes sobre as relações familiares. Sendo assim, os conviventes só têm a liberdade de dispor sobre os efeitos patrimoniais da união estável, escolhendo o regime de bens aplicável conforme as possibilidades dadas pelo Código Civil.
3.1.3. Forma
O terceiro requisito de validade do negócio jurídico é a forma. A regra geral é no sentido de que para que o contrato seja válido, devem as partes adotar ou a forma prescrita, ou a forma não defesa em lei.
Nessa seara, verifica-se que o contrato de convivência não exige o respeito a uma forma específica para a sua concretização, sendo necessário, tão somente, que seja escrito.
A necessidade de ser celebrado por escrito decorre da previsão legal: tanto o artigo 5º da Lei 9.278/96 quanto o artigo 1.725 do Código Civil trazem a expressão contrato escrito.
Além disso, admite-se o registro desse contrato como meio de garantir-lhe publicidade. Nesse sentido se posiciona Euclides de Oliveira:
Em verdade, o contrato de vida em comum é meio de prova e tem indiscutível relevância não só com relação aos efeitos pessoais e patrimoniais entre os companheiros, mas também em relação a terceiros, em seus atos negociais com aqueles. Por este ângulo, verifica-se que teria sido efetivamente útil o dispositivo legal permissivo do registro do contrato, para sua necessária publicidade, trazendo conforto e segurança aos negócios jurídicos celebrados por pessoas unidas estavelmente. Imagine-se a compra e venda de um imóvel por terceiro que desconheça a situação pessoal do vendedor. Celebrado o ato, sem anuência de eventual condômino-companheiro, mais tarde poderia ser reclamada sua anulação, se reconhecido o direito do meeiro sobre o imóvel alienado (OLIVEIRA, 2000, p. 51-52).
É possível concluir, portanto, que ao contrato se convivência se impõe a forma escrita. Não basta que os conviventes o estabeleçam verbalmente, ou mediante manifestação de vontade tácita ou presumida.
Trata-se da única exigência estabelecida pela lei para a formulação desse contrato. Isso porque, conforme visto, sua eficácia não está condicionada ao registro do mesmo.
3.1.4. Consentimento
O consentimento, para os contratos em geral, é o requisito que prevê a necessidade de acordo sobre a existência e a natureza do contrato, sobre o seu objeto e sobre as suas cláusulas.
No contrato de convivência, entretanto, esse requisito adquire roupagem específica. Isso porque a união estável não se forma a partir da mera formalização do pacto. Ao contrário, trata-se de situação fática que exige o comportamento continuado dos conviventes com o intuito de constituir família.
Tal comportamento, inclusive, encontra-se no artigo 1.723 do Código Civil, que estabelece a necessidade de “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.
Do dispositivo legal depreende-se a necessidade de estarem presentes alguns requisitos caracterizadores essenciais da união estável, quais sejam: publicidade, continuidade, estabilidade e objetivo de constituição de família.
No que concerne à publicidade, leciona Pablo Stolze Gagliano que “a ideia de o casal ser reconhecido socialmente como uma família, em uma convivência pública, é fundamental para a demonstração, eventualmente judicial, da existência de uma união estável” (GAGLIANO, 2013, p. 433).
Sendo assim, para que o relacionamento possa ser reconhecido como união estável, não basta que os companheiros, ou apenas um deles, assim o entenda. Faz-se necessário que esse relacionamento tenha se dado de maneira pública, de modo que demais membros da sociedade reconheçam aquelas pessoas como um casal.
A continuidade, por sua vez, se verifica pelo fato de relacionamentos passageiros não terem o condão de dar origem a uma unidade familiar. Exige-se, portanto, o animus de permanência. Pablo Stolze (2013, p. 434) explica que esse requisito é o que permite a equiparação da união estável ao casamento.
O requisito da estabilidade muito se aproxima da continuidade. Para a configuração da união estável, faz-se necessário que a convivência seja estável, duradoura.
Finalmente, a caracterização da união estável requer também o objetivo de constituição de família. Isso porque os companheiros devem viver como se casados fossem.
E somente quando atendidos todos os requisitos necessários para a caracterização dessa modalidade familiar é que o contrato de convivência somente se torna perfeito.
3.2.Momento da celebração do contrato e retroatividade das suas disposições
No que concerne aos contratos em geral o momento de sua conclusão varia conforme sejam as partes presentes ou ausentes.
No contrato de convivência a situação apresenta-se de forma diferente. Isso porque se trata de um pacto que visa regulamentar os efeitos patrimoniais de uma situação de fato, que existe independentemente da avença.
Sendo assim, filiamo-nos ao entendimento no sentido de que o contrato poderá ser firmado a qualquer tempo pelos conviventes. Isso porque o que importa para a pactuação é a vontade dos conviventes em fazê-lo, vontade essa que poderá se dar a qualquer tempo (SIMÕES, 2013, p. 138).
Entretanto, a possibilidade de se contratar após já configurada a união estável implica em outra consequência específica dessa espécie contratual: a retroatividade das suas disposições.
Sobre o tema, explica Francisco Cahali não haver qualquer impedimento para que as partes confiram retroatividade ao quanto estabelecido no pacto. Vejamos:
Temos para nós que não há qualquer impedimento para se conferir retroatividade ao contrato de convivência, no sentido de se fazer incidir suas previsões sobre situação pretérita ou já consumada. As partes são livres para dispor sobre o seu patrimônio atual, passado ou futuro. Nesse sentido, nada obsta que venham a estipular regras sobre os efeitos patrimoniais de união em curso (CAHALI, 2002, p. 76-77).
Verifica-se, portanto, que o contrato de convivência não é inerente ou indispensável à existência da união estável, podendo os conviventes, se assim desejarem, firmá-lo a qualquer tempo.
Sob a condição de consentimento mútuo, podendo preceder ou anteceder o início da união e convivência, através do contrato poderão as partes deliberar sobre a retroatividade de suas disposições, de modo a modificar o regime legal supletivo e a abranger os bens havidos anteriormente ao início da união estável.
3.3.Regime legal supletivo e o contrato de convivência
A união estável, além de dar início a uma nova entidade familiar da qual decorrem efeitos pessoais para os companheiros, também produz efeitos patrimoniais. E, por isso, prevê o artigo 1.725, que, salvo estipulação em contrário, o regime de bens aplicável será o da comunhão parcial.
O regime da comunhão parcial de bens constitui, portanto, o regime legal supletivo para o caso de não haver disposição expressa sobre o tema pelos conviventes.
Sendo assim, o meio legalmente previsto para que o casal disponha em sentido contrário à previsão legal, é a formalização do contrato de convivência. Isso porque os conviventes possuem liberdade – expressão da autonomia da vontade – para estabelecer os efeitos patrimoniais da vida em comum da forma que melhor aprouver aos seus interesses.
Importa verificar que, embora a união estável dê origem a uma unidade familiar semelhante àquela formada pelo casamento, este e a união estável são situações distintas, de modo que nem todas as limitações daquele se aplicam para esta.
Justamente por isso é que a regra do artigo 1.641 do Código Civil, que estabelece a obrigatoriedade do regime da separação de bens para as pessoas que casarem na constância de uma causa suspensiva, para o maior de 70 anos, bem como para aqueles que dependerem de suprimento judicial para se casar, não se aplica para a formalização da união estável.
Isso porque casamento e união estável, embora seja possível a conversão desta naquele, são situações distintas. E, por tratá-las dessa forma, o legislador não previu a semelhança da regulamentação de bens para ambos os institutos (CAHALI, 2002, p. 120-121).
Percebe-se, então, que o Código Civil de 2002 consagrou para a união estável o regime de bens da comunhão parcial, permitindo aos conviventes a possibilidade de optar pelo regime de bens que melhor lhes aprouver.
Basta, para tanto, que convivam em união estável, respeitando todos os requisitos legalmente exigidos para a sua caracterização e que formalizem essa escolha por meio do contrato escrito chamado de contrato de convivência.
CONCLUSÃO
A marcante influência religiosa que predominou nas primeiras leis civis brasileiras, em razão da influência do Direito Canônico, corroborou para que, principalmente no âmbito do Direito de Família, a liberdade dos sujeitos fosse restrita em prejuízo da vontade do Estado. O casamento foi elevado à condição de instituto sagrado, sendo inaceitável e desprovida de tutela jurídica qualquer outra forma de convivência entre o homem e a mulher.
A sociedade, porém, está em constante evolução e, em razão disso, as leis que a regulavam no passado não são as mesmas que acalmam suas angústias no presente. Não pode a legislação posta contrariar esse movimento social, devendo se adaptar às mudanças, para abarcar as novas situações que surgem desamparadas pelo ordenamento jurídico.
Assim, após um grande período de formações de uniões marginais, não amparadas pela legislação vigente, a união estável passou a ser reconhecida, até o momento em que a Constituição Federal de 1988 a consagrou como forma de entidade familiar (artigo 226, §3º), conferindo-lhe proteção jurídica.
A constante mudança social aparece também no momento em que se passa a aceitar que as relações familiares podem ser objeto de negócios jurídicos (limitados, por óbvio) e, consequentemente, disciplinadas, no que for compatível, de acordo com o regramento obrigacional.
Consequência dessa evolução é o chamado contrato de convivência, que nada mais é do que o contrato escrito que os conviventes em união estável estabelecem para escolher, conforme a sua vontade, qual será o regime de bens aplicável para a relação.
Verifica-se, portanto, que a autonomia privada incide no âmbito das relações humanas, inclusive das familiares. Isso porque, os coniventes possuem a liberdade de pactuar, ou não, um contrato, escolhendo um regime de bens. Caso não o façam, o artigo 1.725 do Código Civil prevê o regime da comunhão parcial de bens.
O contrato de convivência, regulamentado juridicamente, impõe a observância e obediência aos mesmos requisitos que atestam a validade dos demais negócios jurídicos. Faz-se necessário que, além de preencher requisitos específicos, eles atendam aos requisitos de validade previstos no artigo 104 do Código Civil.
Assim sendo, depreende-se que a vontade e a autonomia privada, moduladores do contrato de convivência (e de todos os contratos), não se sobrepõem às regulamentações vigentes a respeito dos negócios jurídicos. Portanto, ao firmar um contrato de convivência os companheiros deverão fazê-lo por escrito (sob pena de inexistência), podendo, ou não, proceder ao registro do mesmo perante o Cartório de Títulos e Documentos.
Ao mesmo tempo, em razão de tratar-se de uma relação de Direito de Família, o contrato de convivência não pode dispor sobre os efeitos pessoais da união estável, bem como não pode derrogar as normas cogentes previstas no ordenamento.
Percebe-se, então, que existem condições e contextos previstos que delimitam o campo de livre ação volitiva em questões de união civil entre as pessoas. O negócio jurídico, como possibilidade regulamentação dos efeitos patrimoniais desejados, adquire legitimidade quando os conviventes expressam vontade em optar mais livremente pelo regime de bens que melhor lhes aprouver.
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