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O projeto de CPC e outra oportunidade perdida
O PROJETO DE CPC E OUTRA OPORTUNIDADE PERDIDA
Rafael Calmon Rangel[1]
Recentemente, publiquei aqui no portal do IBDFAM um artigo no qual lancei um convite à reflexão sobre um ponto que, em meu sentir, representou um oportunidade perdida pelo legislador do Projeto: a não atribuição de capacidade postulatória às partes para a prática de atos na audiência de mediação e conciliação a que se refere o art. 710[2].
Neste artigo, o convite se estende a outro ponto: a prisão do devedor de alimentos.
Definitivamente, não se pode afirmar que esta espécie de custódia represente uma questão imune a controvérsias no cenário jurídico nacional, pois não falta quem questione a forma pela qual ela deva ser operacionalizada[3] e até a necessidade de sua manutenção no sistema de direito positivo[4].
Nos Tribunais Superiores, no entanto, o posicionamento predominante é no sentido de que ela comporta perfeito cabimento naquelas execuções destinadas à arrecadação da verba correspondente às três últimas prestações vencidas antes de seu ajuizamento, acrescidas das que se vencerem no curso do processo, em conformidade com o Enunciado sumular n. 309 do STJ.
Não obstante, dúvidas costumam surgir a respeito do local e regime pelos quais o devedor deva cumprir a medida de prisão, dada a omissão do CPC a respeito. No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, a orientação pelo regime aberto parece prevalecer[5], ao passo que no Superior Tribunal de Justiça o entendimento predominante parece ser no sentido do cumprimento da prisão civil no regime fechado[6], com a concessão de alguns benefícios assegurados pela Lei de Execução Penal aos presos civis[7].
Possivelmente encampando o posicionamento sustentado pelo STJ, o projeto do CPC enuncia em seu artigo 542, que
Art. 542. No cumprimento de sentença que condena ao pagamento de prestação alimentícia ou de decisão interlocutória que fixa alimentos, o juiz, a requerimento do exequente, mandará intimar o executado pessoalmente para, em três dias, pagar o débito, provar que não o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. Caso o executado, nesse prazo, não efetue o pagamento, prove que o efetuou ou apresente justificativa da impossibilidade de efetuá-lo, o juiz mandará protestar o pronunciamento judicial, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 531.
[...]
§ 2º Se o executado não pagar, ou não for aceita a justificação apresentada, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do caput, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de um a três meses.
§ 3º A prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns.
§ 4º O cumprimento da pena não exime o executado do pagamento das prestações vencidas e vincendas.
§ 5º Paga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão.
§ 6º O débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende até as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo.[8]
O problema é que regime fechado é um dos regimes de cumprimento da pena de reclusão, imposto por provimento condenatório transitado em julgado, cujo cumprimento se efetiva em Penitenciária (LEP, art. 87)[9], e se baseia na maior gravidade do crime a ele correspondente, na quantidade de pena aplicada no caso concreto e nas circunstâncias judiciais que envolvem a pessoa do preso (CPB, art. 33, §2º, "a"). Ademais, reclama a expedição de guias de recolhimento para a execução da pena (LEP, art. 105)[10], permite remição de dias, por trabalho ou estudo do preso (LEP, art. 126)[11] e autoriza a progressão para regime mais brando (LEP, art. 112)[12].
Existiriam, ainda, diversas incompatibilidades entre os institutos, que só recomendariam ainda mais o tratamento diferenciado a cada um deles.
Essa constatação não é nova. Em meados de 1998, o Min. Marco Aurélio exarou voto no HC nº 77.527-3/MG consignando que:
Fosse o paciente o infrator da legislação penal, havendo, portanto, cometido um crime e tendo, contra si, pena igual ou inferior a quatro anos, não possuindo a pecha de reincidente, poderia, diante de circunstâncias judiciais favoráveis, cumpri-la integralmente em regime aberto. No entanto, por ser um simples devedor, há de observar os trinta dias de custódia no regime fechado, como se envolvido, na espécie, um crime hediondo. O passo é demasiadamente largo e conflita com os princípios constitucionais da razoabilidade e proporcionalidade, fazendo surgir gritante incoerência."
O mais curioso é que, enquanto o legislador do projeto do CPC pretende instituir o regime em questão para todos os devedores de alimentos custodiados, independentemente da averiguação de eventuais circunstâncias judiciais que envolvam o inadimplemento, o direito penal vem buscando alternativas menos severas de cumprimento de pena[13] até para os condenados pela prática de crimes hediondos[14].
E, mais. Encarcerar um devedor de alimentos no regime fechado parece lhe conferir, ao menos em tese, o direito à percepção do auxílio-reclusão previsto no art. 80 da Lei nº 8.213/91 e no art. 116 do Dec. nº 3.048/99, uma vez que nenhum desses atos normativos exige que a prisão seja decorrente da prática de crime, mas apenas que ocorra o fato objetivo de haver segurado recolhido à prisão sob regime fechado ou semiaberto[15]. Este é o fato gerador do benefício. Em aparente reforço a esse entendimento, as informações contidas na página do Ministério da Previdência Social na internet dão conta que o pedido de solicitação do benefício deverá ser instruído com "documento que comprove o efetivo recolhimento à prisão, emitido por autoridade competente, que deverá ser renovado a cada trimestre"[16], sem necessidade de que esta autoridade seja o juízo criminal.
A vingar tal entendimento, surgiria a absurda situação de o Estado acabar arcando com parte da dívida contraída pelo alimentante negligente, durante o período em que ele estiver preso[17], na medida em que os beneficiários da quantia são justamente seus dependentes, nos quais certamente se incluiria o credor promovente da execução de alimentos[18]. E o que é pior! Sem que o segurado supra qualquer período de carência[19].
Como resultado, os anuários estatísticos do IBGE, que já indicam números nada módicos de concessão deste benefício, certamente iriam sofrer considerável aumento[20].
Não se questionam a importância e a necessidade da manutenção da prisão civil no ordenamento. Porém, o próprio local idealizado pelo legislador para o recolhimento desses devedores reclama a existência de estabelecimentos adequados, e, apenas em sua falta, o encaminhamento deles à Cadeia Pública, para o cumprimento da prisão civil em seção especial (LEP, art. 201)[21], daí porque estabelecer-se o regime fechado como único regime de cumprimento de uma prisão civil, definitivamente, não parece ser a melhor saída.
Digna de aplauso, por isso, a sensibilidade da Min. Nancy Andrighi no julgamento do HC nº 104.454/RJ ainda nos idos de 2008[22], onde determinou que o cumprimento da prisão civil pelo devedor de alimentos deveria seguir "os moldes do regime fechado", mas, não o regime fechado propriamente dito, tornando coerente a execução da medida coercitiva com sua finalidade de forçar ao pagamento e não de reabilitar e ressocializar o devedor de alimentos.
Mas, para que potenciais conflitos de interpretação fossem evitados talvez fosse mais sensato que o próprio legislador tomasse partido a respeito e impusesse que a prisão civil não deveria se submeter a nenhum regime penal de cumprimento, mas a algum estatuto jurídico próprio, ainda que em parâmetros semelhantes aos de alguns regimes penais, dada sua natureza coercitiva a distinguir por completo da modalidade de prisão pena.
[1] Juiz de Direito no Espírito Santo. Mestre em Direito Processual Civil pela UFES.
[2] http://www.ibdfam.org.br/artigos/969/O+novo+CPC+e+uma+oportunidade+perdida
[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 23. ed. rev. e atual. Rio
de Janeiro: Forense, 2005. p. 261; HERTEL, Daniel Roberto. A Execução da Prestação
de Alimentos e a Prisão Civil do Alimentante. Revista da EMERJ, v. 12, nº 46, 2009, p. 174.
[4] MAIA, Roberto Serra da Silva.. Prisão Civil do devedor de alimentos: abolição. São Paulo: LTr editora, 2013.
[5][5] HC 77.527/MG, DJ de 16.04.04.
[6] HC 165.760/SC, DJe de 01.07.10; HC 16.824/SC, DJ de 07.03.05.
[7] HC Nº 44.754/SP, DJ de 10.10.05: "Em regra, não se aplicam as normas da Lei de Execuções Penais à prisão civil, vez que possuem fundamentos e natureza jurídica diversos. Em homenagem às circunstâncias do caso concreto, é possível a concessão de prisão domiciliar ao devedor de pensão alimentícia.
[8] O Estatuto das Famílias segue, linhas gerais, o mesmo caminho em seu artigo 224, que enuncia que: A prisão pode ser cumprida em regime semi-aberto ou fechado. Parágrafo único. Em caso de decretação de nova prisão, o regime é o fechado.
[9] Art. 87. A penitenciária destina-se ao condenado à pena de reclusão, em regime fechado.
[10] Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.
[11] Art. 126. O condenado que cumpre a pena em regime fechado ou semiaberto poderá remir, por trabalho ou por estudo, parte do tempo de execução da pena.
[12] Art. 112. A pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso, a ser determinada pelo juiz, quando o preso tiver cumprido ao menos um sexto da pena no regime anterior e ostentar bom comportamento carcerário, comprovado pelo diretor do estabelecimento, respeitadas as normas que vedam a progressão.
[13] STJ, Súmula 269: É admissível a adoção do regime prisional semiaberto aos reincidentes condenados a pena igual ou inferior a quatro anos se favoráveis as circunstâncias judiciais.
[14] STF, Súmula Vinculante nº 26: Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico: Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
[15] § 5º O auxílio-reclusão é devido, apenas, durante o período em que o segurado estiver recolhido à prisão sob regime fechado ou semi-aberto.
[16] http://www8.dataprev.gov.br/e-aps/servico/288
[17] § 5º O auxílio-reclusão é devido, apenas, durante o período em que o segurado estiver recolhido à prisão sob regime fechado ou semi-aberto.
[18] Não se esqueça que a renda do preso, e não a dos beneficiários, é o parâmetro atualmente eleito pelo STF para a concessão do auxílio. Neste sentido: RE 587.365 e RE 486.413.
[19] Art. 30. Independe de carência a concessão das seguintes prestações: I - pensão por morte, auxílio-reclusão, salário-família e auxílio-acidente de qualquer natureza.
[20] Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/wp-content/uploads/2013/05/AEPS_2012.pdf
[21] De acordo com o art. 103 da LEP, cada comarca terá, pelo menos uma cadeia pública a fim de resguardar o interesse da Administração da Justiça Criminal e a permanência do preso em local próximo ao seu meio social e familiar.
[22] HC 104.454/RJ, DJe de 23.06.08: "A jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de, considerando que a finalidade da prisão civil é justamente coagir o devedor a honrar a obrigação, determinar o seu cumprimento nos moldes do regime fechado, tão somente admitindo a conversão para forma de cumprimento mais benéfica em hipóteses excepcionais, nas quais não se amolda a presente."
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