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O Valor Jurídico do Afeto na Atual Ordem Civil-Constitucional Brasileira
Introdução
A família tem sofrido diversas mudanças ao longo dos séculos. Mudanças estruturais, culturais, legais, mas principalmente afetivas, onde o afeto foi finalmente reconhecido e levado a ocupar um lugar de destaque nas relações familiares. A legislação nessa matéria, frente a isso, também necessitou readequar-se em função da mudança de paradigma. No Brasil, as principais alterações no Direito de Família surgiram após a Constituição Federal de 1988, quando trouxe importantes modificações ao Código Civil de 1916, em especial com os princípios de igualdade entre o homem e a mulher e na sociedade conjugal; de não discriminação entre os filhos advindos de qualquer origem, de reconhecimento de novas entidades familiares, além do casamento, como a união estável e a família monoparental; do dever de convivência familiar e da afetividade. A mudança de valores na família gerou uma mudança de paradigma em matéria de Direito de Família, que demonstra a importância das relações de afeto na mesma e as suas implicações em matéria de descumprimento de deveres paternos em relação aos filhos menores. Pretende-se demonstrar a responsabilidade dos pais ausentes na vida dos filhos, que além de material é moral, pois a negligência e o abandono paternos podem gerar prejuízos ao desenvolvimento da personalidade dos filhos menores.
1.Momentos importantes na evolução do Direito de Família brasileiro
Existem três momentos importantes e bem distintos no Direito de Família brasileiro: o primeiro é o regido pelo Código Civil de 1916; o segundo é o após a Constituição Federal de 1988 e o terceiro é o disciplinado pelo atual Código Civil e legislação infraconstitucional.
No Código Civil de 1916, a família estava intrinsicamente ligada ao pater familiae, onde o pai tinha todo o poder sobre a mulher e os filhos. O modelo de família era único ou seja, aquele constituído pelo casamento e os filhos legítimos eram apenas os havidos dentro do casamento.
Esse formato de família era patriarcal, autoritário, hierárquico e patrimonialista onde os membros tinham funções diferenciadas, eram numerosos e a procriação era fundamental para perpetuar a espécie e o patrimônio, já que a força de trabalho era essencial para a sobrevivência da mesma, sendo o afeto um valor timidamente revelado ou até mesmo desconhecido nesse ambiente em que as relações eram muito mais econômicas do que afetivas.
Na evolução da compreensão jurídica e social da família e seus referenciais atuais "toma-se como ponto de partida o modelo patriarcal, hierarquizado e transpessoal da família, decorrente das influências da Revolução Francesa sobre o Código Civil brasileiro de 1916. "( FARIAS; ROSENVALD, 2009, p.3-4).
Acrescentam os mesmos autores que "compreendia-se a família como unidade de produção, realçados os laços patrimoniais." FARIAS; ROSENVALD, 2009, p.4). Assim eram pouco valorados os laços afetivos.
A partir do reconhecimento de outras formas de constituição da família previstas na Constituição Federal de 1988, o Direito de Família deixou de ser conservador, discriminador e autoritário, pois passa a ser visto sob a ótica da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da afetividade. Família não significa mais casamento, sexo e procriação. Sexo e casamento não estão necessariamente mais juntos, nem sexo e procriação. A família perdeu valores que não mais se adequavam a realidade social e ganhou outros mais condizentes como dignidade, igualdade, solidariedade, responsabilidade e afeto. Ao conceber tais valores a Constituição Federal de 1988 muda o curso, a tragetória , a estrutura do Direito de Família.
A propósito, Tepedino ao entender que a Constituição Federal de 1988, consagrou uma nova tábua de valores:
Verifica-se, do exame dos arts. 226 a 230 da Constituição Federal, que o centro da tutela constitucional se desloca do casamento para as relações familiares dele ( mas não unicamente dele) decorrentes; e que a milenar proteção da família como instituição, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, dá lugar à tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, em particular no que concerne ao desenvolvimento da personalidade dos filhos. ( TEPEDINO, 1997,p.48-49).
Existem na Constituição Federal de 1988 diversos princípios constitucionais gerais, que se aplicam a todas as esferas do direito e existem alguns princípios mais específicos aplicados ao Direito de Família, ou seja, além dos consagrados princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da C.F.); da liberdade(art. 5º, inciso LIV ) e da igualdade (art. 5º., inciso I ) tem-se o princípio da pluralidade familiar, da monogamia, da solidariedade familiar, da proteção integral da criança, do adolescente e do idoso, da proibição do retrocesso social, da paternidade responsável e o princípio da afetividade, entre outros.
Entre os princípios constitucionais gerais aplicáveis ao Direito de Família Gama destaca: o princípio da dignidade da pessoa humana; o princípio da tutela especial à família; o princípio do pluralismo democrático; o princípio da igualdade material de todos os integrantes da família; os princípios da liberdade, da justiça e da solidariedade e o princípio da beneficência .Entre os princípios constitucionais específicos : o princípio da paternidade(parentalidade) responsável; princípio da liberdade restrita e da beneficência à prole em matéria de planejamento familiar; princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; princípio da afetividade; princípio do pluralismo das entidades familiares; princípio da isonomia entre os sexos nas relações conjugais e companheiros; princípio da isonomia entre os filhos; princípio da não equiparação entre o casamento e o companheirismo e por fim, entre os princípios infraconstitucionais os seguintes: o princípio da monogamia; o princípio da vedação de incesto; o princípio da mutabilidade mitigada e o princípio da variabilidade do regime de bens; o princípio da indivisibilidade da paternidade e da maternidade; o princípio da disponibilidade e o princípio da não-solidariedade da obrigação alimentar (GAMA, 2008,p.68-108).
A pessoa humana e seus valores como se vê foi colocada em primeiro lugar, no vértice da pirâmide constitucional e diante da estruturação familiar.
A dignidade da pessoa humana é definida por Sarlet como:
a qualidade intrínsica e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como nenhum a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. (SARLET, 2002,p.62).
Para Diniz, o princípio do respeito da dignidade da pessoa humana está ligado a afetividade pois "constitui base da comunidade familiar (biológica ou socioafetiva), garantindo, tendo por parâmetro a afetividade, o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente da criança e do adolescente (CF, art. 227)." (DINIZ, 207,p.22).
O atual Código Civil incorporou os princípios constitucionais referidos nas relações familiares.
2. A noção de afeto
Sobre a noção de afeto, como um elemento concreto a integrar as relações familiares, escreve Carbonera.
A noção de afeto, como um elemento concreto a ser considerado nas relações de família, foi ingressando gradativamente no jurídico, assim como outras tantas: liberdade, igualdade, solidariedade. Isto se deve às transformações pelas quais ela passou, especialmente quanto ao deslocamento do centro de preocupações da instituição família para aqueles que a compõem.
A partir do momento em que o sujeito passou a ocupar posição central, era esperado que novos elementos ingressassem na esfera jurídica. E foi o que se observou com relação ao afeto. ( CARBONERA, 2000, 297).
Segundo Dias, o afeto surge como um novo olhar do legislador, da doutrina e da jurisprudência, se consolidando como um direito fundamental.( DIAS, 2007, p. 67) E a mesma autora conclui dizendo "talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o princípio norteador do direito das famílias é o princípio da afetividade."(DIAS, 2007, p. 69)
Embora a palavra afeto não exista expressamente no texto constitucional, extrai-se do mesmo que pelo fato de a Constituição Federal reconhecer e proteger as relações familiares, quer sejam havidas de casamento, quer sejam constituídas pela união estável, famílias monoparentais e famílias adotivas, a união dessas pessoas ocorre pelo afeto e não mais apenas por procedimentos formais, daí a presença indubitável do afeto, inclusive quando trata da igualdade entre todos os filhos (art. 227,parágrafo 6o).
Lôbo afirma que : "O princípio da afetividade tem fundamento constitucional; não é petição de princípio, nem fato exclusivamente sociológico ou psicológico." ( LÔBO, 2008).
Segundo ele encontram-se na Constituição Federal brasileira três fundamentos essenciais do princípio da afetividade, que compõem a evolução social da família, especialmente nas ultimas décadas do século XX:
a) todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem (art. 227,parágrafo 6º.);
b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da igualdade de direitos (art. 227, parágrafos 5º. E 6º.);
c) a comunicabilidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os adotivos, tem a mesma dignidade da família constitucionalmente protegida (art. 226, parágrafo 4º.). (LOBO, 2008).
Para Gama, o princípio da afetividade é um princípio constitucional específico do Direito de Família e pode ser considerado hipótese de princípio constitucional implícito, pois " tal princípio, também considerado como de prevalência do elemento anímico da affectio nas relações familiares, pode ser extraído da interpretação sistemática e teleológica dos arts. 226, parágrafos 3º. E 6º., 227, caput e parágrafo 1º ambos da Constituição Federal. (GAMA, 2008,p. 82).
No Código Civil de 1916, não existiu e nem dele se pode extrair a presença do afeto, pois baseada que estava a relação familiar na unidade da família constituída somente através do casamento, na hierarquização, no autoritarismo do pater familiae e na patrimonialização. Segundo Carbonera o afeto existiu de forma presumida e não concreta. (CARBONERA, 2000, 274).
Essa concepção tradicional de família foi sepultada pelos novos valores que surgem na sociedade contemporânea, segundo Farias e Rosenvald:
Os novos valores que inspiram a sociedade contemporânea sobrepujam e rompem, definitivamente, com a concepção tradicional de família. A arquitetura da sociedade moderna impõe um modelo familiar descentralizado, democrático, igualitário e despatrimonializado. O escopo precípuo da família passa a ser a solidariedade social e demais condições necessárias ao aperfeiçoamento e progresso humano, regido o núcleo familiar pelo afeto, como mola propulsora. .(FARIAS; ROSENVALD,2009,p.4).
Assim, Welter refere que o Código Civil de 2002, valorou o afeto no art.1.511, quando estabeleceu no casamento a comunhão plena de vida; no art. 1.593 quando admite outra origem à filiação, além do parentesco natural ou civil; no art. 1.596, quando determina a igualdade na filiação; na irrevogabilidade do reconhecimento, conforme art. 1.604 e ainda, no casamento ao referir questões pessoais antes do aspecto patrimonial. (WELTER, p.48).
Saliente-se que o atual Código Civil, não fazia referência expressa a palavra afeto até a alteração ocorrida nos arts. 1.583 e 1.584 do C.C., que regulavam a guarda dos filhos na dissolução da sociedade conjugal, pela Lei nr. 11.698, de 13 junho de 2008, que instituiu a guarda compartilhada. Apenas colocava o termo afetividade quando referia-se a uma das condições da guarda de terceiros, no alterado art.1.584, parágrafo único.
3. O surgimento da expressão "afeto" no Código Civil
Pela primeira vez o legislador usou expressamente a palavra afeto, no art. 1.583, parágrafo segundo, inciso I, alterado pela Lei nr. 11.698/2008, justamente no capítulo que trata da proteção dos filhos, ao descrever as três condições necessárias para o genitor exercer a guarda unilateral, como se verifica:
Art. 1.583. A guarda será unilateral ou compartilhada.
2º. A guarda unilateral será atribuída ao genitor que revele melhores condições para exercê-la e, objetivamente, mais aptidão para propiciar aos filhos os seguintes fatores:
I - afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar;
Ainda, novamente coloca a afetividade como um requisito no momento de conceder a guarda unilateral ou compartilhada do menor para terceiro, conforme o art. 1.584, parágrafo 5º. do C.C., com alteração recente da Lei 11.698 de 13 de junho de 2008, estabelecendo que:
Art. 1.584.
5º. Se o juiz verificar que o filho não deve permanecer sob a guarda do pai ou da mãe, deferirá a guarda à pessoa que revele compatibilidade com a natureza da medida, considerados, de preferência, o grau de parentesco e as relações de afinidade e afetividade."
Daí porque entende-se que "o direito das famílias instalou uma nova ordem jurídica para a família, atribuindo valor jurídico ao afeto."( DIAS, p. 68).
Assim se o afeto deve ser valorado juridicamente é porque ele é um bem jurídico, mesmo imaterial ou abstrato, que pode ter um preço ou seja um valor aferível economicamente e não só sentimentalmente.
Em matéria de Direito de família e de afeto na família o valor jurídico do afeto é um dos `nós`que deve ser desfeito, buscando-se uma solução equilibrada a respeito. O termo `nó` foi utilizado por Perrot ao tratar sobre a família após o século XIX. (PERROT. p. 75). Alguns `nós` no Direito de Família já estão sendo desfeitos pela doutrina e jurisprudência brasileiras, no que diz respeito a afetividade nas relações familiares, como por exemplo a união estável, a família homoafetiva ( Em 09.10.2008, o Superior Tribunal de Justiça, reconheceu a possibilidade jurídica de apreciação de ações que envolvem união homoafetiva pela primeira vez) e a filiação socioafetiva. Resta desfazer mais este.
O afeto tornou-se um valor tão importante no Direito de Família que o desafeto paterno passou a ser objeto de litígio e indenização por danos morais.
4.O abandono afetivo e as decisões judiciais
O Poder Judiciário desde o ano de 2003, foi chamado a examinar a questão do abandono afetivo na relação paterno-filial, sendo que a ação pioneira transcorreu na Comarca de Capão da Canoa, tendo a sentença condenado o pai a indenizar a filha por abandono afetivo, no valor de 200 salários mínimos.
Da sentença extrai-se:
De se salientar que aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos (art. 22 da Lei no. 8.069/90). A educação abrange não somente a escolaridade, mas também a convivência familiar, o afeto, amor,carinho, ir ao parque, jogar futebol, brincar, passear, visitar, estabelecer paradigmas, criar condições para que a criança se auto-afirme. Desnecessário discorrer acerca da importância do pai no desenvolvimento da criança. A ausência, o descaso e a rejeição do pai em relação ao filho recém-nascido ou em desenvolvimento violam a sua honra e a sua imagem. (Juiz Mario Romano Maggioni.2ª. Vara. Comarca de Capão da Canoa. Proc.no. 14/1020012032-0.Data 15.09.2003).
Em seguida surge outra ação semelhante no estado de Minas Gerais, que teve em 1ª. instância improcedência, uma vez que não foram comprovados os danos supostamente causados ao filho.
Esta decisão foi apreciada pela 7ª. Câmara Cível do Tribunal de Alçada de Minas Gerais, que determinou a reparação em dinheiro da dor sofrida (dano afetivo, moral e psíquico) pelo filho decorrente de abandono paterno, conforme ementa:
INDENIZAÇÃO DANOS MORAIS- RELAÇÃO PATERNO-FILIAL-PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA- PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE.
A dor sofrida pelo filho, em virtude de abandono paterno, que a privou do direito à convivência, ao amparo afetivo, moral e psíquico, deve ser indenizável, com fulcro no princípio da dignidade da pessoa humana. (Apelação Cível no. 408.550.3, Belo Horizonte, 7ª. Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Estado de Minas Gerais. Rel. Juiz Unias Filho, j.01.04.2004).
O voto do relator que foi acompanhado pelos demais julgadores, ressalta que a atual concepção de família é concebida segundo a afetividade sendo um dever absoluto da mesma assegurar à criança os fundamentos de construção e formação de sua dignidade como pessoa humana, cabendo-lhe o dever de convívio, educação, que nascem dos laços de afeto que interferem na elaboração da identidade psíquica de uma pessoa e "A responsabilidade (pelo filho) não se pauta tão somente no dever de alimentar, mas se insere no dever de possibilitar desenvolvimento humano dos filhos, baseado no princípio da dignidade da pessoa humana." .( FILHO, Unias, 2006). O valor da reparação foi fixado em 200 salários mínimos, mais juros de mora.
Referida decisão foi reformada pelo SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, que entendeu :
Responsabilidade civil - Abandono moral - Reparação - Danos morais - Impossibilidade. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo a aplicabilidade da norma do art. 159 do CC/1916 (arts. 186 e 927, CC/2002) o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária. Recurso especial conhecido e provido (STJ, 4ª. T. REsp. 757.411/MG, rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 29.11.2005).
Por maioria (4 votos a 1) a 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso do pai,considerando que a lei somente estabelece a perda do poder familiar pelo pai, conforme relatório do Min. Fernando Gonçalves:
A determinação da perda do poder familiar , a mais grave pena civil a ser imputada a um pai, já se encarrega da função punitiva e, principalmente, dissuasória, mostrando eficientemente aos indivíduos que o Direito e a sociedade não se compadecem com a conduta do abandono, com o que cai por terra a justificativa mais pungente dos que defendem a indenização por dano moral.
E, finalizando o relator conclui:
Desta feita, como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.
Nesse contexto, inexistindo possibilidade de indenização em que alude o art. 159 do Código Civil de 1916, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de indenização. ( GONÇALVES,2008)
Entende-se equivocada dita decisão, com respeito, eis que neste caso não é uma punição para o pai a perda do poder familiar, pois se espontaneamente durante longos anos não exerceu esse poder, por vontade própria, porque será uma punição perdê-lo? A perda do poder familiar do pai que abandona o filho neste caso é um prêmio e não uma punição, assim não serve para justificar a não concessão do dano moral.
Também, o instituto do poder familiar não é mais considerado uma punição para os pais mas uma proteção aos filhos, especialmente diante do maior interesse do menor e do princípio da proteção absoluta da criança e do adolescente.
Entenderam também os Ministros que votaram favoravelmente ao recurso do pai, que a dor do afastamento em Direito de Família tem princípios próprios, que não podem ser contaminados por outros, com significações de ordem patrimonial, conforme o Min. César Asfor Rocha. Segundo o ministro Jorge Scartezzini "O que se questiona aqui é a ausência de amor"."e "É uma busca de dinheiro indevida".
Já o ministro Barros Monteiro considerou que a destituição do poder familiar não interfere na indenização e o genitor "ao lado de assistência material, tem o dever de dar assistência moral ao filho, de conviver com ele, de acompanhá-lo e de dar-lhe o necessário afeto", pois o pai estaria desobrigado da indenização somente se houvesse um motivo maior para o abandono, pois "haveria sim, uma excludente de responsabilidade se o réu, no caso o progenitor, demonstrasse a ocorrência de força maior". (MONTEIRO,2008).
Como se não bastassem esses argumentos, entende-se que tal decisão teve uma interpretação incoerente com o ordenamento jurídico, uma vez que é possível enquadrar-se a conduta dos pais que abandonam seus filhos, quer seja materialmente, moralmente e intelectualmente nos crimes contra a família referentes aos crimes contra a assistência familiar, previstos nos arts. 244 a 247 do Código Penal, citados a seguir:
Art. 244- Deixar, sem justa causa, de prover a assistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários ou faltando ao pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada,deixar, sem justa causa, de socorrer descendente ou ascendente, gravemente enfermo:
Pena - detenção de 1 (um) a 4 (quatro) anos e multa, de uma a dez vezes o maior salário mínimo vigente no País.
Parágrafo único- Nas mesmas penas incide quem, sendo solvente, frustra ou ilide, de qualquer modo, inclusive por abandono injustificado de emprego ou função, o pagamento de pensão alimentícia judicialmente acordada, fixada ou majorada.
Art. 245 - Entregar filho menor de 18 (dezoito) anos a pessoa em cuja companhia saiba ou deva saber que o menor fica moral ou materialmente em perigo:
Pena - detenção, de 1(um) a 2 (dois) anos.
1º. A pena é de 1(um) a 4 ( quatro)) anos de reclusão, se o agente pratica delito para obter lucro, ou se o menor é enviado para o exterior, com o fito de obter lucro.
Art. 246 - Deixar, sem justa causa, de prover a instrução primária de filho em idade escolar:
Pena - detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou de multa.
Ou seja, é possível aplicar-se uma pena criminal, mas não é possível aplicar-se uma sanção cível, prevista nos art. 186 do Código Civil, que atingirá apenas o patrimônio desses pais que negligenciam os cuidados com os filhos. Portanto tal atitude é crime, mas não configura ato ilícito !
Assim sendo é possível penalizar a pessoa, mas não é possível atingir os seus bens. É o mesmo que dizer retire-se a sua liberdade, mas não os seus bens. Parece ser uma inversão de valores, colocando os bens materiais em primeiro lugar, em detrimento da pessoa humana ou da liberdade humana, o que é totalmente incoerente com o princípio de dignidade da pessoa humana e com a despatrimonialização do Direito Civil. Está claro o privilégio do patrimônio (direito de propriedade) do pai, em detrimento da pessoa humana ( direito à dignidade) do filho, que deve estar em primeiro lugar quando houver colisão de direitos fundamentais, segundo a proporcionalidade ou a ponderação de valores.
Ao mesmo tempo o ordenamento jurídico protege a honra de uma pessoa, que também é um valor subjetivo, por calúnia, injúria e difamação, condenando o ofensor ao pagamento de indenização civil. O art. 5º., inciso X, da Constituição Federal disciplina a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem de uma pessoa, assegurando indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação.
Outras ações estão surgindo com o mesmo propósito, mas a que está chamando a atenção de todos é o caso supra citado, pois está pendente de julgamento aguardando decisão do Supremo Tribunal Federal, eis que o Superior Tribunal de Justiça entendeu que não cabia apreciação do Supremo Tribunal Federal e a parte recorrente entrou com agravo de instrumento.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal, último alento para aqueles que buscam justiça, aplique os princípios constitucionais de dignidade da pessoa humana, paternidade responsável, dever de convivência, solidariedade familiar, proibição do retrocesso social e afetividade.
Caso contrário entender-se-á que a família não é constituída por seres humanos, dignos de tutela judicial e que os princípios constitucionais não tem aplicabilidade nas relações familiares.
Certo é que o valor pecuniário nessas ações não reparará o amor perdido, a convivência que não existiu e o afeto que não foi transmitido, isto é, não recompõe a perda, mas deve servir como uma punição pedagógica para educar quem abandona e fazer com que outros pais e mães tenham uma conduta responsável em relação aos seus filhos, sujeitos de direitos. Nesse sentido, Pereira entende que não se pode obrigar alguém a dar afeto, porém o valor da indenização não terá nesses casos cunho ressarcitório, mas punitivo e simbólico ou seja, pedagógico, como se verifica:
Afinal, eles são os responsáveis pelos filhos e isto constitui um dever dos pais e um direito dos filhos. O descumprimento dessas obrigações significa violação ao direito do filho. Se os pais assim não agem, devem responder por isso. Essa é a resposta que a sociedade deve dar, por meio da Justiça, aos pais abandônicos. A indenização estaria então monetarizando o afeto? De maneira alguma. O valor da indenização é simbólico e tem apenas uma função punitiva. Mais que isso: uma função educativa. Afinal, não há dinheiro no mundo que pague o dano e a violação dos deveres morais à formação da personalidade de um filho rejeitado pelo pai. (PEREIRA, 2008).
E, segundo Santos: "A indenização conferida nesse contexto não tem a finalidade de compelir o pai ao cumprimento de seus deveres, mas atende a duas relevantes funções além da compensatória: a punitiva e a dissuasória." (SANTOS, 2005,p.132).
Da mesma forma, Madaleno:
O dano a dignidade do filho em estágio de formação deve ser passível de reparação material, não apenas para que os deveres parentais deliberadamente omitidos não fiquem impunes, mas, principalmente, para que, no futuro, quaisquer inclinações ao irresponsável abandono possam ser dissuadidas pela firme posição do Judiciário ao mostrar que o afeto tem um preço muito cara na nova configuração familiar. (MADALENO, 2007, p. 128).
Também, Silva entende que :
Não se trata, pois, de `dar preço ao amor`- como defendem os que resistem ao tema em foco - , tampouco de `compensar a dor' propriamente dita. Talvez o aspecto mais relevante seja alcançar a função punitiva e dissuassória da reparação de danos, conscientizando o pai do gravame causado ao filho e sinalizando para ele, e, outros, que sua conduta deve ser cessada e evitada, por ser reprovável e grave. (SILVA, p. 141-142).
Entende-se que Estado quer interferir o mínimo possível nas relações familiares, que possuem natureza privada, embora o caráter público esteja também presente na aplicação das normas cogentes de Direito de Família. Não é possível estabelecer regras e aplicar o direito segundo o lugar que as pessoas ocupam na sociedade, até porque haveria ofensa ao princípio de igualdade constitucional. Não importa o lugar, mas o ser. Se a família é a base da sociedade e merece especial proteção do Estado, conforme dispõe o art. 226, caput, da Constituição Federal, este tem que efetivamente protegê-la quando um de seus membros estiver ameaçado, seja a ameaça externa ou interna, sejam os violadores das regras terceiros ou membros da própria família. A empresa é digna de tutela judicial reparatória, a escola, as relações de consumo, as relações trabalhistas, porque não as relações familiares.? Não é relevante o local onde a violação aconteceu, ou quem a cometeu, mas sim o que aconteceu, o fato em si, o dano ocorrido. O que deve ser protegido é a pessoa agredida ou que tem o seu direito violado, não importando o lugar onde ela esteja nem a pessoa que cometeu a agressão, violação e até mesmo a omissão como neste caso, o abandono.
Dessa forma, se o Poder Judiciário, através do Supremo Tribunal Federal, negar acolhida a tais ações, possivelmente o filho (criança ou adolescente) sentir-se-á triplamente abandonado, pela família, sociedade e Estado, justamente quem deveria protegê-los segundo o art. 227, caput, da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 4º., e nada mais poderá fazer a não ser lamentar.
Por outro lado, a recente alteração do Código Civil , no que diz respeito a guarda compartilhada veio para proporcionar convivência dos filhos com os pais, o que se verifica facilmente na guarda consensual.
Saliente-se, no entanto, que o Estado também ao dispor sobre a guarda compartilhada na forma litigiosa está determinando o convívio entre pais e filhos menores, deixando a critério do juiz e com o auxílio de profissionais de ciências interdisciplinares a possibilidade de aplicação no caso concreto, conforme se extrai do art. 1.584, inciso II, parágrafo 1º. e parágrafo 2º., C.C.:
Art. 1.584. A guarda unilateral ou compartilhada poderá ser:
II - decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai ou a mãe.
1º. Na audiência de conciliação o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas.
2º. Quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada.
Assim, a guarda compartilhada é solução para proporcionar a convivência entre pais e filhos na forma consensual e, mesmo na forma litigiosa é uma excelente oportunidade de o Estado através do Poder Judiciário cumprir com o seu dever de propiciar o dever de convivência familiar, previsto na Constituição Federal no art. 227, caput, fazendo com que os pais convivam com seus filhos e se não o fizerem, ou seja, se os abandonarem, o juiz poderá aplicar sanções em caso de descumprimento, o que já ocorre judicialmente quando os pais não visitam os filhos e são condenados por exemplo, a pena de multa, embasada no art. 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Talvez essa forma de punição possa evitar os casos de abandono dos pais e consequentemente evite o ajuizamento de ações de indenização por abandono afetivo pelos filhos, sendo, portanto, uma possível solução.
Por esse ângulo vê-se esta norma, quanto a possibilidade de aplicação em casos litígiosos de forma positiva e não negativa, como quase unanimidade dos doutrinadores. O que se quer é o convívio, pois então o Estado já determina a convivência com o pai e com a mãe e , se eles não cumprirem e assim abandonarem afetivamente os filho, já estarão respondendo pelos danos que estarão causando aos mesmos. Portanto, de forma positiva analisa-se tal dispositivo entendendo que o legislador quis privilegiar as relações entre pais e filhos no momento da dissolução da sociedade conjugal, mesmo que entre o casal não seja mais possível a convivência, o afeto, não se pode negá-los aos filhos.
Com isso, conclui-se que o Estado procura não intervir nas relações familiares, preferindo que seus integrantes resolvam seus problemas internamente, sem a sua presença. No momento em que isso não é possível interfere para resolver os litígios. Assim foi com a publicação da Lei Maria da Penha, que trata da violência doméstica nas relações familiares. Também recentemente, na guarda compartilhada quando atribui ao juiz a possibilidade de aplicação da mesma em processos litigiosos. Como se vê, o Estado está intervindo nas relações familiares, mesmo que o legislador não tenha se dado conta disso.
O afeto é o alicerce das relações familiares, sem ele o edifício da família um dia ruirá, mais cedo ou mais tarde, acompanhado de outros elementos como o respeito, a consideração, o companheirismo, a fidelidade em todos os sentidos , não só sexual, o nível econômico, cultural e emocional dos seus integrantes, daí porque deve ser protegido e valorado juridicamente.
Sem afeto a família não resistirá. A propósito Roudinesco, psicanalista francesa, ao ser entrevistada quando esteve no Brasil, ao responder sobre a família do futuro afirmou : "Não há famílias ideais . A família do futuro está para ser construída e não teorizada."( Roudinesco, 2004, p.3). A mesma autora também entende que
Cada vez que o modelo se transforma, surge o medo de a família terminar. Por isso fiz um ensaio sobre a história da família, mostrando que esse fantasma de que um dia a família vai acabar, sempre existiu. Mas a família não vai acabar nunca. Apenas os papéis estão se transformando, o pai era uma figura divina.Mas, esse modelo foi desconstruído com o fim da monarquia. A mulher, que não representava papel algum na reprodução( ela era o receptáculo do esperma masculino) passou a desempenhar o papel principal. ( Roudinesco, 2004, p.4).
Acrescente-se, para finalizar que a família somente poderá deixar de existir se o afeto acabar entre as pessoas. Como isso é quase impossível, entende-se que sem afeto a família não resistirá, pois se o afeto é o que a constrói o desafeto é o que a destrói.
Considerações Finais
Conforme dispõe o art. 226, caput, da Constituição Federal a família é a base da sociedade e merece especial proteção do Estado, assim não há dúvida que o Estado deve não só estar presente mas agir efetivamente nas relações familiares para proteger um membro da mesma enquanto pessoa . O dano ocorre independentemente do local da agressão, o que é relevante é que uma pessoa humana foi agredida ou violada em seus direitos.
Por isso, se Poder Judiciário, negar acolhida a tais ações, em casos de comprovado abandono dos filhos menores pelos pais, possivelmente o filho (criança ou adolescente) será triplamente abandonado pela família, sociedade e Estado, justamente quem deveria protegê-los, segundo o art. 227, caput, da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente no art. 4º. A família não deixará de existir porque o Estado responsabilizará um de seus membros por danos cometidos, sejam materiais, morais ou psicológicos no seio da mesma, pelo contrário, só não sobreviverá se não existir afeto entre seus membros, pois sem afeto não há fidelidade, vida em comum, interesses comuns, respeito e consideração mútuos. Sem afeto todos esses elementos poderão existir separadamente, mas não constituirão uma família, existirão em outro lugar, que não nesse "ninho", podendo configurar uma sociedade, uma entidade, uma associação, mas jamais uma família!
Não resta dúvida que a atual concepção de família, quer seja civil, quer seja constitucional tem base na afetividade, sendo que o futuro, possivelmente, trará novas formas de amar, viver e conviver afetivamente em família.
É preciso reconhecer que o afeto deixou de ser um mero coadjuvante nas relações de família para ser o ator principal da mesma.
Daí porque os julgadores devem dar ao afeto familiar o valor jurídico que ele merece.
Eliane Goulart Martins Carossi é Advogada. Professora de Direito Civil na UCS- Universidade de Caxias do Sul. Mestre e Doutora em Direito das Relações Sociais pela UFPR - Universidade Federal do Paraná.
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