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Inaplicabilidade da multa (fiscal) por instauração tardia do inventário causa mortis no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19): análise do art. 19 do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado
Inaplicabilidade da multa (fiscal) por instauração tardia do inventário causa mortis no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19): análise do art. 19 do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado - RJET)
Rodrigo Mazzei
Mestre (PUC-SP), Doutor (FADISP) e pós-doutoramento (UFES)
Líder do Núcleo de Estudos em Processo e Tratamento de Conflitos (NEAPI - UFES)
Professor da UFES (graduação e PPGDir)
Advogado e consultor jurídico
Deborah Azevedo Freire
Mestranda (UFES) e advogada
No dia 03 de abril de 2020, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei apresentado pelo Senador Antônio Anastasia (PL 1.179/2020) que estabelece um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) para tratar de problemas específicos aferidos em determinadas relações privadas, em virtude do estado de calamidade pública causado pela pandemia do Coronavírus SARS-CoV2 (COVID-19). No que toca ao direito sucessório, o RJET - em seu capítulo XI (denominado “Do Direito da Família e Sucessões”) tratou do prazo para a instauração e término do inventário causa mortis, consoante se infere do seu art. 19 e seu parágrafo único:
Art. 19. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
Parágrafo único - O prazo de 12 meses do art. 611 do Código de Processo Civil, para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da vigência desta Lei até 30 de outubro de 2020.
Este pequeno estudo tem como objeto a análise do caput do art. 19, especificamente sua aplicação em relação ao afastamento da multa fiscal por atraso na instauração do inventário durante o período da pandemia do COVID-19.
Feito o corte da abordagem, é fundamental destacar que o art. 19 do RJET está umbilicalmente ligado ao art. 611 do CPC[1], sendo feita expressa alusão no sentido. Portanto, há conexão direta do dispositivo comentado com a legislação processual, criando amálgama legal que não permite cisão.
De outra banda, é capital salientar que há deslize técnico na redação do caput do art. 19 do RJET, o qual merece ser denunciado. Com efeito, extrai-se do texto do citado dispositivo que a solução eleita pelo legislador em relação à instauração dos inventários causa mortis foi a dilatação do prazo previsto na legislação processual. Basta notar que consta expressamente no art. 19 que - para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 - o art. 611 do CPC terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
Com todo respeito, somente pode se falar em dilatação de prazo em relação às sucessões já abertas, pois é a partir de tal fato que se inicia a contagem do prazo para a instauração do inventário causa mortis. Às claras, o verbo dilatar está atrelado ao aumento ou à expansão de algo que concretamente já existe e, em se tratando de prazo, tecnicamente, ao se falar em “dilatação” aplicada a este, pressupõe-se que ele já está em curso e foi alterado, aumentando o seu termo.
Dessa forma, se for feita interpretação literal do verbo empregado (dilatar) o caput do art. 19 somente alcançará as sucessões já abertas, isto é, aquelas situações anteriores à edição do RJET, porquanto o diploma não teria como estender prazo que não se iniciou ainda. Não possui boa inspiração técnica a previsão legal que fixa a “dilatação” para instauração de inventários em casos de sucessão não aberta, pois, repita-se, em tais casos a contagem de prazo não se iniciou.
Fazendo a correta interpretação do art. 19 do RJET, percebe-se que – em verdade - o referido dispositivo fixou um período em que a contagem do prazo para a instauração do inventário causa mortis não fluirá, sendo adiado para o dia 30 de outubro de 2020 o início do cômputo do prazo de 02 (dois) meses previsto no art. 611 do CPC, no que se refere à abertura do processo sucessório em relação às sucessões abertas entre os dias 1º de fevereiro e 29 de outubro de 2020[2].
De toda sorte, ainda que com redação inadequada ao trabalhar com os prazos de instauração e desfecho do inventário causa mortis, conclui-se que o RJET ratifica a ideia de obrigatoriedade da abertura e do encerramento do processo sucessório, qualquer que seja o seu desfecho.
Note-se que embora não conste disposição na legislação nacional que indique diretamente que o inventário é obrigatório, esta conclusão parece ser intuitiva da redação dos arts. 611 do CPC e 1.796 do Código Civil que ditam prazo para sua instauração. Soma-se a isto, a imperatividade com que a legislação trabalha a arrecadação em caso de herança jacente (art. 738 do CPC), que, após os trâmites legais (arts. 738-742 do CPC) permite a declaração de vacância (art. 1.820 do Código Civil), a fim de que os bens arrecadados passem para a titularidade do Município ou do Distrito Federal (art. 1.822 do Código Civil)[3]. Ademais, evidencia a obrigatoriedade do inventário o fato de que a figura do administrador provisório foi pensada para o exercício da gestão precária da herança, em período curtíssimo e antecedente à formalização da inventariança (arts. 611, 615 e 617, parágrafo único, do CPC).
O RJET, ao trabalhar com os prazos do inventário causa mortis, reforça ainda mais a ideia de obrigatoriedade do inventário, na medida em que dele se extrai que o prazo de 02 (dois) meses para a instauração do inventário previsto no art. 611 do CPC é, de fato, obrigatório. Se assim não o fosse, não haveria necessidade de alteração legislativa para “dilatar” referido prazo no atual contexto. No entanto, a obrigatoriedade da instauração do inventário é fragilizada pelo CPC, já que na referida codificação, assim como no Código Civil, não foi prevista qualquer sanção pela omissão na abertura do processo sucessório[4]-[5].
Por certo, como a abertura do inventário causa mortis é ato obrigatório, não há qualquer sentido em veicular sanção que verse sobre o bloqueio da sua instauração, pois tal medida, na prática, sedimentaria a falta cometida pelas pessoas vinculadas à herança[6]. Dessa forma, é intuitivo que a multa pecuniária se posta como melhor opção de sanção para coibir o atraso na instauração, muito embora, repita-se, a legislação federal seja omissa a respeito. Há, portanto, na legislação federal um quadro incompleto, pois apesar de ser fixada a obrigatoriedade da conduta (= instauração do inventário), não foi desenhada sanção pelo seu descumprimento.
Contudo, é incorreto afirmar que não há nenhum tipo de apenamento em caso de instauração do inventário causa mortis a destempo, isto é, posteriormente ao prazo fixado no art. 611 do CPC. No sentido, a legislação tributária estadual e distrital estabelece multa de caráter fiscal fixada sobre o ITCMD[7]. Como se trata de legislação local, a moldura da multa por atraso na instauração do inventário causa mortis estará desenhada de forma pontual em cada Estado e Distrito Federal, não seguindo modelo único, apesar de pontos de contato (como por exemplo, a base de cálculo que em regra é o valor do imposto devido, isto é, o ITCMD devido servirá de superfície para a incidência de cálculo da multa).
Dentre as variações, é possível não só a fixação de alíquotas diferentes, mas também de uso de progressividade a partir da aferição do atraso. Em São Paulo, por exemplo, o art. 21, I, da Lei nº 10.705/2000, prevê que se o inventário (ou arrolamento) não for requerido dentro do prazo fixado pela legislação federal, o ITCMD será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto, mas se o atraso exceder a 180 (cento e oitenta) dias, a multa será de 20% (vinte por cento). Para uma visão panorâmica, segue rápido quadro comparativo com alguns diplomas locais:
ESTADO |
LEI |
DISPOSITIVO |
MULTA POR ATRASO CALCULADA SOBRE O ITCMD |
SÃO PAULO |
10.705/2000 |
Art. 21, I |
10%, porém se o atraso exceder 180 dias, 20% |
ESPÍRITO SANTO |
10.011/2013 |
Art. 16, §2° |
10%, ainda que o recolhimento tenha sido efetuado no prazo previsto em regulamento |
RIO DE JANEIRO |
7174/2015 |
Art. 37, V |
10%, cobrada em dobro quando constatada a infração no curso de procedimento fiscal |
CEARÁ |
15.812/2015 |
Art. 34, I |
10%, porém se o atraso exceder 180 dias, 20% |
DISTRITO FEDERAL |
5.452/2015 |
Art. 11-A, I |
20% |
SANTA CATARINA |
13.136/2004 |
Art. 13, I, a |
20% |
Ressalte-se, por deveras relevante que como é a lei federal que trata do prazo de instauração do inventário causa mortis, os diplomas estaduais e o distrital estão atrelados a tal comando, somente podendo aplicar a multa se não for descumprido o preceito que emana da legislação produzida pela União Federal, em respeito ao art. 22, I, da CF/88[8]. Em suma, somente a União Federal pode regular Direito Civil e Direito Processual Civil, sendo o prazo para a instauração do inventário causa mortis assunto íntimo à competência prevista no art. 22, I, do diploma constitucional.
O fato faz com que, inclusive, não seja incomum que a legislação local traga menção à aplicação da legislação federal em relação ao prazo para instauração do inventário causa mortis. [9]
Portanto, apesar do RJET não tratar do afastamento da multa fiscal, a instauração tardia do inventário em razão de sua vigência não enseja a sanção fiscal pelo não cumprimento do art. 611 do CPC. Isso porque, como os ditames do citado dispositivo do CPC estão afetados pelo art. 19 do RJET, caso se obedeça a normatização transitória não há conduta contrária a legislação que permita a imposição de qualquer multa, inclusive de natureza fiscal.
Enfim, a multa fiscal somente se justificará se decorrido o prazo para instauração do inventário causa mortis e este não for alcançado pelo art. 19 do RJET, pois, em contrário, sendo hipótese alcançada pela legislação transitória, há alteração que remete o prazo para o dia 30 de outubro de 2020.
[1] Art. 611. O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
[2] Observe-se que no parecer apresentado pela Relatora do Projeto (PL) nº 1.179/20, Senadora Simone Tebet, essa se refere não à dilatação, mas ao adiamento do prazo para a abertura do inventário, in verbis: “O Capítulo XI (“Do Direito de Família e Sucessões”) fixa o regime exclusivamente domiciliar para o cumprimento da prisão civil por dívida de alimentos (art. 22). Outrossim, adia, para 30 de outubro de 2020, o início da contagem do prazo de dois meses para a abertura de processos de inventário relativos a falecimentos ocorridos a partir de 1º de fevereiro de 2020, e suspende, até 30 de outubro de 2020, os prazos para conclusão dos processos de inventário ou de partilha iniciados antes de 1º de fevereiro de 2020 (art. 23).”
[3] Sobre a obrigatoriedade de instauração do inventário causa mortis, confira-se: Rodrigo Mazzei (Comentários ao Código de Proceso Civil. Volume XII (arts. 610-673). José Roberto F Gouvêa, Luiz Gulherme A. Bondioli e João Francisco Naves da Fonseca (coords). São Paulo: Saraiva, no prelo).
[4] No sentido: Marcello Uriel Kairalla [Regime jurídico especial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJT) – breves reflexões. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/artigos/1402/Regime+jur%C3%ADdico+especial+e+transit%C3%B3rio+das+rela%C3%A7%C3%B5es+jur%C3%ADdicas+de+direito+privado+%28RJET%29+%E2%80%93+breves+reflex%C3%B5es#_ftn1>. Acesso em: 07 de abril de 2020].
[5] Instaurado o inventário pela via judicial há mecanismos para que este chegue ao seu desfecho, uma vez que o juiz poderá, se necessário, nomear inventariante dativo para a missão seja levada a cabo. Além do mais, é possível se importar a multa atrelada à responsabilidade por dano processual (litigância de má-fé) para o inventário causa mortis (arts. 79-81 do CPC), o que, de certa maneira, supre a existência da legislação de sanção específica para o atraso injustificado no desfecho do inventário, bastando que se configure que tal serôdia pode ser extraída do disposto no art. 80.
[6] Confirmando o acima dito, o art. 31 da Resolução 35/2007 do CNJ prevê a possibilidade de instauração de inventário extrajudicial fora do prazo do art. 611 do CPC. Confira-se: Art. 31. A escritura pública de inventário e partilha pode ser lavrada a qualquer tempo, cabendo ao tabelião fiscalizar o recolhimento de eventual multa, conforme previsão em legislação tributária estadual e distrital específicas
[7] A multa fiscal se justifica pelo fato de que o ITCMD é um tributo de competência estadual/distrital (art. 155, I, CF/88) e a não instauração do inventário no prazo legal pode contribuir para que o imposto seja recolhido a destempo. A legalidade da imposição da multa já foi alvo de apreciação pelo STF, que editou a Súmula 542, cujo entendimento é ainda aplicável.
[8] Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho
[9] No estado do Ceará, por exemplo, o art. 34, I da Lei 15.812/2015 prevê expressamente que apenas na hipótese de inventário e arrolamento requerido após o prazo previsto na legislação federal (CPC), o ITCMD será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto, veja-se: “Art. 34. As infrações relacionadas com as transmissões causa mortis são punidas com a aplicação das seguintes penalidades, sem prejuízo da cobrança do imposto, quando for o caso: I - multa equivalente a 10% (dez por cento) sobre o valor do imposto devido, pelo atraso no requerimento do inventário ou arrolamento, que deverá dar-se no prazo previsto na legislação processual civil, aumentada para 20% (vinte por cento) quando o atraso ultrapassar 180 (cento e oitenta) dias.” De igual modo, nas legislações do Distrito Federal e do estado de Santa Catarina, a aplicação da multa fica sujeita ao descumprimento do prazo legal para a abertura do inventário (art. 11-A, I da lei 5.452/2015-DF e art. 13, I, a da lei 13.136/2004 -SC). No estado do Rio de Janeiro, o art. 37, V da Lei 7174/2015 faz referência expressa ao prazo de dois meses estabelecido pelo CPC, in verbis: Art. “37. O descumprimento das obrigações previstas nesta Lei sujeita o infrator à aplicação das seguintes penalidades: [...] V - a quem não requerer a abertura do processo judicial de inventário e partilha dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, será aplicada multa de 10% (dez por cento) do valor do imposto devido, cobrada em dobro quando constatada a infração no curso de procedimento fiscal”. Já no estado de São Paulo e do Espírito Santo há referência ao prazo de 60 dias estabelecido pela lei 11.441/07 que alterou o art. 983 do CPC/73, eis que estas entraram em vigor ainda durante a vigência do revogado código.
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