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Senexão: um novo instituto de direito das famílias?
Senexão: um novo instituto de direito das famílias?
Patricia Novais Calmon
Advogada especialista em Direito das Famílias e Sucessões, Infância e Idoso. Mestranda em Direito Processual pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Presidente da Comissão da Adoção e do Idoso do IBDFAM-ES. Diretora da Associação Brasileira de Advogados (ABA-Vitória). Membro da International Society of Family Law.
Resumo: O presente artigo tem por finalidade estudar o Projeto de Lei nº 105/2020, que visa criar o instituto da senexão, bem como seus conceitos e interpretações, cotejando-o com os projetos de lei que tratam sobre a adoção de idosos.
Palavras-chave: Senexão; Adoção de idosos; Socioafetividade; Idosos.
Sumário: 1. Introdução; 2. 2. Senexão: O Projeto de Lei nº 105/2020; 3. Senexão e adoção de idosos: o cotejo entre os Projetos de Lei; 4. A socioafetividade no Projeto de Lei nº 105/2020: sua extensão para além da filiação? 5. Conclusão; 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Poucos ramos da ciência do direito têm sofrido tantas alterações na contemporaneidade como o direito das famílias. Não só pela existência de novos institutos, absolutamente mais adequados aos novos tempos, mas também pela remodelação daquilo que norteia o próprio conceito de família. Se antes fundava-se em aspectos patrimoniais e patriarcais, hoje finca suas raízes primordialmente em noções de afeto e no respeito à dignidade da pessoa humana.
Nesse cenário, o próprio conceito de filiação se transforma, refutando noções e dogmas preestabelecidos e pautados exclusivamente em aspectos biológicos, para abarcar igualmente relações pautadas no afeto. Até aqui, inexiste qualquer novidade, já que é pacífico que, além da adoção, pode vir a existir, por exemplo, a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, que atualmente se encontram bastante difundidas, seja por sua aceitação pelos Tribunais de Superposição (STF, RE 898.060/SC), seja pela sua regulamentação em atos normativos emanados pelo Conselho Nacional de Justiça[1].
A própria abertura semântica proporcionada pela parte final do art. 1.593 do Código Civil, ao estabelecer que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem”, já viabiliza a formação de parentesco através de outras modalidades. É justamente isso que dispõe o enunciado nº 103, da I Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal (I JDC/CJF), ao consignar que a filiação pode decorrer de outras formas, como, por exemplo, a proveniente de técnicas de reprodução assistida heteróloga.
Como o direito é fruto da cultura, e esta, por sua vez, é fruto da linguagem[2], novos institutos podem ser criados por obra do Poder Legislativo, visando regulamentar situações fáticas existentes no campo social. E, de fato, ele o fez em uma situação bastante peculiar.
Trata-se do Projeto de Lei nº 105 de 2020, que pretende acrescentar ao Estatuto do Idoso o instituto da senexão, “palavra formada da raiz latina “senex”, que corresponde a idoso e do sufixo “ão” que designa pertencimento, como em aldeia/aldeão, cidade/cidadão”[3], de acordo com a justificação inserida no bojo do referido projeto de lei.
Sobre esse nome, aliás, o próprio projeto aduz que “como se trata de fenômeno novo no direito, nada mais correto do que o legislador criar um novo instituto, com seu próprio nome, para designar esse ato”.[4]
Ao que parece, a senexão seria uma derivação do instituto já consagrado como “adoção de idosos”, pois acarreta a colocação da pessoa idosa em família substituta. Mostra disso é que o projeto foi, até mesmo, apensado a outros projetos que tratam especificamente sobre a adoção de idosos.
Contudo, deve-se alertar que as figuras não se confundem, já que a primeira jamais acarretaria a perda dos laços parentais originários, situação que pode – ou não – acontecer na segunda.
Além disso, questiona-se: seria a senexão um novo instituto do direito das famílias?
Para que se possa apresentar qualquer esboço de resposta a esse questionamento, o presente artigo analisará as disposições contidas no Projeto de Lei nº 105/2020 em cotejo com os projetos de lei que possuem por finalidade a regulamentação da adoção de idosos (a ele apensos), com o propósito de convidar a comunidade jurídica para o debate em torno de tão importante tema.
2. SENEXÃO: O PROJETO DE LEI Nº 105/2020
De acordo com as disposições do Projeto de Lei nº 105, de 05 de fevereiro de 2020, a senexão seria a colocação de pessoa idosa em lar substituto, sem mudança em seu estado de filiação, sendo ato irrevogável e com registro no cartório de registro de pessoas, em livro próprio. Quanto aos sujeitos envolvidos, o idoso seria o denominado de senectado, enquanto a pessoa receptora seria senectora.
Consistiria, pois, em mais uma medida protetiva específica do Estatuto do Idoso (art. 45). Consequentemente, seria cabível em casos onde se verificasse ameaça ou violação aos direitos do idoso, estando este em situação de risco social, por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso da família, curador ou entidade de atendimento, ou, por fim, em razão de sua condição pessoal (art. 43, I, II e III, EI), tendo por finalidade a tutela de direitos de idosos em situação de vulnerabilidade ou abandono, que estivessem inseridos em instituições de longa permanência (ILPI) ou desamparados, através de sua colocação em uma família substituta, visando lhes proporcionar amparo e estabilidade em suas relações socioafetivas.
No plano do direito material, o PL atribui direitos e obrigações tanto ao senectado quanto ao senector.
Através da senexão, o senectado terá o direito de ser recebido voluntariamente como membro da família do senector, na qualidade de parente socioafetivo. Além disso, também é seu direito receber todo auxílio devido a pessoa da família, viver em ambiente propício para realizar as atividades de que seja capaz e tenha desejo - a fim de manter sua realização plena como pessoa humana -, e receber amparo material e afetivo necessários, inclusive sendo estimulado à autonomia quando possível.
Por sua vez, o senector tem o direito de inscrever o senectado como dependente para fins tributários, em planos de saúde, assistência, seguros ou previdência privada e ser declarado herdeiro do senectado no caso de herança vacante, tendo preferência na ordem sucessória sobre o Estado.
Como o contraponto de ter direitos é ter obrigações, competirá ao senector a manutenção do senectado como pessoa da família, provendo todas as suas necessidades materiais e afetivas, e fornecendo um ambiente familiar de acolhimento e segurança, propício à sua idade, onde o tratará como parente. Compete ao senector, ainda, o dever de estimular o idoso em atividades compatíveis com sua capacidade, a fim de integrá-lo socialmente, além de incitar sua autonomia e desenvolvimento de aprendizagem, se assim desejar.
O senector tem, ainda, o dever de cuidar de todas as necessidades de saúde do senectado e, sobre este item, deve-se ressaltar um importante aspecto do projeto de lei. É que, havendo senexão, todas as decisões sobre tratamentos médicos e quaisquer atividades do senectado, em caso de sua impossibilidade de decidir, são de responsabilidade do senector. Nesses casos, perderá a família biológica o poder decisório sobre o caso.
Ocorre que o projeto de lei, ao pretender regulamentar questões atinentes ao tratamento de saúde, trouxe uma ampliação semântica perigosa ao prever que competirá ao senector a decisão a respeito de “quaisquer atividades do senectado, em caso de impossibilidade de decidir”.
Deveras, quando uma pessoa está impossibilitada de decidir, em virtude de alguma causa de incapacidade, é indispensável que haja a propositura da ação de curatela e, com isso, sejam resguardados os direitos dessa pessoa. Nem mesmo a família biológica poderá decidir atos generalizados daquela pessoa incapaz por si, já que isto seria um ato que atentaria frontalmente contra a própria perspectiva de maior autonomia do idoso, sendo o mesmo do que uma “interdição” sem o devido processo legal.
Deve-se levar em consideração que, principalmente após o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD), a curatela passa afetar apenas atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial (art. 85, EPD) e, diante disso, parece que a única interpretação aplicável à norma projetada é que o dispositivo engloba apenas normativas existenciais, como é o caso do tratamento de saúde. Afinal, pensar de outra forma esbarraria em nítida ilegalidade e, além disso, parece que projeto de lei não tem por pretensão conferir maiores poderes ao senector do que aqueles que a própria família biológica possuiria.
Outro ponto curioso do PL é que, no caso de falecimento do senector antes do senectado, todos os direitos e obrigações estabelecidas pela senexão passam aos herdeiros do senector. No caso de multiplicidade de herdeiros, basta que apenas um assuma a posição de senector. Tal ponto reforça a existência de laços familiares existentes entre o senector e seus familiares e o senectado.
Sobre o tema, embora a norma projetada seja expressa em mencionar que inexistirá mudança no estado de filiação do idoso, sugere que haverá uma formação de laços socioafetivos, já que o senectado tem o direito de ser recebido na qualidade de parente socioafetivo, devendo ser tratado como parente. Não por outro motivo, há previsão de que serão aplicáveis ao senector e senectado os mesmos impedimentos legais relativos ao parentesco em linha reta de primeiro grau, estendendo os demais graus às respectivas famílias.
Pois bem. É justamente nesse ponto que a senexão se diferencia da teoria que reputa possível a adoção de idosos, onde haverá, de fato, a formação de vínculos parentais entre os envolvidos.
No plano do direito processual, o Projeto exige a judicialização do procedimento, atribuindo exclusivamente ao juízo dotado de competência para tramitação e julgamento das demandas envolvendo idosos, o poder de conceder senexão, mediante acompanhamento por equipe multidisciplinar. Outros aspectos procedimentais de relevo seriam a anuência do senectado, por si ou por seu curador e, sendo casado, também do seu cônjuge, bem como a prioridade em seu processamento.
Passadas tais premissas apontadas pelo projeto de lei sob análise, estudaremos as possíveis diferenças entre a adoção de idosos e a senexão para, no último tópico, adentrar ao questionamento central deste artigo.
3. SENEXÃO E ADOÇÃO DE IDOSOS: O COTEJO ENTRE OS PROJETOS DE LEI
No aspecto da lei projetada em si, a senexão é tratada pelo Projeto de Lei nº 105/2020, ora em análise, enquanto a adoção de idosos pelos Projetos de Lei nº 956/2019, 5475/2019 e 5532/2019.
Como visto, na senexão haverá a sua inclusão em família substituta, sem a formação de vínculos de filiação, mas com a constituição de laços socioafetivos entre os envolvidos. Por sua vez, a adoção de idosos seria a inclusão de pessoa idosa em família substituta, com a formação de vínculos de filiação. Assim, esta projetaria todos os efeitos decorrentes da filiação, como, por exemplo, o nome, os aspectos sucessórios e a possibilidade de se pleitear por alimentos, ao contrário daquela.
Uma diferença entre a situação jurídica do idoso se mostra preponderante entre os institutos. A senexão seria uma nova medida protetiva específica e, com isso, aplicável apenas a idosos em situação de risco (art. 43, EI). Para a adoção de idosos, a mesma regulamentação estaria presente no PL 5532/2019, que também determina a inclusão de idoso em família substituta como uma das medidas protetivas do Estatuto do Idoso. Diferentemente, o PL 5475/2019 prevê a aplicação do instituto da adoção a pessoas inseridas em “programa de acolhimento familiar ou institucional” e, por fim, o PL 956/2019 não prevê qualquer limitação à situação jurídica do idoso.
Outra nota distintiva entre os institutos é que, ao contrário do que ocorre na senexão, a adoção exige que todos os requisitos objetivos e subjetivos – que sejam aplicáveis ao caso – estejam presentes para que ela seja viabilizada, tornando absolutamente necessário, portanto, que reais vantagens sejam proporcionadas ao adotando, que a adoção se funde em motivos legítimos (art. 43, ECRIAD), que o idoso consinta com a sua colocação em família substituta (art. 45, §2º, ECRIAD)[5]_[6].
Se, por um lado, a adoção se baseia na possibilidade de inversão dos papéis naturais entre as figuras do pai e do filho[7], onde o mais novo exercerá função parental[8] em relação ao mais velho, principalmente diante da categoria denominada de idosos órfãos (termo derivado da expressão inglesa “elderly orphans”[9]), a mesma interpretação não faz o projeto de lei que visa regulamentar a senexão.
Sob a perspectiva processual, também poderiam ser identificados pontos de aproximação e de distanciamento entre os institutos. De semelhante, ambas as figuras demandariam uma ação judicial para a sua constituição. Entretanto, o procedimento judicial estabelecido nos projetos de lei existentes é mais completo na adoção de idosos.
Enquanto o projeto que trata da senexão é bem sucinto quanto ao procedimento, apenas elucidando a obrigatoriedade de sua judicialização perante a vara com competência para processar e julgar casos envolvendo idosos, com acompanhamento multidisciplinar, os projetos da adoção de idosos são claros em apontar que se seguirá as mesmas regras da adoção de maiores de idade[10]-[11], dentre as quais aquela prescrita pelo art. 1.619 do Código Civil, que estabelece que “a adoção de maiores de 18 (dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva”, aplicando-se, ainda, no que couber, as regras gerais do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECRIAD).
As conclusões a respeito da viabilidade da adoção de idosos podem ser extraídas a partir da análise dos projetos de lei acima mencionados, bem como da própria evolução da ciência do direito, na área do direito das família, onde a constatação de que “ser pai ou ser mãe está tanto no fato de gerar quanto na circunstância de amar e servir”[12] é assente nos principais Cursos de Direito das Famílias contemporâneos, ao apontarem que é o afeto e a dignidade da pessoa humana os pontos constitutivos e norteadores das famílias.
Embora o projeto de lei que pretende regulamentar a senexão não tenha chegado à mesma conclusão acima exposta, denota-se que ele trouxe uma nova tônica a este tema tão árido, que é o questionamento a respeito da possibilidade de inclusão de pessoa idosa como “membro atípico da família”.
É sobre as possíveis interpretações do projeto sobre senexão que este ensaio tentará se debruçar no próximo e derradeiro tópico.
4. A SOCIOAFETIVIDADE NO PROJETO DE LEI Nº 105/2020: SUA EXTENSÃO PARA ALÉM DA FILIAÇÃO?
De modo geral, pode-se afirmar que, desde que respaldados em premissas lógicas e nos institutos adequados, não existiria problema na criação de novos institutos jurídicos por parte do legislador. Mas, ao contrário, seria um risco utilizar institutos já consagrados pela ciência do direito, de modo a transformar o seu conceito, função e sentido.
É o que pode vir a ser cogitado através da observação do termo “socioafetividade” no Projeto de Lei nº 105/2020. Em três passagens, a norma projetada utiliza tal termo para se referir que haverá a formação de parentesco socioafetivo por parte do senector e senectado. Vejamos:
Art. 55 A. Para a colocação de idoso em família substituta, a fim de proporcionar-lhe amparo e estabilidade de relações sócio afetivas com a família receptora, admite-se a senexão.
Art. 55 C. A senexão não estabelece vínculos de filiação entre senector e senectado, nem afeta direitos sucessórios, mas estabelece vínculos de parentesco sócio afetivo, que implicam a obrigação do senector em manter, sustentar e amparar de todas as formas materiais e afetivas as necessidades do idoso.
Art. 55 F. São direitos do senectado: I - ser recebido voluntariamente como membro da família do senector, na qualidade de parente sócio afetivo, recebendo todo amparo devido a pessoa da família;
Duas interpretações podem ser realizadas através da leitura dessa norma projetada: a) de que houve, de fato, uma confusão no conceito da socioafetividade, que pressupõe a formação de vínculos filiais de igual dignidade ao biológico; b) de que a intenção foi ampliar o conceito atualmente utilizado para se referir à socioafetividade, para possibilitar a formação de laços de parente socioafetivo não vinculados à filiação.
Analisemos cada uma delas.
No que concerne à primeira interpretação, inexiste dúvida de que a socioafetividade é uma das modalidades de constituição de vínculos parentais no Brasil. Atos normativos emanados pelo CNJ, bem como farta jurisprudência e grande parte da doutrina são uníssonos em realizar tal ponderação. O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu, em caso paradigmático, que
A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais, (ii) pela descendência biológica ou (iii) pela afetividade. 12. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio). 13. A paternidade responsável, enunciada expressamente no art. 226, § 7º, da Constituição, na perspectiva da dignidade humana e da busca pela felicidade, impõe o acolhimento, no espectro legal, tanto dos vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto daqueles originados da ascendência biológica, sem que seja necessário decidir entre um ou outro vínculo quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos.[13]
Desse modo, por se tratar de assunto tão difundido na seara do direito das famílias, a análise do seu sentido se vinculará, invariavelmente, ao contexto da constituição de laços de filiação, transformando os envolvidos em pais e filhos, com os mesmos reflexos patrimoniais e pessoais projetados pela parentalidade biológica. Em suma: ambas possuiriam a mesma dignidade e tutela do Estado. É, aliás, o que aponta Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, quando escrevem que
fixada a filiação pelo critério socioafetivo, todos os efeitos decorrem automaticamente, sejam existenciais ou patrimoniais. Por isso, o filho socioafetivo terá direito à herança e aos alimentos (efeitos patrimoniais) e, igualmente, estabelecerá o vínculo de parentesco e estará sob o poder familiar do pai afetivo (efeitos pessoais), entre outros.[14]
Entretanto, mesmo diante de tais fatores, o projeto de lei que visa regulamentar a senexão é explícito em afirmar que haverá relação socioafetiva, mas não filiação, o que pode parecer uma contradição em seus próprios termos.
Com efeito, esta primeira interpretação pode acarretar a confusão com o instituto da socioafetividade.
Mas, de fato, existe outro pensamento, que pode ser mais convincente.
É que, através da leitura do PL 105/2020, pode-se questionar se a vontade do legislador era realizar uma verdadeira inovação, no sentido de ampliar o conceito do termo “parente socioafetivo”, para viabilizar a constituição de laços socioafetivos distintos daqueles pautados na filiação, constituindo uma relação de parentesco socioafetiva “não filial”.
Por essa interpretação, haveria a formação de um parentesco em sentido amplo (lato sensu), ingressando a pessoa idosa naquele núcleo familiar como um parente atípico, inominado.
Em artigo específico sobre a adoção de idosos, a autora deste ensaio ponderou tal alternativa, já que, possivelmente, é aquela que mais se amolda à tutela dos direitos do idoso no momento de sua inclusão em família substituta. Na oportunidade, houve menção a que
talvez não fosse nenhum exagero sustentar-se a viabilidade jurídica de inclusão do idoso em uma titulação atípica de membro da família. Tal sugestão poderia garantir todos os efeitos previstos em lei para a relação de parentesco, mas sem a imposição de nomenclatura específica a uma situação que, talvez, não fosse conveniente ao caso, tampouco aparecesse como algo pejorativo e violador da dignidade do idoso.[15]
Assim sendo, de acordo com essa segunda interpretação, seria possível ocorrer a inclusão de idoso em um núcleo familiar que lhe confira dignidade e pertencimento, sem qualquer alusão à nominações que podem vir a mais prejudica-lo do que beneficiá-lo no contexto social.
Afinal, pedindo-se licença pelo truísmo, o direito à convivência familiar e comunitária tem que ser observado, sob os seus dois aspectos: familiar e comunitário (art. 3º, EI).
E, fatalmente, a atribuição do nomen iuris de filho a uma pessoa idosa poderia lhe acarretar prejuízos maiores à sua esfera pessoal, justamente indo de encontro ao atual avanço científico do tema, onde se pugna por uma maior autonomia de todo esse segmento social, criando meios para otimizar oportunidades (como reflexo do envelhecimento ativo e saudável).
Não pode-se esquecer que (ainda) vivemos em uma sociedade permeada por preconceitos e estereótipos, e tal proceder poderia inviabilizar o pleno exercício ao direito à convivência comunitária deste idoso, infantilizando-o, sob a justificativa de se privilegiar a convivência familiar.
Adicionalmente, deve-se ponderar que o Brasil assinou a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos dos Idosos[16], se comprometendo a adotar medidas para prevenir, punir e erradicar as práticas contrárias à Convenção, tais como a infantilização (art. 4º, “a”),
Indispensável, portanto, que meios sejam criados para que haja a tutela do duplo viés do direito à convivência familiar e comunitária do idoso.
Por isso, pode-se concluir que o PL nº 105/2020 tem por louvável finalidade a pretensão de ampliar o espectro conceitual da socioafetividade, para abarcar a constituição de laços familiares distintos daquele pautados apenas na filiação, podendo vir a ser, de fato, um novo e importante instituto do direito das famílias.
5. CONCLUSÃO
Ao longo de todo o texto tentou-se demonstrar que a senexão seria uma nova medida protetiva específica do Estatuto do Idoso, que teria por finalidade a inclusão de idoso em família substituta, sem a formação de laços de filiação.
Ponderou-se que, embora o PL nº 105/2020 tenha sido anexado aos demais projetos de lei que visam regulamentar a adoção de idosos, haveria distinções entre os institutos. Enquanto a adoção teria por finalidade a formação de laços parentais entre idoso e adotante (que pode ser mais novo), o mesmo não ocorreria com a senexão. Além disso, embora ambas demandem um procedimento judicial, a adoção de idosos parece ter uma trâmite mais bem delimitado e prolongado.
Ao final, questionou-se a respeito das interpretações viáveis a partir do termo “socioafetividade”, contido no projeto de lei que cunhou a senexão. Uma, no sentido de desconexão com o atual avanço do direito das famílias, onde a socioafetividade está invariavelmente atrelada ao contexto de filiação. Outra, no sentido de que o projeto pode ter tido o louvável papel de ampliar o espectro conceitual da socioafetividade, viabilizando a formação de laços familiares atípicos/inominados e não filiais.
REFERÊNCIAS
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano: II. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 305.
CALMON, Patricia Novais. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade? Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37 (jan./fev.) - Belo Horizonte: IBDFAM, 2020.
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 7. Salvador: Juspodivm, 2017.
MOUSSALÉM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001.
VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/ index.php/revista/article/view/1156>. Acesso em: 3 mar. 2020.
[1] É o caso do Provimento 63/2017 e do Provimento 83/2019, do Conselho Nacional de Justiça.
[2] MOUSSALÉM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 41.
[3] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i dProposicao=2236550. Acesso em 31 mar. 2020.
[4] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?i dProposicao=2236550. Acesso em 31 mar. 2020.
[5] PL 5532: Art. 45, §3º Ao idoso que esteja no domínio de suas faculdades mentais será assegurado o seu consentimento, colhido em audiência, para colocação em família substituta.
[6] PL 5.475/2019: Art. 42-C, §1º Sempre que possível, o idoso será previamente ouvido por equipe interprofissional, respeitado seu de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada
[7] Com a superação do dogma de que “adoptio naturam imitatur” (a adoção imita a natureza), advinda do período pós-clássico do direito romano. Entretanto, a história revela que em período romano pretérito, denominado de clássico, o jurisconsulto Gaio já discutia a possibilidade de o mais novo adotar o mais velho. ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano: II. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 305.
[8] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/ index.php/revista/article/view/1156>. Acesso em: 3 mar. 2020.
[9] São aquelas pessoas que não possuem cônjuge ou filhos dos quais possam vir a depender ou ter como rede de apoio Categoria esta que, segundo pesquisa recentemente elaborada nos Estados Unidos, será constituída por 22% dos atuais adultos americanos da atualidade, o que não deve ser muito diferente de uma tendência mundial. Para mais informações: <https://edition.cnn.com/2015/05/18/health/elder-orphans/index.html>. Acesso em: 06 abr. 2020.
[10] PL 956/2019: Art. 119 Fica o poder público obrigado a estimular a adoção de idosos através de campanhas públicas que esclareçam a importância da convivência familiar para o bem-estar do idoso.
§ único A adoção do idosos obedecerá a regras referentes a adoção de maiores de 18 anos, aplicando-se no que couber, as regras gerais previstas no Estatuto da Criança do Adolescente.
[11] PL 5.532/2019: Art. 45, § 5º A adoção de idosos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente.
[12] VILLELA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Disponível em: <https://www.direito.ufmg.br/revista/ index.php/revista/article/view/1156>. Acesso em: 3 mar. 2020.
[13] STF - AgR RE: 898060 SC - SANTA CATARINA, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 15/03/2016, Data de Publicação: DJe-051 18/03/2016.
[14] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: famílias. V. 7. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 615.
[15] CALMON, Patricia Novais. A colocação de idosos em família substituta por meio da adoção: uma possibilidade? Revista IBDFAM: Famílias e Sucessões. v.37 (jan./fev.) - Belo Horizonte: IBDFAM, 2020, p. 75.
[16] Se encontra em processo de internalização em nosso ordenamento jurídico através do Projeto de Decreto Legislativo (PDC) nº 863/2017.
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