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Mais de trinta e três por cento dos brasileiros consideram a mulher culpada pelo estupro
Na última semana, o Datafolha divulgou pesquisa que mostra que mais de 33% da população brasileira considera a mulher culpada pelo estupro. A pesquisa, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública - FBSP, mostra que 42% dos homens e 32% das mulheres concordam com a afirmação: “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”, enquanto 63% das mulheres e 51% dos homens discordam. E que 91% dos entrevistados concordaram com a afirmação de que “Temos que ensinar meninos a não estuprar”. Para a pesquisa, foram ouvidas 3.625 pessoas a partir de 16 anos, em 217 municípios, entre os dias 1º e 5 de agosto. A margem de erro é dois pontos percentuais para mais ou para menos.
Segundo a jurista Adélia Moreira Pessoa, presidente da Comissão Nacional de Gênero e Violência Doméstica do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), o estupro é causado pela ação violenta do agressor, e jamais por culpa da vítima. “A pesquisa, entretanto, mostra uma percepção social equivocada de relativização da culpa. A violência sexual contra a mulher não pode ser vista como um ato isolado – mas como fenômeno histórico-social que emerge de uma complexa combinação de fatores e o enfrentamento a essa violência muitas vezes é naturalizada e até banalizada. Necessita de um trabalho de desconstrução permanente, de tirar o véu que esconde a realidade, expondo, dando visibilidade a este grave problema que permeia a sociedade”, afirma
Para a jurista Maria Berenice Dias, vice-presidente nacional do IBDFAM, chama a atenção que esse percentual de 33% da população considerar a mulher culpada pelo estupro não seja apenas a opinião de homens, mas também de mulheres. “Mostra como vivemos em uma sociedade absolutamente machista e conservadora. Os homens acham que são os proprietários dos corpos das mulheres. Isto é muito perverso. Estamos entrando em uma era medieval, de um obscurantismo assustador”, disse.
Adélia explica que alguns entendem esta violência como expressão da ideologia de dominação da mulher pelo homem, resultando na anulação da autonomia da mulher, e que uma segunda corrente compreende a questão como reflexo do patriarcalismo. “É indispensável refletir sobre os estereótipos de gênero que impregnam a cultura, em vários espaços sociais a começar pela educação desde os primeiros momentos da vida de uma criança até a fase adulta, consagrando uma visão binária, dicotômica e oposta de gênero, apresentando o masculino como racional, objetivo, forte, agressivo, que toma a iniciativa e o feminino como um ser dotado de sedução, de emocionalidade”. A jurista chama atenção para a publicidade, em que, “em pleno século XXI, podemos constatar ainda os estereótipos de gênero, a representação hegemônica do masculino, a naturalização e banalização da violência; a mulher no locus de sedução sem o papel ativo; homem dominador X mulher passiva, como em anúncios das marcas de roupas nacionais e estrangeiras, etc, traduzindo a ideia de que o corpo feminino serve ao prazer e à construção da sexualidade masculina', sendo a violência associada consciente ou inconscientemente ao ser homem. Assim, a publicidade muitas vezes presta um desserviço pois não só naturaliza a violência, mas a torna glamourosa”, afirma.
A Convenção de Belém do Pará (1994), ela explica, em seu artigo 1º, define violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada e, em seu artigo 3º estabelece que toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera privada. “O ser feminino ou o ser masculino é construído desde os primeiros momentos de vida, ou mesmo antes do nascimento, pois muitos desejam um filho homem, pois acreditam que só o filho homem traz completude a uma família – questão cultural, mas questão também de violência. Desde a mais tenra idade, os brinquedos das meninas são voltados para a maternagem, para a vida doméstica, enquanto para os meninos os artefatos culturais levam às ações lógicas, liberdade e agressividade. Assim, os processos de formação das masculinidades e feminilidades resulta de um dado contexto cultural, sendo a educação produtora e reprodutora de estereótipos”, garante.
E destaca que os estereótipos povoam o imaginário social, tendo como consequência a naturalização das condutas de homens e mulheres, que passam a considerar natural o que resultou de uma cultura plasmada pacientemente pelo tempo. “Assim, reproduzimos estes estereótipos, esses mitos (como ser homem é ser forte, trabalhador, responsável e provedor; ser mulher significa ser amável, fiel, sincera, compreensível, companheira e saber cuidar de si e do outro; é da natureza dos meninos brincarem de carrinho, de 'luta' e de futebol, enquanto meninas gostam de brincar de boneca e de casinha) e reforçamos a cultura de discriminação e violência contra a mulher. Sem dúvida, a compreensão dos mitos é etapa importante do trabalho de compreensão e de intervenção (Diniz & Angelim, 2003). É preciso ter em conta que negligências e omissões, muitas vezes, são justificadas com base nesses mitos”, defende.
Por outro lado, ela diz, estudos indicam que não está muito claro o que significa violência contra a mulher, que tipos de comportamentos, acontecimentos cada pessoa nomeia como violência e como a ideia de limite aparece em contextos marcados pela violência. “Assim, nesta seara de violência sexual, detectam-se condutas (re)conhecidas, naturalizadas, banalizadas. E muitas vezes, como fruto da estrutura machista da sociedade, há a culpabilização da mulher (ou a auto-culpabilização), com a legitimação da violência atribuída ao comportamento provocativo e sedutor da mulher - com frases do tipo ‘mereceu’ o abuso - em um campo minado de distorções, silêncios e preconceitos”.
Para o enfrentamento da violência, Moreira garante, é urgente superar a dificuldade das mulheres, em situação de violência para denunciar e manter a denúncia; a falta de apoio efetivo para as mulheres em situações de violência, no âmbito privado e público, inclusive nos serviços de saúde; a incompreensão e a resistência dos agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a falta de programa de atendimento ao homem autor da agressão, que retorna a esta prática, ocorrendo elevados índices de reincidência específica.
Adélia destaca também que é preciso adotar: medidas de prevenção à violência contra a mulher, compreendendo múltiplas ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas. “Além disso, são necessárias políticas públicas mais consistentes em assistência social e saúde, segurança pública, visando à proteção da vítima. Capacitar e sensibilizar todos agentes públicos que intervêm nesta seara, na Segurança Pública, na Saúde e Assistência Social, inclusive do Judiciário e do Ministério Público, para acolhimento e encaminhamentos necessários e para o desenvolvimento de habilidades que não constam da aprendizagem/formação profissional (acolher, acreditar, proteger, apoiar).
Para exemplificar, a promotora aposentada afirma que é preciso saber, em relação ao necessário atendimento nos serviços de saúde, que deve ser imediato, que serviços hospitais e serviços de saúde prestam de rotina atendimento de emergência a mulheres que sofrem violência sexual, como onde são atendidas? Se há pessoal capacitado e medicamento para fornecimento, se as mulheres agredidas sexualmente recebem anticoncepção de emergência, remédio para prevenção de Sífilis etc, se há profilaxia contra Hepatite B e contra HIV, se realizam exames laboratoriais de conteúdo vaginal, se fazem coleta de material para identificação dos agressores e os médicos descrevem, no prontuário, as lesões sofridas e se recebem informação sobre o direito de interromperem a gestação, no caso de engravidarem em decorrência de estupro.
Para Adélia, além da prevenção por meio de ações educativas em todos níveis de ensino, nas redes digitais, na mídia, após o fato, as intervenções do Estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor, enfatizando-se as possibilidades de acesso da vítima à rede de serviços de Assistência, Saúde, Segurança e Justiça. A jurista não acredita que o aumento das penas para crimes de estupro diminuiria os números de estupros. “As penas do estupro são altas. Não é o aumento de pena que mitigará o problema. O mais importante é a certeza da punição que hoje está muito fragilizada. É necessário o empoderamento da mulher para que ela denuncie e não se deixe vencer pelo medo, desesperança e vergonha. É necessário que as provas sejam colhidas imediatamente, no próprio serviço de saúde, pois muitos vestígios da violência sexual desaparecerão se não for aproveitado o momento do primeiro atendimento, logo após a violência, como apontado acima. E não havendo qualquer prova da materialidade do crime, fica mais difícil a condenação”, garantiu.
A pesquisa completa pode ser acessada aqui.
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