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Do instituto da guarda e sua distância ao melhor interesse dos filhos
Do instituto da guarda e sua distância ao melhor interesse dos filhos
Fabiano Rabaneda dos Santos1
Está constatado que a causa mais controversa nas disputas em ações de família está relacionada com a guarda dos filhos, sobretudo quando os valores do patriarcado ainda se encontram enraizados na sociedade brasileira e por conta disto, a suposta inviabilidade da guarda compartilhada faria prevalecer o exercício de um poder inexistente por um dos pais, tratando a criança como um objeto de posse em detrimento ao seu valor como ser humano.
Por muito tempo e por causa do reflexo da época primitiva, quando os homens tinham que prover os alimentos, a mulher se tornou responsável pelos afazeres domésticos, entre eles os cuidados com os filhos: apoderou-se o homem da direção do patrimônio por força do direito hereditário advindo da filiação masculina e para a mulher restou a subserviência ao marido e dos cuidados com a prole.
Tal característica, com o passar do tempo, atribuiu para a mulher toda a responsabilidade pelo sucesso da criação dos filhos, sobretudo recaindo para si a tarefa de transmissão de valores sociais, culturais e religiosos.
Se analisarmos o conteúdo histórico da guarda e sua repercussão social, em nosso primeiro Código Civil (Lei nº 3.071/1916) houve orientação acerca da entrega da guarda dos filhos pelo instituto da culpa no divórcio, cabendo para a mulher em caso de reciprocidade de culpa – e no caso em processo litigioso – o direito de guarda aos filhos menores. Depois das alterações promovidas pela Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977), a mãe conservava em sua companhia as meninas, e os meninos até a idade de seis anos, quando eram – assim – entregues ao pai para a continuidade da criação.
Foi daí que surgiu o brocado popular que filho é homem quem cria: e numa absoluta situação de desproteção, irmãos eram afastados das irmãs pelo único fato de sustentarem sexos diferentes.
É de constatarmos que no regime do patriarcado, a guarda sempre teve relação direta com a posse da criança, alicerçada sob o fundamento da proteção, da vigilância e segurança, cabendo àquele que a exerce um dever de favor aos filhos, um ônus decorrente da relação de parentesco.
A guarda patriarcal – como quero nominar o modelo vigente até a Lei nº 10.406/2002 – se travava de um direito consistente primordialmente na posse do filho como um direito oponível qualquer um, inclusive ao genitor desprovido da guarda, que acarretava para o detentor privilégios sob os augúrios da vigilância em relação à prole.
No complexo rol de direitos e deveres atribuídos para a guarda patriarcal, se de um lado é fundamentada no prisma da proteção e provimento das necessidades dos filhos, do outro estabelecia punição pelo abandono: eis que o genitor guardião era responsável pelos atos do filho e a sociedade não queria a proliferação das crianças abandonadas à própria sorte.
Restou estabelecido que se os filhos menores não ficassem na guarda de um dos genitores, a estes teriam direito de visita, sem, contudo, lhe ampliar qualquer responsabilidade/dever: ao guardião restava o poder supremo sobre os filhos e tudo o que ocorresse era de sua culpa.
Desta maneira, o genitor desprovido da guarda patriarcal passou a ser um mero visitante do seu filho e qualquer insucesso na criação era de culpa do guardião que não soube exercer com precisão a tarefa que lhe era entregue: se desnutrido fosse a criança, a genitora guardiã era a péssima mãe; se obeso, culpa da mãe. Na educação escolar, competia à mãe o acompanhamento pedagógico, já que a responsabilidade do pai sempre restou resguardada ao financeiro: se ele pagava a pensão em dia estava – assim – livre de qualquer ônus social.
Sobreveio o Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/2002), que atento as modificações sociais das famílias contemporâneas, retirou a culpa como fator de estabelecimento da guarda dos filhos – ainda nominado incorretamente de menores – e disciplinou a guarda dos filhos a quem melhor tiver condições de seu exercício, observando-se os princípios do melhor interesse da criança e do adolescente, sem, contudo, desconectar a guarda do fenômeno posse, perpetuando a objetificação da criança como coisa.
É por tais razões que o genitor desprovido da guarda tem sentimento menor do dever de cuidar dos seus filhos – numa absurda hipótese de redução ou menor efetividade do poder familiar –, sobretudo quando ele acredita que por o outro ostentar para si a guarda unilateral, seus deveres de cuidados permanecem suspensos/minimizados enquanto perdurar tal condição – conscientemente nunca menos que eternamente.
Logo, por uma questão absolutamente cultural – no que denominamos de mitos da guarda –, acredita-se erroneamente que o genitor sem guarda não pode opinar nas questões relativas aos filhos, lhe cabendo apenas visitar o filho sob determinada decisão judicial e pagar a pensão alimentícia como estabelecido: se a genitora tem a guarda unilateral, ela pode até mesmo se mudar com a criança para outro município sem autorização do pai: quem não tem guarda não pode opinar sobre o domicílio da criança?
De fato, é que ambos os genitores têm o dever legal de educar e cuidar de seus filhos e tal disposição não tem relação nenhuma com a questão da modalidade de guarda, se tratando unicamente do exercício da autoridade parental em sua plenitude.
Se tomarmos como premissa que a guarda é um instituto que foi criado no direito francês porque com a separação do casal – e digo aqui sobre separação em sentido amplo – a um dos genitores se atribuía a guarda e o outro genitor perdia as responsabilidades perante o filho (poder familiar), como forma de compensar este fato, primeiro no direito francês e logo depois no direito italiano, se criou a figura da guarda compartilhada para manter o poder familiar com ambos.
Nesta linha de pensamento, o professor Waldyr Grisard Filho ao tratar da guarda compartilhada como um novo modelo de responsabilidade parental distingue de forma muita clara a atribuição de guarda no Brasil – que não altera em nada o poder familiar de qualquer genitor –, com a atribuição da custódia do exercício da autoridade parental a um dos genitores, como o adotado pelo modelo francês em que guarda e poder familiar compreendem a um mesmo fenômeno. E do mesmo modo, o direito anglo-americano admite o fenômeno do solo legal custody, como o exercício unilateral do poder familiar e guarda por parte de um genitor.
Como forma de libertar a mulher das correntes do patriarcado e – com isto – garantir a aplicação efetiva da Doutrina da Proteção Integral, aqui no Brasil a guarda compartilhada foi incorporada ao ordenamento jurídico pela Lei nº 13.058/2014 e alterando os artigos 1.583, 1.584, 1.585 e 1.634 do Código Civil, estabeleceu o significado da expressão “guarda compartilhada” e dispôs sobre sua aplicação.
Objetivamente, restou por esclarecido que na guarda compartilhada, o tempo de convívio com os filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos e mesmo que desprovido de guarda, compete a quem não a detenha a supervisionar os interesses destes.
Vê-se pela primeira vez a condição explicita que a guarda unilateral materna não implicará em qualquer modificação do poder familiar paterno, não sendo cabível a perpetuação do nefasto mito da guarda patriarcal, ostentando o genitor desprovido de guarda dos mesmos deveres/direitos que o outro, não revelando o instituto qualquer tipo de limitação ao exercício da responsabilidade parental.
Com a reforma introduzida pela Lei da Guarda Compartilhada, restou por evidente que o poder familiar é oriundo da relação de parentesco pelo desdobramento da família natural, representada pelos genitores, sejam eles biológicos ou socioafetivos. A guarda, constituída ela unilateral, alternada ou compartilhada, é fundamentada como exercício decorrente do próprio poder familiar, inclusive por determinação do inciso II do artigo 1.634 do Código Civil.
Diante de tais conceitos, é possível que determinado genitor não ostente por algum motivo legal a guarda do seu filho, mesmo assim será responsável igualmente com quem a tenha pela criação e educação.
O mito da guarda é derrubado quando é assegurado ao genitor desprovido de guarda os mesmos deveres de conceder ou negar consentimento aos filhos para mudarem sua residência permanente para outro Município, já que tal determinação decorre não do capítulo destinado à proteção da pessoa dos filhos, mas do próprio exercício do próprio poder familiar decorrente da relação de parentesco.
Diante da efetividade do pode familiar e da correção ao equívoco social do mito da guarda, é possível no ordenamento jurídico vigente que um genitor desprovido do poder familiar e – neste caso sem ostentar guarda alguma – possa conviver com seus filhos diariamente, quando neste caso cabe bem a nomenclatura de direito de visita – do contato físico sem a responsabilidade do poder familiar.
Aqui, me permita a diferenciação entre visita e convivência, é que na visita não é atribuída qualquer responsabilidade de educar e criar ao ente visitante, sendo o genitor desprovido do poder familiar comparado com uma terceira pessoa, alguém da família extensa, numa análise mais crítica.
Como fator de fagocitar as mais diversas situações jurídicas, por – justamente – não possuir qualquer membro da família extensa qualquer elemento do poder familiar, a Lei nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) trouxe no artigo 33 a previsão de que “a guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais”.
É muito fácil de distinguirmos que a guarda do artigo 33 do ECA é diferente da guarda do Código Civil, já que é possível atribuir para o ente desprovido do poder familiar a responsabilidades de educar e criar à criança ou adolescente, inclusive, no direito/dever de oposição os próprios pais.
No contexto axiológico, é de concluirmos que está esvaziado o instituto da guarda, tal qual a culpa foi esvaziada no divórcio, competindo a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício da responsabilidade parental, sobretudo quando os valores de dirigir aos filhos criação e a educação são amplos o suficiente para concluirmos que o genitor sem guarda tem tantos deveres e direitos quanto ao que ostenta o atributo.
Por isso que as disputas pela guarda unilateral são ineficazes sob o ponto de vista prático do exercício de direitos e deveres: a guarda é vista muito mais como um contexto moral de propriedade/posse do filho do que do exercício do educar e criar os filhos.
Com a possibilidade de alternância de convívio, conforme se represente o melhor para os filhos, igualmente a guarda alternada se mostra completamente distante de aproveitamento: imagine que numa semana determinado genitor é responsável pela criação e educação e noutra não? Independente de qual genitor esteja convivendo com os filhos, as decisões sempre deverão ser tomadas de forma conjunta diante do exercício do poder familiar.
Para concluir, sob o ponto de vista puramente processual, se formos considerar que – numa remota hipótese de entendimento de derivação do poder familiar em guarda – se guarda unilateral retire/suspenda/diminua algum dos deveres/direitos do poder familiar, temos que levar em consideração que o juízo de família é completamente incompetente para tratar da matéria, já que compete ao juízo do Estatuto da Criança e Adolescente – e no caso da especializada – o processamento e julgamento das ações da perda de suspensão de poder familiar, ainda que parcialmente.
Ocorre que, como os usos e costumes são fortes o suficiente para engessar a hermenêutica, e diante da confusão entre os institutos, o ambiente hostil se instala nas famílias em processo de divórcio, quando ambos os genitores passam a disputar a guarda dos filhos de forma completamente desnecessária.
É um litigar absolutamente desnecessário, já que se determinado genitor lograr êxito em ostentar a guarda para si, sem a suspensão do poder familiar doutro genitor, nenhum efeito jurídico prático será observado, senão a manutenção do mito social da guarda patriarcal: tenho direito sozinho de escolher a escola, a religião, os medicamentos e tudo o que me interessar para o bem do meu filho? Não. Não tem.
Evidente que se algum genitor não ostentar aptidão ao exercício da guarda – e por lógica ao poder familiar –, tal fato implicará na suspensão não da só da guarda, mas do próprio poder familiar, por isso o rito a ser seguido é o determinado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, com ampla verificação psicossocial dos elementos ensejadores de tal situação.
Ao conhecer e diferenciar os institutos da guarda do poder familiar notamos que a escolha na atribuição da nomenclatura guarda passa a ser nociva para crianças e adolescentes, que se veem desprotegidas dentro dos litígios causados pelos adultos, em manifesta inconstitucionalidade do termo ao confrontarmos os valores que o vocábulo carrega – de posse exclusiva da prole – quando posto de frente à Doutrina da Proteção Integral constituída no ordenamento pelo artigo 227 da Constituição Federal.
Não há qualquer elemento que desprestigie um genitor que exerça plenamente o poder familiar daquele que não tenha a guarda dos filhos: tanto um quanto o outro se responsabilizam pela criança e educação de sua prole.
Da mesma forma não há nada que diferencie um genitor que tenha guarda compartilhada da guarda unilateral ou alternada: o que se verifica é que ambos podem e devem conviver com seus filhos, independente do tipo de guarda que cada um ostente.
O tema, por mais polêmico que possa parecer, tem por objetivo transcendermos aos litígios causadores de tantas infelicidades, das práticas que tenham por alvo transformar crianças e adolescentes em meros objetos de posse dos seus genitores, o criado-mudo de uma compulsiva campanha de afastamento generalizado e de vingança por meio dos filhos.
[1] Advogado, capacitado em "alienação parental" pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e associado ao Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
Referências.
BRASIL. Lei nº 3.071, de 1 de janeiro de 1916. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil.
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
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BRASIL. Decreto nº 17.943-A, de 12 de outubro de 1927. Consolida as leis de assistencia e protecção a menores.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. In: MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas, Volume 3. São Paulo: Alfa-Omega.
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Simão, J. F. (2016). Guarda Exercida Pelos Pais: Um Instituto Vazio, Inútil e Perigoso. Paraná: Revista Jurídica da Escola Superior de Advocacia da OAB-PR.
STJ. Recurso Especial: REsp 1428596 RS 2013/0376172-9, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 03/06/2014, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/06/2014.
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