Artigos
O REFLEXO JURÍDICO DO ABANDONO AFETIVO: o revés do poder familiar para além do papel
Adriana Tedgue Ribeiro [1]
Marcos Nunes Sampaio Junior [2]
RESUMO
No âmbito jurídico, hodiernamente, é palpável e quantificável o número de processos que envolve questões advindas do abandono sócioafetivo do menor, além do abandono material, os quais são de suma importância, pois tutelam direitos vitais ao desenvolvimento adequado do menor que vão desde a questão afetiva, perpassando pela psicológica, chegando até a material a qual visa fornecer o suporte básico para a manutenção da vida. Decerto que a afetividade deveria ser empática e recíproca nas relações familiares, sucede, porém que esse vínculo não é eterno e, muitas vezes, nem chega a de fato se estabelecer. A C.F./88, art. 227, vem assegurar que a criança e o adolescente sejam sujeitos de direitos, enumerando as garantias fundamentais de proteção integral, impedindo a negligência. Este estudo se fundamenta por explicitar as implicações em âmbito jurídico que são oriundas do abandono sócioafetivo e material do menor. O presente artigo se trata de uma revisão bibliográfica, onde foram utilizados artigos dos últimos 10 anos contidos nas plataformas CAPES, SciELO, LILACS, CONPEDI e RT online.
Palavras-chave: Abandono, afetividade, dano, direito, indenização.
ABSTRACT
In the legal sphere, nowadays, it is palpable and quantifiable the number of processes that involve questions arising from the socio-affective abandonment of the minor, in addition to material abandonment, which are of paramount importance, as they protect vital rights to the adequate development of the minor, ranging from affective issue, passing through the psychological, reaching the material which aims to provide the basic support for the maintenance of life. Certainly, affection should be empathic and reciprocal in family relationships, it happens, however, that this bond is not eternal and, many times, it is not even established. The C.F./88, art. 227, ensures that children and adolescents are subjects of rights, enumerating the fundamental guarantees of integral protection, preventing negligence. This study is based on explaining the legal implications arising from the child's socio-affective and material abandonment. This article is a bibliographic review, where articles from the last 10 years contained in the CAPES, SciELO, LILACS, CONPEDI and RT online platforms were used.
Keywords: Abandonment, affectivity, damage, right, indemnity.
INTRODUÇÃO
O estudo a seguir versa sobre um tema bastante destacado na sociedade moderna. O abandono sócioafetivo advindo das diversas relações familiares tem sido, frequentemente, abordado no sistema jurídico. A ausência latente afetiva dos genitores ao menor tem gerado sequelas irreversíveis que transcende já há várias gerações. Muito além de danos materiais, acresce-se a isso por exemplo, os danos e cunho psicológico, os quais nenhum tipo de indenização repara, pois são em maioria permanentes e que geram desdobramentos fragilizando a saúde da criança ou adolescente.
Seguramente, a família é uma entidade de forte influência tanto para o indivíduo que a compõe, quanto para a sociedade. Nela se constitui o primeiro berço afetivo do ser humano, agregando diretamente em seu desenvolvimento e formação. É inegável a existência das diversas relações sociais contemporâneas e, muitas vezes, ao se dissolver uma relação para ingressar em outra, o menor (fruto da primeira relação) é negligenciado por um dos seus genitores. Outros, já são abandonados desde o nascimento e ficam sem ser assistidos, em alguns casos, se houver sorte, serão criados por outras pessoas como filho, construindo uma nova relação afetiva.
Reitera-se que o vínculo afetivo materno e paterno não são obrigatórios, não podem ser condicionados ou impostos, são facultados, todavia não os isenta de sua responsabilidade civil diante o menor que foi gerado e que deve ser assistido com esmero, principalmente no que tange as esferas moral e material para que venham a ter um desenvolvimento adequado. Há de se sublinhar que o dever de cuidado, inclui a obrigação de sustento, guarda e educação dos filhos. Sucede, porém, que a ausência desse cuidado e afeto incidem, respectivamente, sobre o dever de indenizar em função de danos materiais e morais àquele menor.
É mister lembrar que os pais sócioafetivo fornecem a essas crianças o que seus genitores lhes deixaram faltar, algo de suma importância, que não é tangível, palpável e valorado no mundo material, o afeto. Sendo este, o dínamo propulsor da unidade familiar. Observando este cenário, o estudo tem por norte elencar as implicações jurídicas cabíveis oriundas do abandono sócioafetivo e material do menor, além de aclarar a forma de indenização cabível que este pode vir a pleitear judicialmente, como forma paliativa, pois jamais poderá quantificar essa ausência afetiva monetariamente.
Realce-se, ademais, que essa sanção pecuniária aplicada é uma forma paliativa de se remediar um problema que vem impregnado na sociedade brasileira desde seu período colonial, um legado patriarcal que perpassa pela violência dentro das relações domésticas. Onde filhos concebidos fora do casamento eram ignorados e desprezados pelo genitor, além de ocultados para a sociedade, herança cultural que ainda é notadamente presenciada. É indubitável que além de vulnerabilizados, estas crianças/jovens se tornam vítimas da sociedade que em sua primeira oportunidade vira-lhes apresentar a exclusão social.
Essa pesquisa permitirá um novo olhar para as questões de abandono sócioafetivo e material, além de um entendimento da valoração desse tema como forma de conscientizar os cidadãos sobre a importância de criar vínculos afetivos com seus filhos, sejam estes possuidores de laços sanguíneos ou não. Uma vida que foi gerada por vontade de seus genitores, não pode ser negligenciada e penalizada, trata-se de um ser humano que merece respeito, empatia, afeto, sobretudo, de cuidados.
METODOLOGIA
Compreende-se que esta pesquisa é uma revisão bibliográfico do tipo reflexiva e qualitativa. Para tanto, a coleta de dados é oriunda dos artigos das plataformas CAPES, SciELO, LILACS, CONPEDI e RT online, além de livros e revistas acadêmicas disponibilizadas online de forma gratuita, publicados nos últimos dez anos, possuindo como palavras chaves "abandono", "afetividade", "dano", "direito” e "indenização".
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O afeto é substrato propulsor e somatório do atual conceito de família, ou seja, além de exigir dos pais o dever de criar e educar seus filhos, não lhes podem omitir o carinho que, também, é de suma importância para seu desenvolvimento físico-psíquico-social. Conceitua-se como paternidade responsável aquele que além de prover alimentos e materiais básicos para o desenvolvimento adequado saudável, também oferta afetividade, vínculo estabelecido com a convivência. A ausência afetiva repercute em sofrimento, além de deixar traumas de ordem psicológica que podem ser permanentes ou transitórios. Tais relações afetivas, transcendem os laços sanguíneos. (DIAS, 2016).
A efemeridade da vida por si só já deve ser combustível suficiente para solidificar os laços afetivos, todavia no decurso do cotidiano de milhares de famílias no Brasil a linha tênue que baliza os elementos limítrofes entre a responsabilidade legal quanto aos filhos e o dissabor gerado quando esta se faz ausente é constantemente transcendida vulnerabilizando social, física e, sobretudo, psiquicamente o menor, convertendo a harmonia familiar em uma conjuntura tormentosa e incurial. Há de sublinhar que o estabelecimento do vínculo afetivo na primeira infância faz com que o menor se desenvolva adequadamente na sua integralidade como ser humano, além de estimulá-lo a interagir e se comunicar socialmente, ou seja, o afeto familiar está intrinsicamente ligado com a promoção e manutenção da saúde dessa criança.
Nesse ínterim, a parentalidade sócioafetivo decorre de um vínculo de parentesco civil, mesmo que estas não possuam vínculo de cunho biológico, mas convivem como parentes decorrente dessa forte afetividade existente. No Brasil, visa-se o melhor interesse da criança, considerando o critério sócioafetivo, salvaguardando, sobretudo os direitos fundamentais e o da convivência familiar. O núcleo familiar unido através de relações de afeto, os quais buscam a realização da dignidade da pessoa humana, é tutelado pelo Estado. (CASSETARI, 2017).
Volvendo a visão doutrinária há uma grande dicotomia a respeito se a parentalidade sócioafetiva é um direito ou dever dos pais, assim majoritariamente entende que se trata de uma via de mão dupla, onde os filhos possuem o direito de ter a parentalidade sócioafetiva reconhecida, como também os pais. O laço de afetividade é imprescindível para a existência da parentalidade sócioafetiva, por isso se deve realizar uma rígida instrução processual para que se venha a comprovar esse laço antes de qualquer decisão. Outro fator que deve ser observado é o tempo de convivência, pois é sabido que através dele se criam as relações de carinho e afeto entre os humanos, claro que isso é controverso, haja vista que há situações que o vínculo já se forma durante a fase gestacional. (CASSETARI, 2017).
De antemão, é importante frisar que muito embora a semântica das palavras “abandono” e “afetivo” remeta a quem as ouve uma direta associação com a ideia de sensações, amor e outros sentimentos da criança, o verdadeiro sentido que torna tais palavras quando juntas relevantes ao ordenamento jurídico é o respeito ao dever de cuidado, bem como de prestação assistencial de ordens diversas por parte dos pais para com seus filhos, uma vez que, hodiernamente sob o manto das legislações e doutrinas que versam sobre tal cenário o desamparo e desproteção a um filho se configura como ato ilícito indenizável, ou seja, passível de uma responsabilização civil aplicada àquele que desta forma agir. Assim, desmistificando a exclusiva noção de esmero pelo bem-querer emocional da criança, visto que por mais estranho ou até absurdo ressoe à sociedade contemporânea, à nenhuma pessoa é conferida a obrigação de amar outrem.
No âmbito jurídico, o abandono afetivo urge frente à tutela jurisdicional do Estado como alternativa de preenchimento das lacunas não satisfeitas por um ou ambos genitores da criança de maneira voluntária e natural associadas principalmente a construção da identidade humana, lacunas estas pertencentes a um rol tão extenso de possibilidades que variavelmente transitam do campo abstrato sentimental à temáticas essencialmente materiais que englobam, por exemplo, o suporte financeiro, educacional e, sobretudo, alimentício. Dessa forma, abandono afetivo se concretiza a partir do momento em que se faz possível a observância de “omissão de cuidado, de criação, de educação, de companhia e de assistência moral, psíquica e social que o pai e a mãe devem ao filho quando criança ou adolescente". (COSTA, 2017).
A grande questão objeto de inúmeras divergências tanto doutrinárias quanto jurisprudenciais guardam estreita relação com a quantificação dos danos morais oriundos do ingresso em juízo de uma ação por abandono afetivo, uma vez que, no plano fático é humanamente impossível mensurar a exposição de alguém a tal sofrimento. Nesse sentido, nos últimos anos, a jurisprudência tem entendido que a quantificação do valor mencionado anteriormente deve ser capaz de compensar os danos sofridos sem que haja o enriquecimento sem causa e tampouco o empobrecimento do genitor. (SKOPEL, 2018).
É importante denotar ainda que o dever de indenizar no caso dos danos morais advindos do abandono afetivo surge quando são identificadas violações aos “princípios da proteção da dignidade da pessoa humana, dos direitos da personalidade e da solidariedade nas relações pessoais. Porém, é necessária cautela, não podendo se transformar a reparação em um meio para a obtenção de vantagens”. (SKOPEL, 2018).
Nessa linha de intelecção, o abandono afetivo pode, sim, gerar uma obrigação de natureza indenizatória, essa reparabilidade do dano se encontra com base no art. 952 do CC/2002, no parágrafo único, já que atinge o sentimento estimado diante um dado bem. Os danos de caráter emocional gerado no menor são merecedores de reparação. Consoante ao pedido indenizatório por abandono, pode-se cumular, também, o pedido de ação investigatória de paternidade. O filho, por exemplo, pode ter deixado de ter acesso ou a uma melhor educação decorrente da perda dessa chance advém seu caráter reparatório por meio da indenização. (DIAS, 2016).
Analogamente ao art. 952 do CC/2002, configura-se importante salientar também o que destaca o art. 186 do Código Civil de 2002 que manifesta a seguinte determinação legal “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”, isto é, atualmente a justiça brasileira tem cada vez mais adotado a interpretação e aplicação literal deste artigo quando se trata dos casos de abandono afetivo, haja vista principalmente as implicações de ordem moral e psicológica ocasionadas à criança , sobretudo tanto no que concerne ao âmbito do dano referente à construção essencial da identidade do menor quanto nas comprovadas possibilidades de desvios nos traços de caráter do mesmo.
Com efeito, temos a questão da posse de um filho onde se vivencia uma relação íntima e afetuosa, onde terceiros são criados como filhos, cria-se uma relação paterno-filial forte. O art. 1.605, II, do Código Civil/2002, seguramente, explícita sobre casos como este de parentalidade sócioafetiva. O desejo maternal e/ou paternal de ter um filho e do filho de ter pais, torna concreto e viável essa filiação. (CASSETARI, 2017).
Suplanta-se, assim, também os casos de adoção, conhecidos como “filhos de criação”, onde não há vínculo biológico, mas são criados nos laços do cuidado e do amor, onde o fio que os une chama-se: afeto. Mesmo que a adoção não tenha sido concretizada em meios jurídicos, a adoção de fato gera as mesmas consequências da jurídica, esse é o entendimento recentes dos tribunais. Um verdadeiro ato de amor filial é a adoção, doar amor àqueles que precisam é um ato de caridade, respeito, uma atitude digna de aplausos.
No que concerne ao quesito do abandono material é importante registrar que o mesmo suscita consequências penais baseadas na transgressão ao caput do art. 244 do Código Penal brasileiro presente no Capítulo III dedicado aos crimes contra a assistência familiar que logo em seu introito denota que terá cometido tal infração aquele que “ deixar, sem justa causa, de prover a subsistência do cônjuge, ou de filho menor de 18 (dezoito) anos ou inapto para o trabalho, ou de ascendente inválido ou maior de 60 (sessenta) anos, não lhes proporcionando os recursos necessários [...]”.
Para além disso, o abandono material no que tange a esfera civil pode ser objeto passível de geração de um dano moral suscetível de compensação monetária, dessa forma recentemente no ano de dois mil e dezessete a quarta turma do Superior Tribunal de Justiça condenou um pai a pagar determinada indenização ao filho por não ter concedido o amparo material necessário à subsistência do mesmo deixando de custear necessidades básicas como moradia, alimentação , assistência médica , vestuário e dessa forma fazendo com que o filho passasse por uma situação de carência e privação enquanto na realidade o genitor possuía plenas condições de o prover financeiramente naquele momento.
Tal sentença proferida julgou parcialmente procedentes os pedidos iniciais relacionados ao abandono material em quesitos como "(a) a comprar uma casa em nome do autor, com escritura onerada com cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade; (b) a comprar mobiliário para a referida casa, contendo o necessário a suprir necessidades básicas do menor inclusive relativamente ao lazer [...]. (fls. 229-230 - Recurso Especial nº 1.087.561 - RS).
Isto posto, nota-se a emergente preocupação do ordenamento jurídico em garantir o acesso do menor abandonado material e afetivamente aos seus direitos legais de subsistência garantidos juridicamente e devidos por força normativa por parte dos pais, a partir do instante em que este contrai naturalmente as responsabilidades de provimento da criança ao gerá-la. Nesse contexto, Sousa (2018, p. 98) menciona que “cuidar da prole é uma obrigação constitucional [...] e a jurisprudência vem entendendo ser devida a indenização por danos morais por tratar-se de ato ilícito (abandono afetivo) capaz de gerar prejuízo moral ou material e toda ilicitude que cause danos (material ou moral) deve ser indenizado”.
No plano jurídico, a temática de violação de dispositivos legais decorrentes da matéria alusiva ao abandono afetivo-material de menores recalcitra, ainda, outra importante diretriz manifesta na Constituição Cidadã, trata-se do art. 227 presente no Capítulo VII cuja nomenclatura é denominada como “Da Família, da Criança, do Adolescente, do Jovem e do Idoso”, este que por seu turno delibera que:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (CF,1998).
O supracitado artigo, induz a inelutável conclusão que a extração da ideia protetiva do estado quanto à subsistência infantil como bem jurídico a ser tutelado, bem como a relevância e consequente repercussão que este dever legal reverbera em todo o corpo da sociedade civil brasileira, uma vez que, está detém como espinha dorsal e arcabouço instrutivo, direcional e limitante comportamental a vigente carta magna de 1988. Outrossim, é plenamente notável a evidente necessidade punitiva de responsabilidade tanto civil quanto penalmente do genitor(a) que gozar de condutas contrárias ao que dispõe o trecho constitucional proeminente acima, a exemplo da ausência de um aporte educacional, alimentício ou financeiro a ser destinado ao seu descendente e agora reivindicado em juízo pelo mesmo.
Nesse diapasão, ao realizar a análise de alguns outros dispositivos legais, sobretudo, no Código Civil de 2002, nota-se esparsas ao longo do texto artigos que versam acerca de deveres e competências inerentes aos pais para com os filhos, dentre eles encontra-se o art. 1.566 que dispõe em sua redação que “são deveres de ambos os cônjuges: IV - sustento, guarda e educação dos filhos”, bem como o art. 1.634 que explicita que “compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação; II - tê-los em sua companhia e guarda” , ou seja , reiterando o que vem sendo dito nos parágrafos anteriores acerca da obrigação legal dos pais salvaguardar pela manutenção do provimento dos elementos imprescindíveis ao adequado desenvolvimento físico, intelectual e comportamental do menor.
No entanto, vislumbra-se que é fundamental à sociedade civil se desvencilhar dos resquícios do patriarcalismo ainda vigentes no seio popular quanto ao dever materno de cuidado integral dedicado aos filhos para facilitar na compreensão das atribuições obrigacionais direcionadas juridicamente tanto para a mãe quanto para o pai do menor, isto porque hoje existem direitos e deveres reservados para ambos nas mesmas proporções e com as devidas responsabilidades. Dessa forma, obedecendo esta premissa ilustra perfeitamente em seu art.22 o Estatuto da Criança e do Adolescente ao instruir o cidadão que:
“Art. 22. Aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores, cabendo-lhes ainda, no interesse destes, a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações judiciais. Parágrafo único. A mãe e o pai, ou os responsáveis, têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na educação da criança, devendo ser resguardado o direito de transmissão familiar de suas crenças e culturas, assegurados os direitos da criança estabelecidos nesta Lei.” (Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016).
Progredindo quanto ao tema proposto, exsurge como outro tópico de extrema relevância a ser discutido consecutivamente o abandono intelectual, haja vista o fato de a instrução ser considerada um direito humano e por tal direito estar expressamente positivado no art. XXVI da célebre Declaração Universal dos Direitos Humanos com a seguinte redação:
“Artigo XXVI 1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta baseada no mérito.” ( Art. XXVI, DUDH).
Em solo canarinho, o vigente Código Penal em seu art. 246 tipifica o abandono intelectual como crime manifestando tanto que ação do indivíduo pode ocasionar enquadramento neste dispositivo jurídico quanto a sanção penal aplicada ao mesmo nesta conjuntura. Há aqui, sem dúvida alguma, uma aptidão à punição legal de abandono intelectual aquele cidadão que “deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar: Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa”.
Para além disso, a ressalva realizada pelo legislador quando destaca a expressão “sem justa causa” deve ser observada com atenção , uma vez que, os casos em que os pais deixarem de prover com justa causa a instrução primária do filho correspondem, por exemplo, às situações que envolvem a situação econômica debilitada da família, tornando-se impossível o custeio do deslocamento da criança até a escola ou até mesmo quando for registrado momentos de calamidade pública ou ocorrência de circunstâncias emergenciais. Nesses possíveis e compreensíveis cenários, entende-se que é retirada dos pais quaisquer responsabilidades no sentido de serem punidos pelo crime de abandono intelectual.
Decerto que a doutrina majoritária compreende que a instrução primária para fins de caracterização de crime é a partir dos quatro anos de idade, onde se tem início a obrigatoriedade do ensino é fundamental conforme estabelece a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9394/96) em seu art. 6º que determina que “é dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade.”(Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013).
Elucida-se, ainda, que conforme a redação da lei mencionada anteriormente, o legislador tem o cuidado de explicitar a expressão “ instrução primária de filhos” , portanto somente o pai ou a mãe da criança em questão podem ser responsabilizados pelo crime de abandono intelectual, outros responsáveis por mais próximos consanguineamente que sejam não estarão aptos a cometer esta violação legal, destarte se trata de crime próprio no qual caberá sanção para aquele que deixa de matricular ou aquele que retira a criança da escola durante este lapso temporal estabelecido juridicamente.
CONCLUSÃO
Nessa linha de intelecção, reitera-se que a família brasileira outrora baseada no poder patriarcal, figura está de suma importância que era obedecida e consagrada, pois sobre representava o topo da hierarquia. Com as ascensões das mulheres, lastreada em suas conquistas sócio-políticas ao longo dos últimos anos, configura-se uma quebra do predominante machismo. Doravante, exsurge a nova Constituição Federal de 1988, a qual resinifica o conceito de família e a lastreia no Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, além da igualdade entre os gêneros masculino e feminino, eclode novas formatações e características das famílias brasileiras, trazendo o afeto como substrato basilar desta unidade. Diante dessa evolução o menor passa a ser tutelado não somente pelo Estado, como também pela sociedade e, principalmente, pelos seus genitores ou responsáveis legais, sob a pena de prejudicarem a dignidade da pessoa humana.
Diante a ofensa dessa dignidade há no que se falar em reparo, não sendo possível em tempo está reparação, caberá, então uma indenização pecuniária por dano material e/ou moral. Há de se observar que não é a ausência do afeto em si que decorre em dano, trata-se da negativa em amparar, fornecer assistência psíquica e moral, propiciando prejuízo e sequelas no desenvolvimento e formação daquele menor ou, ainda, é a dissolução do vínculo de afetividade, deixando-o de assistir por completo abruptamente. Com efeito, podemos incluir o abandono sócioafetivo como uma tenra ofensa a dignidade da pessoa humana, trata-se de um ato extremamente voluntário por parte dos genitores e/ou responsáveis, os quais vem a causar danos ao menor, essencialmente, os de ordem psicológica.
Cumpre, declinar que o abandono afetivo é um fato social extremamente relevante devido a sua magnitude no desenvolvimento e formação da criança/adolescente, o que gera desdobramentos em sua formação de personalidade, causando-lhes danos emocionais, muitas vezes, irreparáveis. A responsabilidade civil advém como substrato agregador com o intuito de frear que o abandono seja algo corriqueiro, com o objetivo de punição para aqueles que incorrem no erro do péssimo exercício do poder familiar.
Existe uma problemática dentro do âmbito jurídico que é a de mensurar monetariamente o quanto custa essa ausência afetiva, todavia, em maioria, os doutrinadores alegam não poder fazer essa quantificação, mas apenas falam na ausência da assistência material, psíquica e moral, visam essa condenação como forma de diminuir o número de casos decorrentes de abandono sócioafetivo, servindo estes de exemplo à sociedade. O Superior Tribunal de Justiça é favorável pela condenação por dano moral em virtude do abandono sócioafetivo, em literaturas mais novas podemos tratar de incluir também o dano existencial, pois compromete intrinsicamente a convivência deste indivíduo na sociedade devida a perda de qualidade de vida e a alta dificuldade em realizar atividades corriqueiras cotidianas. Em tempo, registra-se, alguns Projetos Leis como o 700/2007 que propõe tornar o abandono como ilícito civil e penal.
Em seguimento, é sabido que não se pode mensurar monetariamente o abandono e o afeto que foi deixado de ofertar ao menor, entretanto, ressalvo que o abandono não possui somente esses dois fatores como centrais, vai muito além, ao abandonar deixa-se de prestar contribuição para a subsistência alimentar do menor o qual é imprescindível ao seu desenvolvimento e crescimento saudável. Em termos materiais a criança ao longo de uma vida digna precisa se vestir adequadamente a sua idade, estudar e ter acesso a saúde, estes advêm de custos de ordem econômica e devem ser fornecidos por seus genitores ou responsáveis.
O acesso à saúde está garantido na C.F./88, sim, temos esse acesso nas esferas municipais, estaduais e federais, contudo nem sempre há vaga para atendimento, demandam filas longínquas e, em alguns casos, é preferível e mais rápido o acesso particular ao serviço do que esperar pelo público, assim sendo cabe aos responsáveis pelo menor arcar com estes custos, que se estendem a uma unidade hospitalar e podem ser englobados até fora dela como os custos advindos de medicações, prevenção e manutenção da saúde, e até a reabilitação do indivíduo em sua integralidade.
Nada obstante se falar do campo moral, adentra-se em uma de ordem psicológica, imaterial, como já citada, que pode ter danos irreversíveis e que demandam custos com tratamentos e medicações, por longínquos meses, quiçá anos. Logo, explicita-se que em maioria geram-se custos, criar, educar e manter a saúde de uma criança é altamente custoso no Brasil e estes responsáveis sejam eles genitores ou aqueles que por amor os acolheram tem o dever, a obrigação de custear, não podendo serem omissos aos cuidados básicos do menor.
Expressa-se aqui, em tempo, a indignação advinda por alguns magistrados que insistem em não indenizar o menor e, porque não, o genitor ou responsável que ficou cuidando deste durante um terço da sua vida. Houve custos de ordem material e sequelas na esfera cognitiva em todas as etapas da vida, não, não caberia limitar a reparação a apenas os últimos anos, cabe reparar uma infância e juventude inteiras prejudicadas por um abandono irresponsável, danoso e custoso. Cabe ensinar a sociedade a se prevenir contra filhos indesejados, a fim de evitar o abandono, além de trazer à tona a moralidade e o caráter tão ausentes nos indivíduos hoje. O amor não tem preço e nem pode ser imposto, todavia um menor não pode ser delegado a segundo plano ou abandonado por negligencia e irresponsabilidade dos seus genitores ou responsáveis. Sustenta-se, assim, que para estes transgressores a punição deve advir, mesmo que como uma forma de reparação, sobretudo, como uma forma de lição.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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[1] Aluna Especial do Mestrado em Enfermagem e Saúde na UFBA. Bacharela em Direito pela UCSAL. Enfermeira Intensivista Neonatal e Pediátrica. Especialista em Enfermagem do Trabalho.
[2] Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Salvador – UCSAL.
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