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A violação do direito fundamental à educação da criança e do adolescente em tempos de covid-19
Mariane Bosa
Advogada. Pós-Graduada em Direito de Família e Sucessões pelo CESUSC.
Membro da Comissão de Direito de Família e Sucessões OAB/SC.
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família
e-mail: contato@marianebosa.com.br
Durante todo esse período de pandemia diversas medidas de isolamento foram adotadas para controlar o contágio do coronavírus, dentre elas a restrição de várias atividades profissionais, mantendo-se por muito tempo apenas os serviços essenciais. Aos poucos todas as atividades foram retomadas, inclusive bares, casas noturnas, jogos de futebol, shows, com exceção das aulas presenciais na rede de ensino pública e privada, que permaneceram suspensas a obrigatoriedade de forma presencial. No que é preciso avaliar se tal violação atende ao melhor interesse da criança e do adolescente.
A Constituição Federal ao colocar em seu artigo 6º a educação como um direito social, estabelece que é um direito de todos. Por sua vez, o artigo 208, inciso I da Carta Magna dispõe acerca do dever do Estado de efetivar educação escolar, garantindo a educação básica obrigatória e gratuita dos quatro aos dezessete anos de idade. No mesmo sentido é o artigo 4º, inciso I da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de n. 9.394/1996 (LDB). Ainda, de acordo com o artigo 2º da lei supra “a educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) em seu artigo 53,“a criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho.” Ainda, é dever do Estado assegurar educação à criança e do adolescente (art. 54 do ECA), bem como é obrigação dos pais ou responsáveis matricular os seus filhos ou pupilos na rede regular de ensino (art. 54 do ECA).
Ademais, compete aos pais o dever de educação dos filhos, em exercício do poder familiar, disposto no artigo 22 do Estatuto da Criança e do Adolescente, no artigo 229 da Constituição Federal e, no artigo 1.634, inciso I do Código Civil. Todavia, mesmo sendo um dever do Estado garantir a educação básica obrigatória e gratuita à criança e ao adolescente, ela tem sido negligenciada com a suspensão da obrigatoriedade das aulas presenciais em razão da pandemia. Não obstante, muitos pais continuam a manter os seus filhos em casa por não se sentirem seguros em enviá-los à escola por risco de contágio.
Nesse contexto, vale destacar que a Doutrina da Proteção Integral, implantada pela Constituição Federal (art. 227[1]), pelo Estatuto da Criança e Adolescente (arts. 3º e 4º[2]) e pela Convenção sobre os Direitos da Criança, incorporou a criança e o adolescente na sociedade como sujeitos de direitos, ao determinarem que é dever da família, da sociedade e do Estado lhes assegurar, em prioridade absoluta, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Tânia da Silva Pereira[3] ao discorrer sobre a prioridade absoluta da Criança e do Adolescente afirma que:
Com a compreensão de que crianças e adolescentes são sujeitos de direito e não apenas detentores dos direitos dos pais ou responsáveis, é que se desenvolveu princípios jurídicos de proteção para esses sujeitos ainda em desenvolvimento físico e psíquico. Em razão desta condição especial são detentores de direitos especiais, pois enquanto pessoas em desenvolvimento devem ser especialmente protegidas. E a proteção como prioridade absoluta, não é mais uma obrigação exclusiva da família e do Estado: é um dever social.
A Doutrina da Proteção Integral e a norma constitucional da prioridade absoluta asseguram que os direitos fundamentais da criança e do adolescente devem ser especialmente protegidos e efetivados. Não se olvide que tanto a saúde, a educação, o lazer, a convivência familiar e comunitária são direitos fundamentais da criança e do adolescente, devendo ser resguardados em absoluta prioridade, sob o prisma do melhor interesse desses indivíduos em desenvolvimento. Vale ressaltar que, direitos fundamentais têm aplicação imediata, nos termos do artigo 5º, §1º, da Constituição Federal, eis que são garantias que visam preservar a dignidade da pessoa humana.
Ademais, não se trata só de educação quando falamos da obrigatoriedade da criança e do adolescente em frequentar a escola, mas também da efetivação de seu direito fundamental à convivência comunitária, visto que a criança necessita do relacionamento social para aprender a viver em sociedade, bem como à liberdade, à dignidade, ao respeito, à profissionalização, à cultura e à saúde. Nesse sentido, Josiane Petry Veronese leciona que: “Quando se fala em saúde, evidentemente que não está restrita à saúde física, mas a saúde no seu sentido integral: física, psíquica, emocional”. [4] Ainda, ao expor sobre direito à vida e à saúde frente à pandemia que nos assola, a conceituada doutrinadora[5] aduz que:
A criança, neste contexto de isolamento, face à impossibilidade de acesso à escola, ao brincar em espaços públicos, de encontrar-se com os amigos, estes elementos distanciadores têm provocado alterações ou mesmo comprometido o seu desenvolvimento sadio, sobretudo nas camadas sociais já marcadas pela vulnerabilidade, pela miséria.
Para muitas crianças e adolescentes a escola é a garantia de sua subsistência e de sua segurança, eis que além de alimentação eles também recebem cuidado e vigília. Como bem pontua Conrado Paulino da Rosa[6],“não podemos nos esquecer que a escola serve como um importante instrumento de controle de violações que, invariavelmente, podem ocorrer na própria família”. De modo que não há regulamentação Federal para o ensino domiciliar (homescholling) no Brasil, conforme Tema de Repercussão Geral n. 822, no julgamento do Recurso Extraordinário n. 888.815, pelo Supremo Tribunal Federal que firmou tese de que “não existe direito público subjetivo do aluno ou de sua família ao ensino domiciliar, inexistente na legislação brasileira.”
Um reflexo da suspensão das aulas presenciais foi o aumento de mortes de criança e adolescente provocadas por violência durante o período pandêmico em nosso país, em diferentes classes sociais. Não obstante, com a retomada das atividades econômicas sem as escolas, as crianças e adolescentes permanecem negligenciadas e em situação de risco, em casa de terceiros ou ainda em creches clandestinas, enquanto seus pais trabalham para obter o seu sustento.
Após vinte meses de pandemia provocada pelo Covid-19, o Brasil já vacinou 94,5% da população brasileira adulta com a primeira dose, sendo que 67,9% das pessoas já completaram o esquema vacinal, conforme dados do site do Ministério da Saúde[7]. Nesta última porcentagem, incluem-se os professores das redes de ensino pública e privada, os quais tiveram prioridade na imunização. Na atual situação de pandêmica todas as atividades econômicas, comerciais, sociais, culturais e de lazer foram retomadas. De modo que é dever do Estado a retomada imediata da prestação do serviço da educação obrigatória de forma presencial, sendo este um direito fundamental de todos, não pode continuar sendo negligenciado.
Importante ressaltar que o entendimento acerca da relativização da obrigatoriedade da matrícula em tempo de COVID-19, exposto em artigo publicado por esta autora no site do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM, não desobriga o Estado no seu dever de fornecer a educação, mas sim os pais de terem que manter os filhos matriculados e submetê-los a aulas on-line “enquanto perdurar a suspensão das aulas presenciais, como medida preventiva de contaminação pelo covid-19”[8], em especial para crianças de tenra idade, em que a educação por vídeo aulas não se demonstra eficaz e o risco de danos físico e psicológicos ante o uso excessivo de telas, conforme alerta da Sociedade Brasileira de Pediatria[9]. Contudo, com a retomada da prestação educacional de forma presencial, é dever dos pais a obrigatoriedade de matricular os filhos e de efetivar os direitos fundamentais de educação e convivência comunitária da criança e do adolescente.
Assim, diante do cenário de que estão em funcionamento bares, restaurantes, eventos, shows, boates e estádios de futebol, e com do avanço da imunização da população, não mais se justifica a suspensão da obrigatoriedade das aulas presenciais. Da mesma forma, que não há mais motivos para que crianças e adolescente permaneçam de máscaras por horas nas escolas, enquanto em festas, restaurantes e shows o seu uso é dispensado, sobretudo pelo baixo risco de infecção grave e de contaminação em crianças e adolescente por Covid-19[10].
Pensar de modo diverso é ignorar a Doutrina da Proteção Integral, que estabelece o dever de todos garantir, em absoluta prioridade, à criança e ao adolescente a efetivação dos seus direitos. Nas palavras de Wilson Donizeti Liberati: “por absoluta prioridade, devemos entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes.”[11] A Doutrina da Proteção Integral, portanto, confere uma condição especial à criança e ao adolescente com relação à preservação dos seus direitos fundamentais, protegendo-os acima de qualquer outro critério.[12]
A proteção integral conferida com prioridade absoluta à criança e ao adolescente é baseada no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), que deve prevalecer em relação aos mesmos direitos dos adultos quando contrapostos[13]. Vale lembrar ainda que o princípio do melhor interesse da criança visa garantir que em todas as situações que envolvam crianças e adolescentes decida-se de acordo com o melhor interesse deles. Diante da condição de sujeito de direitos, conferida à criança e ao adolescente, rompeu-se com a antiga visão de que os comandos dos adultos prevaleciam sobre as crianças.[14]
De modo que se todas as atividades aos adultos estão em funcionamento, inclusive as de lazer, a educação obrigatória da criança e do adolescente mais ainda há de ser efetivada. Nos ensinamentos de Josiane Rose Petry Veronese: “Podemos situar a educação como um dos mais importantes direitos prescritos no art. 227 da Constituição Federal de 1988, pois confere os elementos imprescindíveis para o reconhecer-se como sujeito, sujeito de direitos. A educação é a grande base transformadora da sociedade, sem ela nada acontece.”[15]
Outrossim, insta citar parte da ementa do recurso especial n. 888815[16] que firmou o tema de repercussão geral n. 822 do Supremo Tribunal Federal:
1. A educação é um direito fundamental relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria cidadania, pois exerce dupla função: de um lado, qualifica a comunidade como um todo, tornando-a esclarecida, politizada, desenvolvida (CIDADANIA); de outro, dignifica o indivíduo, verdadeiro titular desse direito subjetivo fundamental (DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA). No caso da educação básica obrigatória (CF, art. 208, I), os titulares desse direito indisponível à educação são as crianças e adolescentes em idade escolar.
2. É dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, a educação. A Constituição Federal consagrou o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes com a dupla finalidade de defesa integral dos direitos das crianças e dos adolescentes e sua formação em cidadania, para que o Brasil possa vencer o grande desafio de uma educação melhor para as novas gerações, imprescindível para os países que se querem ver desenvolvidos.
Dessa forma, manter suspensa a prestação da educação de forma presencial e a ausência de sua obrigatoriedade em todo o país, viola o direito fundamental à educação da criança e do adolescente. Assim, mesmo em tempos de COVID-19, considerando que as determinações de isolamento foram flexibilizadas em todos os setores do país, o Estado, a família e a sociedade não podem mais se eximir do seu dever de efetivação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente, em especial o da educação, em atendimento ao princípio do melhor interesse. Isso porque “uma sociedade em que o melhor interesse da criança é prioridade, é um lugar melhor para todos.”[17]
[1] BRASIL, Constituição Federal de 1988. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Brasília, DF: Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 30 nov. 21.
[2] BRASIL, Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 3º. A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade. Art. 4º. É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Brasília, DF. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em: 30 nov. 21.
[3] PEREIRA, Tânia da Silva. O melhor interesse da criança: um debate disciplinar. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 14.
[4] VERONESE, Josiane Rose Petry. Pandemia, Criança e Adolescente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020, p. 75.
[5] Ibidem, p. 74-75.
[6] ROSA, Conrado Paulino da. Curso de Direito de Família contemporâneo. 5. ed. Salvador: Editora JusPODIVM, 2020, p. 460.
[7] BRASIL, Ministério da Sáude. Brasil chega a 100 milhoes de pessoas completamente vacinadas contra a Covid-19. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2021-1/outubro/brasil-chega-a-100-milhoes-de-pessoas-completamente-vacinadas-contra-a-covid-19. Data de acesso: 30 nov. 21.
[8] BOSA, Mariane. A relativização da obrigatoriedade da matrícula da criança e do adolescente em tempos de COVID-19. 2020. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1423/A+relativiza%C3%A7%C3%A3o+da+obrigatoriedade+da+matr%C3%ADcula+da+crian%C3%A7a+e+do+adolescente+em+tempos+de+COVID-19. Acesso em: 30 nov. 21.
[9] Sociedade Brasileira de Pediatria. Manual de orientação: saúde de crianças e adolescentes na era digital. Rio de Janeiro: SBP. Disponível em: https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/_22246c-ManOrient_-__MenosTelas__MaisSaude.pdf. Acesso em: 30 nov. 21.
[10] https://butantan.gov.br/noticias/estudo-britanico-confirma-risco-baixo-de-infeccao-grave-e-morte-por-covid-19-em-criancas
[11] LIBERATI, Wilson Donizeti. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 16
[12] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente: novo curso – novos temas / Josiane Rose Petry Veronese (autora e organizadora). 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 3.
[13] NUCCI, Guilherme de Souza. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 6.
[14] VERONESE, Josiane Rose Petry. Das sombras à luz: o reconhecimento da criança e do adolescente como sujeitos de direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 109.
[15] Ibidem, p. 203.
[16] STF - RE: 888815 RS, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 12/09/2018, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJe-055 21-03-2019.
[17] https://prioridadeabsoluta.org.br/entenda-a-prioridade/
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