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A prisão civil do devedor de alimentos e a pandemia da covid-19: o litígio estrutural como forma de concretização de direitos fundamentais
Gustavo D’Alessandro[1]
A exacerbação da crise sanitária decorrente da disseminação do novo coronavírus, com incontáveis danos à população do País, deveria ensejar uma atuação rápida e conjunta dos Poderes da República em prol de políticas públicas aptas a amenizar os efeitos da pandemia da covid-19.
Especificamente em relação ao Judiciário, no contexto do estado de emergência em que vivemos, percebe-se a necessidade de uma maior abertura hermenêutica da jurisdição a possibilitar uma melhor conformação e compreensão da realidade econômica e social experimentada, sendo os processos estruturais uma alternativa jurídica para lidar com tais ocorrências, notadamente quando se trata de garantir e efetivar os direitos fundamentais que o texto constitucional estabelece.
Tal perspectiva iniciou-se no julgamento do famoso caso Brown v. Board Education, em 1954, em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu a inconstitucionalidade da prática de segregação racial existente no sistema escolar estadunidense – à época, com escolas voltadas exclusivamente para negros e outras para brancos –, por violação da Décima Quarta Emenda.
Buscou-se judicialmente a transformação do pensamento cultural escravagista em favor de um sistema educacional sem discriminação, valendo-se para tanto de um processo de reconstrução gerenciado por magistrados, dando início ao que hoje chamamos de processo estrutural (structural injunction). Diante da dificuldade na sua implementação, sobretudo em virtude da oposição de muitos Estados, decidiu-se por sua efetivação de forma progressiva e incremental, com acompanhamento do Judiciário local[2].
A percepção é de que o modelo clássico de resolução de disputas muitas vezes se mostra insuficiente e trivial ante a magnitude de certas questões, em especial quando se constatam violações de valores humanos e constitucionais e uma evidente omissão dos Poderes Executivo e Legislativo na formalização de políticas públicas, fazendo-se necessária a intervenção judicial para a reconstrução de toda essa estrutura[3], incentivando-se o envolvimento de soluções interinstitucionais e estratégicas[4].
Realmente, há pretensões de tamanha complexidade, envolvendo valores tão caros à sociedade e clamando respostas tão diferenciadas, inclusive com a reestruturação do atual estado de coisas, que se tem autorizado a superação do modelo processual clássico – adstrito à escolha binária entre acolher e rejeitar o pedido –, admitindo-se uma jurisdição mais expansiva, sob pena de cometimento de injustiça, com a flexibilização e a adequação da decisão do magistrado necessária ao caso em concreto, valendo-se de uma visão mais completa e dialogada do problema, inclusive com provimentos gradativos e incrementais, com perspectiva para o futuro, inclusive alcançando a esfera jurídica de terceiros: as decisões estruturais.
O litígio estrutural, portanto, envolve conflitos de natureza complexa, multifatorial, multipolar e policêntrica, insuscetíveis de solução adequada pelo processo civil clássico e tradicional, de índole essencialmente adversarial e individual, em que se busca a concretização de direitos humanos e fundamentais vulnerados por força de um estado de desconformidade das coisas[5].
O ativismo judicial, nessas hipóteses, deve ser tido como a ultima ratio – diante da deferência aos poderes constituídos, dos custos efetivos, da dificuldade burocrática de implementação etc. –, mas é tarefa essencial e necessária, não se limitando o Judiciário à sua função interpretativa, mas também ao encargo de criar remédio efetivo contra políticas públicas ineficazes ou inexistentes. À luz do ideal de representatividade, a formatação de tal provimento deve ser feita em diálogo com a sociedade civil e os demais Poderes, perfazendo-se o ambiente democrático necessário.
O Supremo Tribunal Federal – STF, excepcionalmente, vem-se valendo do provimento estrutural, cujo grande marco foi a decisão tomada na ADPF n. 347, em que a Corte reconheceu um “estado de coisas inconstitucional” no sistema penitenciário nacional. Por motivo de violação massiva e persistente de direitos fundamentais decorrente de falhas estruturais e da falência de políticas públicas, reconheceu a necessidade de modificação estrutural por meio de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça – STJ também se valeu do litígio estrutural para dar cabo de decisão relativa ao acolhimento institucional de menor por período acima do teto previsto em lei[6].
Além disso, vários outros casos já decididos pelo STF são indicados como estruturais, como o da Raposa Serra do Sol (Ação Popular 3.388/RR), do direito de greve (MI n. 708/DF) e do rito do processo de impeachment (ADPF 378/DF)[7]; e outros são tidos como possíveis candidatos ao recebimento da técnica, tais quais os das células-tronco (ADI n. 3.510/DF), da anencefalia (ADPF n. 54/DF), da descriminalização do uso de drogas (RE n. 635.659/DF), do sistema de cotas raciais da UnB (ADPF n. 186/DF) e da união homoafetiva (ADI n. 4.277/DF e ADPF n. 132/RJ) [8].
A pandemia da covid-19 criou uma verdadeira situação de catástrofe na humanidade, com o consequente agigantamento de conflitos já existentes, trazendo a lume diversas falhas estruturais e institucionais relacionadas a direitos fundamentais tensionados e à beira do colapso, enquadrando-se as reconstruções acolhidas pelo “direito dos desastres” no escopo dos litígios estruturais (como ocorreu na ação referente ao rompimento das barragens mineradoras de Fundão e do Córrego do Feijão, localizadas respectivamente nos Municípios de Mariana e Brumadinho, no Estado de Minas Gerais)[9].
Nessa ordem de ideias, a execução de alimentos, mais precisamente a técnica executiva da prisão civil, tipifica-se como uma circunstância apropriada à outorga de medidas estruturais, considerando-se a necessidade de proteção simultânea de diversos interesses em litígio, a existência de valores normativos amparados pelo texto constitucional (vida e saúde do alimentado e liberdade e saúde do alimentante) que estejam sendo vilipendiados e tiveram realçado o seu estado de desconformidade com a pandemia da covid-19, além da necessidade de concretização de uma nova organização funcional, com a formatação de uma política pública voltada a garantir um mínimo existencial ao credor de alimentos.
Por meio da prisão civil, o Estado-Juiz busca, mediante pressão psicológica consubstanciada na ameaça de restrição da liberdade do devedor inescusável de alimentos, forma de coagi-lo ao cumprimento de sua obrigação, podendo ele ficar preso em regime fechado por até três meses (CPC, art. 528).
Apesar de se tratar de norma constitucional originária (CF, art. 5º, LVII), a referida técnica coercitiva tem sido objeto de muitos questionamentos[10], não se ajustando ao patamar civilizatório, principalmente em razão de sua desproporcionalidade[11] – inclusive já tendo sido banida de diversos países do mundo ocidental (a exemplo de Espanha, Portugal, Bélgica, Itália, Alemanha e França) –, mas também porque o próprio sistema judicial brasileiro, no âmbito criminal, vem incentivando a substituição da prisão pela adoção de métodos despenalizadores e desencarceradores (Súmulas Vinculantes n. 26 e 56 do Supremo Tribunal Federal), sempre em benefício da dignidade humana.
Somado a isso, como já dito, o STF reconheceu, de um lado, a existência de um “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário e, de outro lado, a prática judicial brasileira a demonstrar que o devedor de alimentos vem permanecendo encarcerado em presídio de segurança máxima ou média – inerente ao cumprimento da prisão-pena decorrente de crime –, com vulneração à sua dignidade e risco de morte. Ainda, devem-se ter em conta os custos elevadíssimos ao erário (valor aproximado de R$ 2 mil por mês aos cofres públicos para a manutenção de um preso, conforme dados do Tribunal de Contas da União – TCU)[12].
Em decorrência da atual situação pandêmica do novo coronavírus, o Poder Público vem sendo obrigado a mitigar os rigores do procedimento que autoriza o cárcere do devedor de alimentos, o que acabou demonstrando, por via transversa, a necessidade de se repensar a técnica da prisão civil.
Em 17 de março 2020, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ expediu a Recomendação n. 62, aconselhando aos magistrados “que considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus” (a Recomendação n. 78, de 15/9/2020, prorrogou tal normativo por mais 360 dias).
Posteriormente, o Congresso Nacional editou a Lei n. 14.010, publicada em 12/6/2020, que dispôs sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (covid-19), estabelecendo que, “até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações" (art. 15).
Nesse ínterim, no julgamento do Habeas Corpus coletivo n. 568.021/CE, em decisão liminar com extensão para todo o território nacional, o STJ converteu em domiciliar todas as prisões dos devedores de alimentos enquanto perdurasse a pandemia (o mérito do remédio processual acabou sendo considerado prejudicado devido à edição de lei posterior regulando a matéria).
Logo, constata-se que a obrigação alimentar acabou ficando esvaziada, já que a prisão domiciliar, mormente em tempos de covid-19, deixou de ser forma de constranger o devedor a pagar sua dívida. E o pior, apesar do abrandamento da técnica pelos Poderes da República, não se pensou em nenhuma política pública específica voltada a resguardar a parte vulnerável da demanda, o credor de alimentos, que se viu impedido de usar a sua ferramenta processual mais contundente para atingir os reclamos de sua sobrevivência.
Assim, à vista da maior amplitude e da flexibilidade do seu provimento, levando-se em conta a premência da situação, além da complexidade do conflito (multifatorial, multipolar e policêntrico), envolvendo direitos fundamentais em extrema debilidade, o processo estrutural mostra-se como instrumental mais pertinente ao saneamento célere, eficaz e efetivo do problema.
No que diz respeito à execução de alimentos e a prisão civil, deverá ser estabelecido um plano de ação, com a definição de etapas de cumprimento da ordem judicial, inclusive quanto aos terceiros que irão contribuir para o seu cumprimento, com participação efetiva da sociedade e de especialistas no tema, sempre almejando o aprimoramento do instituto em busca de contemplar os anseios sociais, materializando direitos fundamentais do credor, sem que, em contrapartida, haja violação dos direitos fundamentais do devedor, sempre sob gestão do órgão judicial.
Nesse cenário, buscando uma substituição do estado de desconformidade para um estado ideal de coisas – isto é, definindo o objetivo a ser alcançado –, o Estado pode determinar, de forma incremental[13], o seguinte:
1º) a determinação para que o Executivo implemente, de imediato, uma verba assistencial específica e provisória voltada aos credores alimentares e, ao mesmo tempo, efetive o esgotamento de outros meios executivos coercitivos (protesto, penhora, tornozeleira eletrônica, prisão domiciliar, entre outros), inclusive autorizando desconto excepcional de eventual verba assistencial recebida pelo devedor;
2º) não achando bens penhoráveis e havendo reiterada resistência do devedor a cumprir a obrigação, antes de se decretar a prisão, que se determine a observância do cenário pandêmico da localidade, mais precisamente do local destinado ao cumprimento da técnica executiva, e das condições pessoais do executado (saber se já foi vacinado ou infectado[14] pelo vírus SARS-CoV-2);
3º) no caso de decreto prisional, que se inicie pelo regime semiaberto (recolhimento à noite e nos fins de semana), relegando o regime fechado apenas para as situações excepcionais de constantes relutâncias ao pagamento pelo devedor;
4º) por fim, determinar a instauração de comissão para implementação de política pública específica destinada a atender tais demandas, com a retirada gradual e total da técnica da prisão civil do ordenamento jurídico, e a criação de um fundo especial de garantia – assim como ocorreu com sucesso em Portugal, onde o credor incapaz ou vulnerável, preenchidos os requisitos legais, passa a receber uma quantia mensal pelo Estado, equivalente àquela devidamente reconhecida em sentença e que lhe deveria ser paga pelo provedor inadimplente; e o Estado, em contrapartida, sub-roga-se em todos os direitos e ações dos titularizados em face do devedor, observando-se as diversas prerrogativas processuais para o recebimento da dívida[15].
Assim, especialmente no momento atual da pandemia, mostra-se primordial a adoção de uma decisão estrutural para a efetiva e adequada proteção dos credores e devedores de alimentos, superando as intercorrências de interesse e burocráticas, eliminando-se, aos poucos, a técnica executiva extrema da prisão do devedor, sem olvidar-se de métodos para suprir as necessidades alimentares do credor, reestruturando-se, por fim, a execução de alimentos, a dignidade humana dos envolvidos e a forma como as interações sociais são vertidas.
[1] Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça - STJ, Mestrando em Direito pela Universidade de Brasília - UnB. Especialista em Direito pela FESMPDFT.
[2] ARENHART, Sérgio Cruz. Decisões estruturais no direito processual civil brasileiro, Revista de Processo: São Paulo, v. 225, ano 38, 2013, pp. 6-7.
[3] FISS, Owen. Fazendo da Constituição uma verdade viva: quatro conferências sobre a structural injuction. In: Processos Estruturais. Sergio Cruz Arenhart e Marco Félix Jobim (organizadores). 3. ed., verif., atual. e ampl. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 1.007.
[4] Trata-se de modo de proceder recorrente em decisões da Convenção Interamericana de Direitos Humanos – CIDH.
[5] JOBIM, Marco Félix. Reflexões sobre a necessidade de uma teoria dos processos estruturais: bases de uma possível reconstrução. In: Processos Estruturais. Sergio Cruz Arenhart e Marco Félix Jobim (organizadores). 3. ed., verif., atual. e ampl. – Salvador: Juspodivm, 2021, p. 827.
[6] BRASIL – REsp n. 1.854.842/CE, rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 2/6/2020, DJe 4/6/2020.
[7] DIDIER JUNIOR, Fredie; ZANETI JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Elementos para uma teoria do processo estrutural aplicada ao processo civil brasileiro. Revista de Processo. Vol 303/2020, Maio/2020. DRT\2020\6787, p. 45-81.
[8] Conforme JOBIM, Marco Félix. Ob. cit., p. 831.
[9] Conforme JOBIM, Marco Félix; LINKE, Micaela Porto Filchtiner. A Pandemia da covid-19 no Brasil e os processos estruturais: uma abordagem para litígios complexos. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro. Ano 14. Volume 21. Número 3. Setembro a Dezembro de 2020, p. 410.
[10] Rafael Calmon, por exemplo, defende a inconstitucionalidade progressiva da prisão civil, exatamente porque a técnica não mais se mostra compatível com o estado de coisas existente no cenário internacional e nacional. A inconstitucionalidade progressiva da prisão civil. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1696/A+inconstitucionalidade+progressiva+da+pris%C3%A3o+civil Acesso em: 10 de maio de 2021.
[11] O STF retirou a força normativa do dispositivo constitucional em relação ao depositário infiel, reconhecendo ser ilícita a prisão civil em qualquer modalidade de depósito (RE n. 466.343/SP, julgado em conjunto com o RE n. 349.703 e com os HCs n. 87.585 e 92.566). O entendimento foi sedimentado pela Súmula Vinculante n. 25.
[12] D’ALESSANDRO, Gustavo. A inteligência artificial na execução de alimentos: o uso da tecnologia na concretização de direitos do credor e do devedor alimentar. In: Direito e Inteligência artificial: Ensaios temáticos. Debora Bonat e Fabiano Hartmann Peixoto (organizadores). ed. - Brasília: do Autor, 2021.
[13] KINGALL, Jeff A. Institutional Approaches to Judicial Restraint. Oxford Journal of Legal Studies. Nr. 28, 2008, pp. 430. A abordagem institucional do autor defende o incrementalismo como uma abordagem racional para lidar com a incerteza, preservando a contribuição do executivo e do legislativo, sendo experimental, com propositura de uma solução e o aguardo dos resultado, sem impor uma solução completa.
[14] Estudos recentes indicam que a proteção contra o coronavírus conferida pela infecção natural é de cerca de 80%, portanto similar à eficácia de algumas vacinas. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/saude/para-quem-sobrevive-covid-19-infeccao-induz-80-de-protecao-24989300?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo>. Acesso em 5 de maio de 2021.
[15] CALMON, Rafael. Pela criação de um fundo especial de garantia ao pagamento de pensão alimentícia. Disponível em:<https://www.ibdfam.org.br/artigos/1406/Pela+Cria%C3%A7%C3%A3o+de+um+fundo+especial+de++garantia+ao+pagamento+de+Pens%C3%A3o+aliment%C3%ADcia> Acesso em 10 de maio de 2021. Segundo o autor: “Grosso modo, a coisa funciona mais ou menos assim: o credor incapaz ou vulnerável que tenha a obrigação alimentar e o respectivo quantum reconhecido por acordo ou declarado por sentença judicial tenta, amigável ou judicialmente, receber o que lhe é devido perante o devedor, mas não logra êxito. Fazendo a comprovação desse fato e preenchendo uma série de requisitos impostos por lei, aciona o Fundo e passa a receber uma quantia mensal, equivalente àquela que lhe deveria ser paga pelo provedor inadimplente. Em contrapartida, o Estado, na condição de mantenedor do Fundo, se sub-roga automaticamente em todos os direitos e ações por aquele titularizados em face deste, até o limite da dívida. Na sequência, se utiliza dos mesmos procedimentos e mecanismos previstos no ordenamento para a recuperação de tributos não pagos, inclusive sob a aplicação de juros diferenciados e mais altos, com o objetivo de recobrar a dívida, sob o grande atrativo de que a pretensão não é atingida pela prescrição”
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