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Patriarcalismo e monogamia: a desproteção das famílias paralelas como consequência do modelo patriarcal de família
Patriarcalismo e monogamia: a desproteção das famílias paralelas como consequência do modelo patriarcal de família
Luisa Abreu Lara
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Pós-graduanda em Direito Civil pela PUC-MG.
Advogada.
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar a correlação do modelo patriarcal familiar com a monogamia e, por consequência, como a adoção desse modelo influencia na desproteção dos direitos das famílias paralelas no Brasil. Para tanto, analisou-se a ligação entre modelo patriarcal de família e a existência da monogamia; a relativização da monogamia enquanto princípio estruturante do Direito; e o lugar de não direito ocupado pelo tema de famílias paralelas. Ao final, observou-se que o patriarcalismo ainda é presente no ordenamento jurídico brasileiro, inclusive na estruturação das famílias, sendo a desproteção dos direitos das famílias paralelas uma consequência do modelo monogâmico e patriarcal adotado pelo ordenamento.
PALAVRAS-CHAVE: famílias paralelas. monogamia. patriarcalismo.
ABSTRACT: The present essay aims to analyze the correlation between family patriarchal model with monogamy e, therefore, how the adoption of this model is a factor for not protecting the rights of parallel families in Brazil. In order to do that, it was analyzed the connection between the patriarchal model of the family and the existence of monogamy; the relativization of monogamy as a structural principle of Law; and the non-right place occupied by the topic of parallel families. It was concluded that patriarchy is still present in Brazil’s legal order, including in the structure of the families, and the lack of rights of parallel families is a consequence of the monogamous and patriarchal model adopted by Brazil’s legal order.
KEY WORDS: parallel families. monogamy. patriarchy.
Conquanto o patriarcalismo tenha sucumbido como ideologia, no Ocidente, não significa inexistir uma série de práticas nele embasadas.
Marcos Alves Silva
1. Introdução
A frase inicial expressa de forma sintética a principal reflexão do presente texto. Ainda que tenham ocorrido diversas modificações sociais, há uma série de práticas advindas da ideologia machista e patriarcal, que impedem ampliação do pensamento e confrontamento de alguns preceitos, sob o pretexto da ética e da moralidade.
Recentemente o Supremo Tribunal Federal, no RE 1.045.273, fixou a seguinte tese: “A preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1723, §1º do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro”. [grifo nosso]
Em seu voto, o relator, Min. Alexandre de Moraes, afirma, em síntese, que a monogamia seria um “princípio jurídico” de nosso ordenamento jurídico-constitucional, de sorte que não se poderia reconhecer efeitos jurídicos a uma união paralela, em razão deste princípio e da vedação da bigamia no ordenamento jurídico brasileiro.
No entanto, não se concorda com tal preposição. Assim, o presente artigo trará a problemática da monogamia, que para alguns é princípio estruturante do Direito de Família e, para outros, apenas uma regra moral implícita na Lei.
Questiona-se não somente sua aplicabilidade enquanto princípio a ser seguido na legislação brasileira, mas também as bases que ensejam tal pensamento, no caso, a concepção patriarcal de família.
Primeiramente, será tratado o conceito de monogamia em concomitância com o patriarcalismo, visto que ambas estão intrinsecamente interligadas. A leitura indica como a monogamia enquanto razão de ser da Lei advém de uma consequência da dominação masculina sobre a mulher.
Em segundo momento, será demonstrada a superação da monogamia enquanto princípio estruturante do Direito de Família. O principal objetivo é analisar criticamente a aplicação da monogamia enquanto princípio basilar das relações familiares, fazendo com que o leitor repense o lugar da ideologia monogâmica-patriarcal no ordenamento brasileiro.
Para isso, além do patriarcalismo, será tratada o conceito de “lugar de não direito”, a fim de questionar o motivo da não regulamentação dos direitos de família paralelas em razão da prevalência de um valor moral monogâmico.
Por fim, restará demonstrado que o não reconhecimento dos direitos das famílias paralelas advém de uma interpretação equivocada da monogamia enquanto princípio, de sorte que ela se pauta no modelo patriarcal de família já superado no ordenamento jurídico brasileiro.
2. A família monogâmica e patriarcal: uma etapa da história das relações humanas
A família é um fenômeno tão antigo quanto a própria sociedade, o que pode levar a uma confusão quanto a sua origem cultural, isto é, quanto ao fato de que não é uma relação natural, mas sim uma construção humana.
É necessário diferenciar, dessa forma, o estudo da família e o estudo das relações de parentesco. Nesse ponto, tem-se uma contribuição valiosa da Ciência Antropológica, a qual pontua as diferenças dos sistemas. No momento, cabe apenas ressaltar que ambos, enquanto construções culturais são mutáveis geográfica e historicamente, de acordo com as mudanças sociais ocorridas no tempo-espaço.
O conceito de família, dessa forma, não se confunde com a forma como ela é estruturada. Cynthia Andersen Sarti classifica “família” como grupo social concreto, enquanto as relações de parentesco é uma estrutura formal (SARTI, 1992). Como pontua Sarti: “Todo mundo nasce, se acasala e morre. O que é específico do ser humano é que ele escolhe a forma como ele vai fazer isso.” (SARTI, 1992, p. 70).
Tanto é assim que tanto a noção de família, quanto as relações de parentesco modificaram-se ao longo do tempo e espaço, pautadas na realidade social e ideológica marcantes da época e localidade.
Assim, pode-se dizer que a família patriarcal é uma construção cultural, uma etapa da história das relações humanas, dada as dinâmicas sociais em certo tempo e espaço, criada através de relações de parentesco pré-estabelecidas na normativa, que se modifica de acordo com a concepção atribuída.
Entende-se por família patriarcal aquela que tem sua origem fundada na ideologia que leva esse mesmo nome (“ideologia da família patriarcal”), que surge, especialmente, a partir da necessidade do homem em manter a propriedade em sua própria linhagem. Sérgio Monteiro de Barros expõe o seguinte acerca do assunto:
Para esta (a ideologia da família patriarcal), o elemento basilar da sociedade não é o indivíduo, mas sim a entidade familiar monogâmica, parental, patriarcal, patrimonial, isto é, a tradicional família romana, que veio a ser recepcionada pelo cristianismo medieval, que a reduziu à família nuclear, consagrando como família-modelo o pai, a mãe e o filho. Essa concepção restritiva da família bem servia, no plano ideológico, para justificar o domínio das terras pelos patriarcas antigos e, depois, pelos senhores feudais, corroborando a idéia-força de que a família patriarcal e senhorial é a base da sociedade. (BARROS, 2002, p. 6).
O termo patriarca “tem sido utilizado de forma tipificada por sociólogos e cientistas políticos, referindo-se a uma forma originária do exercício do poder do pai sobre os membros da família e de sua comunidade” (AZEVEDO, 2017, p. 13). A autora cita:
Nesse caso, os traços essenciais da família patriarcal são: a crença na existência de laços consanguíneos, definidos através de um antepassado comum, mítico ou real; a vigência de critérios de transmissão hereditária da posição de 'chefe' ou de 'senhor' em linha masculina, com preferência ao primogênito da esposa legal ou de uma das esposas legais; ao exercício do poder senhorial através de norma estabelecidas pela tradição, independentemente de sua origem ou fundamento religioso; o princípio de unidade econômica e política dos componentes da unidade familiar, sob a liderança do 'senhor'; a comunhão religiosa; e o princípio de solidariedade no grupo de parentes, em todas as ações ou situações em que estes ou seus apaniguados ou subordinados se envolvessem como e enquanto membros ou representantes de uma unidade familial" (FERNANDES, 1996 apud AZEVEDO, 2017, p. 13).
Ainda sobre o patriarcalismo, postulam Narvaz e Koller (2006):
Cabe destacar que o patriarcado não designa o poder do pai, mas o poder dos homens, ou do masculino, enquanto categoria social. O patriarcado é uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens e, 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos. A supremacia masculina ditada pelos valores do patriarcado atribuiu um maior valor às atividades masculinas em detrimento das atividades femininas; legitimou o controle da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininas; e, estabeleceu papéis sexuais e sociais nos quais o masculino tem vantagens e prerrogativas (Millet, 1970; Scott, 1995). (NARVAZ, KOLLER, 2006, p. 50)
Nota-se que o conceito trazido pelas autoras remete ao patrimônio e ao domínio sexual da mulher. Assim, os homens, em classe dominante, perpetuam um pensamento, o qual somente é possível pela determinação de um princípio organizador das relações. Há, dessa forma, por detrás do discurso da monogamia, uma intenção patriarcal e machista.
Por sua vez, a ideologia patriarcal, atrelada ao intuito de manter controle, seja do patrimônio ou da mulher, carrega consigo a monogamia, sendo essa uma ferramenta. Em outras palavras, a monogamia é um meio pelo qual se concretiza o controle.
Marcos Alves da Silva, em sua tese de doutorado, traz um importante pensamento acerca do tema. Citando Françoise Héritier diz que a dominação masculina surge em razão da necessidade de controlar a procriação, já que o homem, por si só, não detinha esse poder. Sob o pretexto da fragilidade feminina e sua proteção e da diferença biológica entre os sexos, o homem construiu historicamente um império, utilizando-se de mecanismos, tais como a monogamia.
Assim como a estrutura das relações de parentesco, a monogamia é uma criação cultural, ou seja, advém da convenção humana acerca das relações que o envolvem.
Diferente do que é comumente disseminado, a monogamia não é algo natural das relações humanas. Segundo SILVA (2012), em consonância de pesquisa realizada por BARASH e LIPTON, os seres humanos não são naturalmente monogâmicos, por uma questão de sobrevivência. Naturalmente, o homem busca se reproduzir independentemente de relações de parentesco, pois a reprodução é vista como uma técnica de sobrevivência e evolução da espécie, observada principalmente nos mamíferos (SILVA, 2012).[1]
Engels, no livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado, escreve:
“[A família monogâmica] Foi a primeira forma de família que não se baseava em condições naturais, mas econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade privada sobre a propriedade comum primitiva, originada espontaneamente. Os gregos proclamavam abertamente que os únicos objetivos da monogamia eram a preponderância do homem na família e a procriação de filhos que pudessem ser seus para herdar dele. (ENGELS, 1984, P. 70)”
O ordenamento jurídico brasileiro, influenciado pelas normativas ocidentais europeias - especialmente do Direito Greco-Romano - obedecia a ideologia patriarcal. Um exemplo disso é determinação do Código Civil de 1916 da paternidade presumida em razão do princípio pater is est quem justae nuptia demonstrat.
Como o homem não tem o poder de procriar foi necessário sustentar um sistema no qual ele pudesse ter a certeza da paternidade. Por isso, a imposição de tal princípio, pautado exclusivamente na monogamia da mulher. Novamente, demonstra-se o controle sexual da mulher.
Outra evidência do controle patrimonial através da estrutura da família patriarcal está na diferenciação entre os filhos e o não reconhecimento dos filhos havidos fora do casamento, que perdurou até a Constituição Federal de 1988[2]. A mulher não casada e grávida tinha seus direitos relegados, assim como seu filho, que já nascia sem a proteção legal do Direito de Família. Essa normativa visava justamente evitar que o patrimônio da “família principal” (ou família legítima) fosse prejudicado, mantendo-se esse patrimônio na linha familiar, sem interrupções.
Dessa forma, o não reconhecimento de direitos, na verdade, era uma sanção. Quer dizer, em caso de relacionamentos extraconjugais nos quais advier um filho[3], nenhum deles terá direitos resguardados, já que agiram em desconformidade com a lei e a moral.
O mesmo raciocínio se aplica ante uma situação de uniões paralelas, vez que aos membros que compõem o núcleo diverso do casamento (ou mesmo uma união posterior a outra) é imposta uma sanção: o não reconhecimento de seus direitos.
A família monogâmica, portanto, baseada em questões econômicas, surgiu como uma forma de controle do homem tanto sobre a mulher - através do controle da sua sexualidade - quanto sobre seu próprio patrimônio.
Arraigado de concepções morais muito fortes, principalmente advindas da raiz religiosa que carregava, o casamento foi por muito tempo a única forma de constituir família. Alegava-se que o instituto, enquanto contrato, traria segurança e certeza jurídica nas relações privadas. No entanto, as certezas e a segurança que eram próprias da ordem normativa religiosa das sociedades simples perdem impacto nas sociedades modernas (SILVA, 2012), ante o reconhecimento da complexidade das relações familiares.
Quando a ideologia patriarcal começa a entrar em declínio, percebe-se uma forte mudança nas relações de parentesco e na função social da família. As mudanças sociais advindas das Revoluções Industrial e Francesa influenciaram de forma significativa os arranjos familiares, principalmente no que tange ao papel da mulher nesse cenário.
Nesse novo contexto, a razão de ser da família se modifica (FACHIN apud PEREIRA, 2016), de forma que passa a construir-se com base no afeto e na solidariedade entre os membros. Desse modo, parte da vontade do indivíduo em dar continuidade às relações por ele vividas, sejam elas amorosas ou até mesmo parentais.
Com o declínio do patriarcalismo, a monogamia perde a força tida outrora, sendo inclusive questionada enquanto princípio organizador do Direito. A relativização da monogamia enquanto princípio estruturante permite refletir sobre as questões relativas aos direitos das famílias paralelas, atualizando a normativa nesse sentido. Passa-se a análise da relativização.
3. A relativização da monogamia enquanto princípio jurídico
A monogamia, assim como o princípio da monogamia, é uma construção cultural. E, como visto, é uma das formas de manutenção dos privilégios do homem advindos da ideologia patriarcal .
Como visto, atualmente é possível ponderar ressalvas quanto à monogamia enquanto princípio jurídico. É o que faz Maria Berenice Dias, Marcos Alves da Silva, dentre outros doutrinadores. Dias, por exemplo, traz a ideia de que a monogamia não é princípio, mas sim um preceito moral, que não foi contemplado pela Constituição, sequer de forma implícita.
Para fins deste artigo, adota-se o pensamento de que a monogamia não detém as qualidades essenciais para ser configurada como princípio. Necessário neste caso, diferenciar princípio e valor e, ainda, sua forma de aplicação no contexto atual. Assim, dissocia-se a aplicação irrestrita da monogamia, como justificativa para manutenção do lugar de não direito das família paralelas.
No artigo Os princípios jurídicos no Estado Democrático de Direito: ensaio sobre o modo de sua aplicação, Galuppo traz o conceito de valor, explicitado por Lalande, ao dizer que valor, para o autor, é o “caráter das coisas consistindo em que elas são mais ou menos estimadas ou desejadas por um sujeito ou, mais ordinariamente, por um grupo de sujeitos determinados. (Lalande, 1960: 1183)” (GALUPPO, 1999, p. 196) [grifo meu].
E, ainda, completa, “os valores indicam muito mais o registro de uma preferibilidade em um grupo social do que um dever para esse mesmo grupo, o que implica a possibilidade de concebê-los de forma hierarquizada.” (GALUPPO, 1999, p. 196) [grifo meu].
Pondera Ruzyk:
[...] não se trata a monogamia de regra que possa ser imposta a todas as pessoas que, em suas múltiplas “morais”, podem reputar uma realidade familiar poligâmica como mais adequada às suas aspirações existenciais.
[...]
[a monogamia é] restrita à proibição de múltiplas relações matrimonializadas – e, portanto, constituídas sob a chancela prévia do Estado. Não cabe ao Estado realizar um juízo prévio e geral de reprovabilidade contra formações conjugais plurais não constituídas sob sua égide, e que se constroem no âmbito dos fatos. (RUZYK, 2005, p. 5-6)
O que se extrai, então, da regra da proibição da bigamia ou da nulidade do casamento de pessoa impedida, por exemplo, é o valor da monogamia. Diferencia-se, pois, o valor dos princípios, já que os princípios são postulados de dever ser genéricos, quer dizer, elementos básicos e elementares, que indicam objetivos de determinada proposição ou situação, sem determinar um desfecho específico.
Ainda, destaca-se o pensamento de Paulo Roberto Iozzi Vecchiatti, o qual pontua com maestria o seguinte:
é preciso lembrar que ratio legis, a razão de ser de uma lei, não se confunde com princípio jurídico. A mesma discussão se dá na seara penal, onde muito se critica a confusão de ratio legis com bem jurídico-penal, algo manifestamente descabido, por se ratio legis fosse algo equiparável a bem jurídico, que é algo digno da tutela estatal, então a própria teoria constitucional do bem jurídico-penal não faria o menor sentido, já que seu intuito é, precisamente, controlar (ou, no mínimo, criticar politicamente) o conteúdo substantivo das leis, o que seria logicamente impossível se ratio legis e bem jurídico fossem expressões sinônimas. Ou seja, a monogamia constitui-se enquanto ratio legis das vedações legais (penais e civis) à bigamia, mas isso não significa que se configure como “princípio” jurídico, ainda mais como princípio constitucional, ao menos à luz de uma teoria constitucional do bem jurídico, que só pode admitir discriminações, como a discriminação pretendida às famílias paralelas, se isso atender a algum princípio ou alguma regra constitucional, o que não é o caso, já que a monogamia não se constitui enquanto princípio constitucional. (VECCHIATTI, 2020).
A monogamia não é um princípio estatal, mas sim um valor imiscuído na legislação, a razão de ser de vedações legais. E “somente é relevante para o direito de família quando seu avesso violar a dignidade da pessoa humana. Se assim não for, não cabe ao Estado ser o tutor da construção afetiva coexistencial, assumir o lugar do “não”.” (RUZYK, 2005, p. 6)
Em momento algum, a monogamia se apresenta na constituição enquanto princípio - nem mesmo implicitamente.
Pondera-se, ainda, que a família atual não é uma instituição pela qual os membros vivem em prol, mas o raciocínio inverso: a família serve aos seus componentes, de modo a ser estufa para seu desenvolvimento. O que se protege, principalmente, são as pessoas que compõem o instituto. Proteger umas em detrimento de outras seria incorrer na quebra de diversos princípios da Constituição, tais como o da dignidade humana, da pluralidade das entidades familiares e da igualdade.
Nesse sentido, cabe ressaltar que não há um novo formato de família, qual seja, não surge o formato de “famílias paralelas”, mas sim surgem novas formas de constituir família e sua multiplicidade. Tais formas foram e são protegidas pela Constituição Federal, sendo uma afronta elencar, ainda que indiretamente, hierarquia entre elas.
4. O lugar de não direito das famílias paralelas
Rodrigo da Cunha Pereira, na primeira edição da sua dissertação de Doutorado[4], relata a essência da monogamia está relacionada à virgindade da mulher e à ideia de posse e propriedade, pois, como relata Freud:
Poucas particularidades da vida sexual dos povos primitivos são tão estranhas a nossos próprios sentimentos quanto a valorização da virgindade, o estado de intocabilidade da mulher (...). A exigência de que a moça leve para o casamento com determinado homem qualquer lembrança de relações sexuais como outro nada mais é, realmente que a continuação lógica do direito de posse exclusiva da mulher, que constitui a essência da monogamia, a extensão desse monopólio para incluir o passado. (FREUD apud PEREIRA, 2016)
Ainda segundo o autor, o sistema monogâmico é um sistema organizador das formas de constituir famílias (PEREIRA, 2016). Ainda, para Pereira, no Direito de Família, a monogamia é o controle dos desejos do homem para estruturação de uma sociedade monogâmica. Conforme relata:
Assim como o incesto é um interdito que possibilita a existência de relações sociais, a monogamia ou mesmo a poligamia constituem-se também como um interdito viabilizador da organização da família, e sua essência não é apenas de um regramento moral ou moralizante, mas de um interdito proibitório, sem o qual não é possível organização social e jurídica. (PEREIRA, 2016, p. 79).
Não obstante o doutrinador, atualmente, defenda a possibilidade da proteção dos direitos das famílias paralelas, sua dissertação é utilizada como exemplo de como a base do direito de família foi construída sob a égide da monogamia.
O pensamento acima descrito ainda é latente na sociedade. Entre os juristas, o tema é controvertido. Autores, como José Fernando Simão, consideram acertada a decisão do STF no RE 1.045.273. Simão escreve o seguinte:
O que reconheceu o STF? Que a monogamia é um valor que permeia todas as relações familiares no Direito brasileiro. Que a monogamia, sob a forma de fidelidade (casamento) ou lealdade (união estável) é valor fundamente do Direito de Família no Brasil.
Essa decisão do STF reconduz o Direito de Família a suas bases jurídicas e sociais. Jurídicas porque a monogamia para todos os modelos familiares é um valor fundante da ordem jurídica brasileira. Sociais porque, ainda que alguns juristas discordem com ênfase, é historicamente monogâmica a família brasileira como tal protegida pelo ordenamento. (SIMÃO, 2020)
Ainda, conclui:
Essa relação impropriamente denominada (no campo idílico, dos sonhos sonhados por alguns) de "família paralelas" é o nada jurídico. Filhos são filhos e, portanto, para eles o adjetivo "paralelo" é vexatório, discriminante e fere a Constituição Federal. Por outro lado, aquele que mantém a relação com a pessoa casada ou em união estável não tem com ele/ela uma família. (SIMÃO, 2020)
No entanto, concordar com tal entendimento é concordar com a hierarquização entre pessoas. No caso de famílias simultâneas, por exemplo, tal raciocínio perpetua a noção de legitimidade de algumas relações em detrimento de outras, uma vez que vincula a organização da família apenas a um tipo de composição.
Fere não somente os princípios da igualdade e da pluralidade das famílias, mas, principalmente, o da dignidade da pessoa humana. Ao não regulamentar ou desproteger pessoas que fazem parte de núcleo familiar paralela a um anteriormente existente, estaria não se aplicando o valor maior, que é a pessoa.
Não custa nada lembrar que há pouco tempo, os filhos também eram discriminados e punidos com a ausência de regulamentação de seus direitos, por força de determinação legal.
O jurista, ao afirmar que as “famílias paralelas” pertencem ao “nada jurídico” apenas confirma o “lugar de não direito” ocupado pelo tema.
SILVA (2013), ao escrever acerca da conjugalidade sem casamento, traz a inteligência de Jean Carbonnier, que trabalhou amplamente o conceito do não-direito. Conforme diz Carbonnier:
Contra os juristas dogmáticos, que presumem a continuidade do direito subjetivo, devemos verificar amplos intervalos de não-direito no seu interior. É natural imputar o fenômeno a forças antagônicas que fazem retardar o direito. (...) Mas estas não são sempre externas ao direito: podem residir no direito mesmo, ou mais precisamente na vontade mesma do direito. Ocorre que o direito se autolimita e paradoxalmente organiza aqueles que se poderiam definir como institutos jurídicos de não-direito. (CARBONNIER apud SILVA, 2013) [grifo meu]
O “não direito”, nesse sentido, é um lugar de invisibilidade que o próprio ordenamento cria ao não tratar de situações fáticas, seja porque não possuem uma regulamentação ou porque são contrários aos princípios que embasam o ordenamento.
O tema das famílias simultâneas ocupa o “ lugar não direito”, pois, ainda que exista de fato, nunca houve regulamentação em relação ao tema, a não ser uma regulamentação negativa, de forma a proibir a bigamia, como traz o art. 1.727 do Código Civil ou no art. 235 do Código Penal. Antes, ainda, o adultério também era considerado crime contra a família, trazido no Código Penal.
Ainda, sempre que se tenta trazer à tona sua regulamentação, é vetada pela existência do princípio da monogamia, como pode ser observado no julgado mais recente do Supremo Tribunal Federal.
Esse lugar que ocupa tem origem na própria origem da concepção de família em nossa sociedade. Como visto, a família era instituição e sua única forma de concepção se dava através do matrimônio.
Silva (2012), ao trazer o pensamento de Hannah Arendt acerca da dignidade humana, afirma que ela pode ser reconhecida também pelo seu caráter negativo. Em vez de preocupar-se apenas com aquilo que descreve uma pessoa digna, por vezes o raciocínio inverso faz refletir acerca das questões que necessitam tutela, pois de forma evidente negam a dignidade de outros.
Consequente a essa ideia, pode-se pensar que a noção da família tradicional carregou por muito tempo consigo a invisibilidade dos filhos e das mulheres e continua a carregar a invisibilidade de diversos núcleos familiares. Tudo isso se dá em razão da construção cultural que gira em torno do casamento monogâmico como o único legítimo a ser tutelado.
Ainda que a legalidade constitucional preveja a igualdade entre os núcleos familiares, vê-se no ordenamento o casamento ainda como protagonista, sempre utilizado como parâmetro para as demais formas de constituir família. A moral matrimonial, ainda fortemente arraigada no íntimo dos membros que compõem a sociedade, levam a preceitos tais como o trazido no parágrafo terceiro do art. 226 da Constituição Federal, que diz:
“Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.”
Levam, ainda, a interpretações tais como a feita no voto do Relator Min. Alexandre de Moraes no RE 1.045.273, na qual se destaca que só poderia ser reconhecida como união estável aquela que pudesse ser convertida em casamento.
O intuito do presente artigo não é trazer as comparações ou hierarquizações dos institutos do casamento ou da união estável. Porém, importante demonstrar que mesmo que o princípio da pluralidade das formas de constituir família seja amplamente reconhecido pelo nosso ordenamento e tutelado constitucionalmente, ainda há violações de seu conceito, em prol da moralidade matrimonial e monogâmica.
É fato que a monogamia é um modelo seguido nas relações familiares ocidentais, seja pela historicidade, seja pela moral que permeia as relações. Dessa forma, por ser maioria, determina o que Ruzyk chama de “padrão médio”. A monogamia é o padrão a ser adotado pela maioria das famílias. No entanto, não deve ser a regra que contém exceções.
Em outras palavras, o fato de ser “padrão médio” não indica uma hierarquia entre monogamia ou poligamia, não sendo uma exceção da outra.
Da mesma forma, a simultaneidade de famílias não é hierarquicamente menor do que o modelo monogâmico, pois, como já visto, o ordenamento jurídico não prioriza as formas de constituir família. O que ocorre é que, ao se estipular certo item como padrão, as outras formas geram perplexidade. Nesse sentido, Carlos Eduardo P. Ruzyk elucida:
O “desvio” do padrão médio gera, é certo, perplexidades no ambiente social em que venha a se configurar, já que, como dado histórico sociológico dotado razoável estabilidade e internalização social, forja o que se pode denominar de “moral social média”, retroalimentando-se dessa mesma moral. (RUZYK, 2005, p.4)
Como pondera o autor, isso não significa que o Estado deva negar proteção jurídica àqueles que escolhem não seguir o padrão, marginalizando e banindo do mundo jurídico essas situações.
O lugar de não direito das famílias paralelas se dá justamente pela presença da monogamia, que ainda impera ante a persistência de uma sociedade patriarcal e machista - ainda que não se admita tal acontecimento nos dias atuais.
Cabe lembrar, por fim, que não é a lei que determina o que é família. É a dinâmica das relações. Ao direito cabe regulamentar a realidade e beber na água de outras ciências, a fim de fazer seu papel com mais justiça.
6. Conclusão
Diante do exposto, é possível concluir o seguinte:
A um, que assim como o casamento, a monogamia advém da convenção humana acerca das relações que o envolvem e está diretamente ligado ao “não poder” de criação do homem. Assim, o patriarcalismo se entrelaça com a monogamia na medida que se torna uma forma de controle sexual e patrimonial da mulher e, por sua vez, das relações sociais familiares.
A dois, elencar a monogamia como princípio estruturante do Direito é marginalizar situações de fato recorrentes, tais como a questão das famílias paralelas e também do poliamor, colocando essas situações em “lugares de não direito”. Isso gera consequências além do próprio instituto, mas afeta a dignidade das pessoas que se encontram nessas situações.
A três, que existe um grande movimento de relativização da monogamia enquanto princípio, em razão da mudança paradigmática trazida pela Constituição de 1988, que abarca os princípios da dignidade da pessoa humana e do pluralismo das entidades familiares.
A quatro, que a monogamia, na verdade, está sendo vista como valor ingerido nas relações e na legislação estatal, que é confundido, por vezes, como regra, outras como princípio, a fim de justificar e fundamentar decisões que desamparam certas famílias.
Por fim, que o Estado, ao aplicar a monogamia enquanto princípio estruturante está hierarquizando certas formas de constituir família, o que fere de forma nítida outros princípios e inverte a forma como são aplicadas as demais normas. A inversão, nesse caso, se dá na medida em que os preceitos do Código Civil tornam-se mais importantes do que aqueles trazidos explicitamente na Constituição Federal, o que vai de encontro a outras decisões e argumentos do Poder Judiciário.
Conquanto o patriarcalismo tenha sucumbido enquanto ideologia, não significa que as práticas nele embasadas tenham se encerrado (SILVA, 2012). A história mostra o quão as decisões judiciais e a legislação são baseadas na ideologia patriarcal que exclui e domina mulheres, repercutindo em todos os campos do Direito.
A moralidade arraigada pela ideologia patriarcal, infelizmente, ainda impede que o Estado passe tutelar situações fáticas, tais como a realidade das uniões paralelas, desprotegendo, assim, os membros que compõem o núcleo familiar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SARTI, Cynthia Andersen. Contribuições da Antropologia para o estudo da família. Psicologia, USP. São Paulo. v.3 n.1/2. p. 69-72, 1992.
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STF, RE 1.045.273, Relator Min. Alexandre de Moraes.
[1] O autor dedica um capítulo inteiro a falar de como os estudos biológicos demonstram a plurigamia entre os mamíferos, ao contrário do senso comum, que utiliza o argumento da monogamia dos animais para fundamentar a necessidade monogâmica do ser humano.
[2] Ressalta-se que apenas eram legítimos os filhos havidos dentro do casamento. Essa diferenciação foi modificada com a Constituição de 1988 quando determinou no art. 227, §6º a igualdade entre todos os filhos.
[3] Seja como concubina ou com um homem solteiro.
[4] PEREIRA, Rodrigo da Cunha.
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