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Pais que dão à luz: como o direito brasileiro regulamenta o registro dos filhos de transgêneros?
Pais que dão à luz: como o direito brasileiro regulamenta o registro dos filhos de transgêneros?
Ana Beatriz Ferreira Rebello Presgrave[1]
Cecília Rodrigues Frutuoso Hildebrand[2]
Renata Cortez Vieira Peixoto[3]
Há alguns dias, foi publicada na internet uma notícia de um casal que acusou um hospital de “transfobia”[4], por não ter supostamente respeitado as identidades de gênero do paciente e de sua acompanhante.
A cena lembra o filme “Junior”[5], em que Arnold Schwarzenegger interpreta um cientista que resolve testar em si mesmo um medicamento para evitar aborto espontâneo e acaba engravidando.
Se em 1994 a cena de um homem grávido parecia ser apenas fruto da imaginação de roteiristas de Hollywood, em 2021 a cena se tornou realidade, mas não em razão do desenvolvimento da ciência, e sim por força da evolução da sociedade, no sentido de se garantir o direito à identidade de gênero das pessoas, independentemente de seu sexo biológico.
De acordo com a reportagem, o homem trans deu entrada no hospital acompanhado de sua companheira, uma mulher trans, para dar à luz o primeiro filho do casal, e, a partir de então, sofreu o que qualificou de “transfobia”, da seguinte forma:
“Ao dar entrada no Hospital, Terra Rodrigues, companheira de Derick, entregou os documentos de ambos, nos quais consta o nome e identidade de gênero já retificados. Apesar disso, a falta de preparo de vários profissionais da instituição tornou o que poderia ser uma das experiências mais bonitas de suas vidas em mais um episódio de violência transfóbica.
“O problema se deu após a rotatividade de enfermeiros, quando a violência transfóbica direta começou com a equipe de enfermagem falando “a Derick”, “vai lá com o pai, ops, mãe”, para se referir a mim. Foi aí que começou a violência direta. Fora isso, teve outras indiretas, como a identificação com a palavra “mãe” associada ao Derick etc.” relata Terra.”
O casal afirmou que a transfobia continuou com o preenchimento da Declaração de Nascido Vivo (DNV), pois o hospital colocou o parturiente como “mãe”, e sua companheira como “pai”. Sobre o ponto, narra o texto:
“No entanto, as violências não pararam por aí. Posteriormente ao parto, o hospital lhes entregou a DNV (Declaração de Nascido Vivo) para que pudessem fazer o pedido de Certidão de Nascimento do filho. Porém, o documento, que é simples, contendo principalmente informações sobre a gestação, foi preenchido também de maneira incorreta, sendo colocado no campo “mãe” o nome de Derick e no campo “pai” o nome de Terra. De acordo com a advogada do casal, em nenhum momento foi perguntado à Terra a relação que ela estabelecia com Derick, sendo totalmente pressuposto pelo hospital que ela seria a companheira e, desrespeitando sua identidade de gênero, deveria estar no campo “pai” no documento.
Mesmo com o documento preenchido incorretamente, o casal tentou registrar a Certidão de Nascimento do filho no cartório localizado dentro do hospital, solicitando que se invertesse a informação que estava incorreta na DNV. Porém, o cartório se recusou a fazer a alteração, alegando que tinham que seguir rigorosamente as informações da DNV. Assim, o registro não pode ser feito.”
Em nota, o Hospital e Maternidade Jaraguá afirmou que:
As equipes da maternidade e da assistência social do hospital prestaram todo o atendimento ao casal e ao bebê, inclusive realizando o encaminhamento do casal à Promotoria do município, que deverá prestar auxílio à família. O hospital está à disposição para esclarecer as dúvidas[6].
Antes de adentrar no conceito de transfobia, deve-se diferenciar sexo biológico e identidade de gênero. O primeiro “é aquele com o qual o indivíduo nasce, de acordo com a correspondente genitália, cromossomos, gônadas e hormônios, isto é, sexo feminino, sexo masculino ou intersexo”, ao passo que identidade de gênero é “o gênero com o qual o indivíduo se identifica, ou seja, representa como o sujeito se reconhece: homem, mulher ou agênero”[7].
Dessa forma, as pessoas podem se enquadrar como cisgênero (cis) ou transgênero (trans). O termo cisgênerorefere-se às pessoas que “se identificam com o gênero que lhes foi atribuído quando do nascimento”[8] e transexualidade é “uma característica de um indivíduo que não possui harmonia entre seu sexo biológico e seu gênero”[9].
A transfobia, por seu turno, pode ser conceituada como a prática discriminatória ou preconceituosa contra pessoas transgênero, ou pessoas percebidas como tal.
Em junho de 2019, o STF, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26, criminalizou a transfobia, ao ampliar a incidência da Lei 7.716/89, que trata do crime de racismo, por entender adequada a sua aplicação às situações de homofobia e transfobia, nos seguintes termos:
“Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08/01/1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”)”[10].
A referida Lei prevê, em seu art. 1°, que “Serão punidos, na forma desta lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.” Nos arts. 3º a 20 estão descritas as condutas consideradas criminosas e as respectivas sanções, destacando-se o teor deste último, segundo o qual estará submetido às penas de reclusão de um a três anos e multa aquele ou aquela que “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Assim, “o que está proibido se fazer tendo como motivação a raça, a cor, a procedência, a etnia e a religião, também está vedado por razões de orientação sexual (nascer com um sexo e ter distinta orientação – homofobia) ou identidade de gênero (nasce com um sexo, mas assume outra identidade – transfobia)”, conforme lição de Luiz Flávio Gomes[11].
Do que se expôs, tem-se que i) a identidade de gênero não se confunde com o sexo biológico da pessoa, posto que aquela corresponde ao gênero com o qual o indivíduo se identifica, que pode ou não ser equivalente ao sexo biológico; e ii) a transfobia, por decisão do STF[12], deve ser enquadrada como crime de racismo, de modo que pessoas transfóbicas podem ser condenadaspelas condutas descritas e submetidas às sanções previstas na lei antirracismo, por analogia.
De um lado, se confirmado o tratamento dado pela equipe do hospital ao casal trans, razão lhe assistirá quanto à falta de preparo dos enfermeiros e enfermeiras que prestaram atendimento ao casal e ao bebê, haja vista ser um direito das pessoas trans serem reconhecidas pelo gênero com o qual se identificam.
No campo administrativo, em 2016, foi publicado o Decreto nº 8.727, que disciplina o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
O art. 2º do referido Decreto determina a obrigatoriedade de utilização do nome social pelosórgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.[13]
É de se destacar que o exercício da atividade hospitalar, ainda que por entidade privada, obriga a instituição a cumprir as mesmas normas destinadas à administração pública. O STF, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 1266-55 e 1007-76, concluiu que “a saúde (e a educação) como sendo serviços públicos em sua genética, independentemente de sua titularidade, não sendo a titularidade executiva o que caracterizaria a natureza do serviço, demarcada pela CF como direito fundamental, dever do Estado e de relevância pública.”[14]
No caso em tela, o casal reporta que fez pedido de tratamento adequado do seu gênero, o que não teria sido atendido. Assim, se isso ocorreu, agiu de forma inadequada a equipe do hospital e este pode vir a ser responsabilizado civilmente pela conduta de seus profissionais, podendo-se cogitar, inclusive, de violência obstétrica.
Sobre o tema, o Projeto de Lei n. 7.633, de 2014, em trâmite na Câmara dos Deputados, em seu artigo 13 assim conceitua a violência obstétrica:
Art. 13. Caracteriza-se a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelos(as) profissionais de saúde, através do tratamento desumanizado, abuso da medicalização e patologização dos processos naturais, que cause a perda da autonomia e capacidade das mulheres de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.
Parágrafo único. Para efeitos da presente Lei, considera-se violência obstétrica todo ato praticado pelo(a) profissional da equipe de saúde que ofenda, de forma verbal ou física, as mulheres gestantes em trabalho de parto, em situação de abortamento e no pós-parto/puerpério.[15]
Se a conduta praticada pelos funcionários do hospital, ao não respeitar a condição de gênero do casal, causou-lhe sofrimento psicológico, poderia ser considerada violência obstétrica e gerar, eventualmente, uma indenização pela dor moral sofrida. Mas tal conclusão dependeria de uma análise mais profunda do tema, com amplo exercício do contraditório.
De outro lado, é preciso cuidado ao classificar as condutas descritas como transfóbicas e, portanto, passíveis de serem punidas criminalmente nos termos da Lei 7.716/89.
É que a situação retratada na reportagem, embora plenamente factível, não se revela usual, tampouco corriqueira, motivo pelo qual ainda mais factíveis são as dúvidas em torno do tema, especialmente quanto ao seu tratamento jurídico.
Segundo o hospital, o casal foi plenamente atendido e teve todo o suporte necessário para que o filho nascesse em boas condições, não havendo qualquer queixa quanto a esse aspecto. Daí porque as condutas dos enfermeiros e enfermeiras que prestaram atendimento ao casal teriam que ser analisadas individualmente sob o ponto de vista penal, inclusive porque para a configuração do crime de racismo é exigida a presença do dolo, ou seja, a vontade livre e consciente do agente de praticar as condutas descritas nos tipos penais.
Destarte, considerando a necessidade de análise dos fatos e provas para que se chegue à conclusão da configuração do crime de racismo no tocante às condutas dos funcionários do hospital, não será esse o enfoque do presente texto.
Pretende-se analisar a situação à luz do Direito Civil e do Direito Registral, especificamente no tocante ao preenchimento da DNV e ao registro de nascimento do filho do casal, com emissão da certidão respectiva.
É certo que não há na Constituição ou nas leis federais nenhuma norma expressa no tocante ao direito à identidade de gênero.Tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 5.002/2013, de autoria do então Deputado Jean Wyllys, que buscava a regulamentação do direito à identidade de gênero, inclusive com alteração da Lei de Registros Públicos, mas o projeto foi arquivado no dia 31.01.2019, em razão do fim da legislatura.
Na justificativa do Projeto, constou que “A identidade de gênero é definida no projeto com base nos Princípios de Yogyakarta sobre a aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos nas questões que dizem respeito à orientação sexual e à identidade de gênero”.
Nesse ponto, cabe um esclarecimento acerca dos Princípios de Yogyakarta.
A partir da premissa de que a orientação sexual e a identidade gênero são fundamentais para a dignidade da pessoa, a Comissão Internacional de Juristas e o Serviço Internacional de Direitos Humanos realizaram um projeto com o objetivo de desenvolver um conjunto de princípios jurídicos internacionais relativos à aplicação da legislação internacional às violações de direitos humanos com base na orientação sexual e identidade de gênero. Após uma reunião realizada na Universidade Gadjah Mada, em Yogyakarta, Indonésia, em 2006, 29 especialistas de 25 países adotaram por unanimidade os Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação da Legislação Internacional de Direitos Humanos em relação à Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Esses princípios foram apresentados à Organização das Nações Unidas (ONU) em 2007[16].
Segundo consta do referido documento, a identidade de gênero é compreendida como “a profundamente sentida experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos”.
Além do PL 5002/2013, já arquivado, há outros projetos sobre a temática em tramitação no Senado Federal: a) o Projeto de Lei n° 2.745, de 2019, de autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, que tem por finalidade alterar o Código Civil e a Lei de Registros Públicos “para dispor sobre o direito ao reconhecimento da identidade de gênero, permitindo a mudança do registro doprenome e do sexo da pessoa dos documentos de identificação, quando comprovadamente divergentes”. O Projeto está, desde o dia 20.05.2019, aguardando a designação de relator; b) e o Projeto de Lei n° 134, de 2018, também de autoria da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa[17], que pretende instituir o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero. O Projeto está com o Relator, o Senador Paulo Rocha, para emitir relatório, desde 15.03.2019.
Assim é que, sem regulamentação legal, a proteção jurídica às pessoas trans, especialmente quanto ao direito à identidade de gênero, passou a ser garantida judicialmente. Além da já referida decisão do STF acerca da criminalização da transfobia, a Corte Suprema, em 15.08.2018, já havia definido as seguintes teses, em sede de repercussão geral (RE 670422), relativamente ao direito à identidade de gênero da pessoa trans:
I) O transgênero tem direito fundamental subjetivo à alteração de seu prenome e de sua classificação de gênero no registro civil, não se exigindo, para tanto, nada além da manifestação de vontade do indivíduo, o qual poderá exercer tal faculdade tanto pela via judicial como diretamente pela via administrativa;
II) Essa alteração deve ser averbada à margem do assento de nascimento, vedada a inclusão do termo 'transgênero';
III) Nas certidões do registro não constará nenhuma observação sobre a origem do ato, vedada a expedição de certidão de inteiro teor, salvo a requerimento do próprio interessado ou por determinação judicial;
IV) Efetuando-se o procedimento pela via judicial, caberá ao magistrado determinar de ofício ou a requerimento do interessado a expedição de mandados específicos para a alteração dos demais registros nos órgãos públicos ou privados pertinentes, os quais deverão preservar o sigilo sobre a origem dos atos.
Logo em seguida, cumprindo a determinação de desjudicialização do STF, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 73/2018, no qual restou regulamentada a alteração de prenome e gênero diretamente no registro civil das pessoas naturais, relativamente às pessoas maiores de 18 anos. O procedimento se inicia com a declaração da pessoa, manifestada perante o registrador civil, de proceder à adequação da identidade mediante a averbação do prenome, do gênero ou de ambos, independentemente de prévia autorização judicial ou da comprovação de realização de cirurgia de redesignação sexual e/ou de tratamento hormonal ou patologizante, assim como de apresentação de laudo médico ou psicológico.
No que pertine ao tema tratado no presente texto (o registro de filhos de pessoas trans), estabelece o referido Provimento que a “subsequente averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento dos descendentes da pessoa requerente dependerá da anuência deles quando relativamente capazes ou maiores, bem como da de ambos os pais”. E se houver discordância dos pais quanto à averbação mencionada nos parágrafos anteriores, o consentimento deverá ser suprido judicialmente (art. 8º, §§2º e 4º).
Assim é que, uma vez realizada a averbação da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento da pessoa trans, a modificação correspondente no registro dos filhos, se absolutamente incapazes, depende da concordância de ambos os pais.
No caso sob análise, o casal já havia promovido a alteração de seus prenomes e gêneros antes do nascimento do filho, e evidentemente estava de acordo quanto à inserção respectiva no registro do filho.E o Provimento 73, como visto, autoriza que, em tal registro, conste a referida mudança no prenome e no gênero dos pais, de modo que, indubitavelmente, deveriam constar, no campo “filiação”, os nomes de Derick e Terra.
Destaque-se que, desde o Provimento 63 do CNJ – que regulamentou a filiação socioafetiva e o assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida, inclusive realizadas por casal homoafetivo – nãohá mais referência, na certidão de nascimento, ao gênero dos pais e nem aos termos “pai” e “mãe”, constando apenas o campo “filiação”, no qual são inseridos tão somente os nomes dos genitores. Também no campo “avós” não se deve mais fazer a referência aos complementos “maternos” e “paternos”. São inseridos apenas os nomes dos avôs e das avós, conforme o caso.
Nesses termos, o art. 16, § 2º do Provimento disciplina expressamente a questão registral na hipótese de filhos de casais homoafetivos: “o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência à distinção quanto à ascendência paterna ou materna” (grifo nosso).
Da mesma forma, houve preocupação quanto à gestação em substituição, conhecida como barriga de aluguel. O art. 17 do Provimento 63 permite que não conste o nome da parturiente, devendo constar do registro o da mãe em substituição: “Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora tempora?ria do u?tero, esclarecendo a questa?o da filiac?a?o” (grifo nosso).
Assim é que, salvo melhor juízo, no registro do filho do casal, não haveria qualquer obstáculo à inserção dos nomes Derick e Terra, em qualquer ordem por eles definida, já que o campo filiação, no registro e na certidão de nascimento, não deve fazer distinção quanto à ascendência paterna ou materna.
Essa adequação jurídica à realidade social, no entanto, ainda não existe no tocante à Declaração de Nascido Vivo (DNV).Os requisitos da DNV constam da Lei 12.662/2012 e, dentre eles, estão “o nome e prenome, naturalidade, profissão, endereço de residência da mãe e sua idade na ocasião do parto; e “o nome e prenome do pai”.
No caso, mãe seria a parturiente, aquela que deu à luz a criança e pai, o genitor biológico respectivo.Assim é que, até então, não há na Lei 6.015/73 ou na Lei 12.662/12 qualquer dispositivo que permita ao hospital deixar de colocar como “mãe” a pessoa que deu à luz. Há apenas a opção não inserir o nome do pai.
Sendo assim, quanto ao preenchimento da DNV, não parece ter havido conduta equivocada, preconceituosa ou discriminatória por parte do hospital. Em outros termos, não havia outra forma de preencher a DNV, senão como fora preenchida.Deve-se lembrar que o formulário da DNV é padronizado, não havendo como serem alterados os títulos de seus campos para preenchimento.
Para evitar o problema descrito na reportagem aqui analisada, portanto, é indispensável que haja uma alteração normativa no tocante à regulamentação da DNV, para que, no formulário, ao invés de “mãe”, conste apenas “parturiente”; e, no lugar de pai, conste “genitor(a)”.
De todo modo, como já afirmado anteriormente, o problema seria corrigido no momento do registro da criança, devido às alterações promovidas pelo Provimento 63 do CNJ, que determina a inserção dos nomes dos ascendentes sem qualquer referência à distinção quanto à ascendência paterna ou materna e em razão do Provimento 73, que garante o direito à identidade de gênero da pessoa trans, com expressa regulamentação das repercussões da alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento dos seus descendentes.
Assim é que, no caso narrado, deveria o registrador civil ter promovido o registro da criança com o nome dos ascendentes em qualquer ordem por eles definida, em respeito à sua identidade de gênero.
Constata-se, assim, que há necessidade de adequação normativa para que se possam garantir efetivamente os direitos destacados nos Princípios de Yogyakarta, especialmente pelo fato de não haver sido promovida, ainda, qualquer alteração na Lei de Registros Públicos e tampouco no Código Civil nesse sentido.
As Resoluções e Provimentos do CNJ têm servido de suporte normativo para se garantir os registros de nascimento sem a distinção antes havida de se destacar quem é o pai e quem é mãe nas certidões de nascimento, fazendo referência pura e simples à ascendência.
Não há, entretanto, qualquer previsão normativa que permita ao hospital deixar de colocar a parturiente no campo “mãe” da DNV. Mesmo no caso de gestação em substituição, na DNV figurará no campo “mãe” a parturiente, havendo a adequação respectiva, com a inserção do nome da mãe biológica, no momento do registro de nascimento.
Solução similar poderia ser adotada para se adequar a DNV às novas realidades sociais, permitindo-se a aposição dos nomes da pessoa parturiente e dos ascendentes, sem qualquer diferenciação com relação a quem seria o “pai” ou a “mãe”.
Não se pode olvidar que toda a forma de tratamento que deve ser destinado às pessoas trans é algo muito novo e que demanda regulamentação e treinamento dos agentes envolvidos. A questão de gênero tem relação com a cultura da sociedade, a qual, de forma geral, ainda não se acostumou a tornar alguns termos sem gênero e adequados para incluir todos os gêneros.
Consta na reportagem, em um trecho, entrevista com Terra, a mãe trans, que teria afirmado: “o aleitamento materno também é uma coisa muito complicada: o leite começou a empedrar por causa do estresse, mastite, e agora a gente tá sofrendo um grande problema que é o leite do Derick secando com todo o estresse, com toda a correria que a gente tá passando[18]” (grifo nosso). Ora, sendo Derick um pai trans, será que a terminologia leite “materno” é adequada?
Em um hospital do Reino Unido, por exemplo, foram emitidas diretrizes para que as parteiras não mais utilizem os termos “leite materno” e “amamentação” para poder incluir as pessoas trans ou não binárias. Termos como “pais que dão à luz” e “leite humano” estão sendo encorajados por serem mais inclusivos. A “assistência à maternidade” passou a ser chamada de “serviços perinatais”.[19]
Sendo assim, pode-se concluir que há um longo caminho no Brasil ainda a ser percorrido para que a questão da inclusão de pessoas trans possa ser tratada de forma adequada, com modificação da legislação e aprovação de projetos de lei que privilegiem os Princípios de Yogyakarta.
No caso concreto, a solução poderia ter ocorrido de forma extrajudicial, com a atuação do registrador civil no caso concreto, uma vez que os Provimentos do CNJ vigentes permitem o registro sem a identificação dos campos maternos e paternos, evitando-se eventuais constrangimentos.
De qualquer modo, sendo uma situação nova, como já dito anteriormente, reputam-se naturais as dúvidas sobre como tratar juridicamente o caso.
Por isso é que a disseminação desse tipo de notícia é fundamental para dar mais visibilidade a situações que ainda não são devidamente regulamentadas pela legislação e, quem sabe, e para estimular o legislador – ouórgãos que emitem atos normativos como o CNJ – a suprir tais omissões e garantir direitos, regulamentando o seu exercício, inclusive extrajudicialmente.
É o caso do direito à identidade de gênero das pessoas trans. Apesar das determinações constantes do Provimento 63 quanto à não distinção entre os ascendentes no registro de nascimento e embora o Provimento 73 do CNJgaranta a alteração extrajudicial do prenome e gênero, diretamente nas serventias do registro civil das pessoas naturais, resta evidente que muito ainda falta para que sejam efetivados os Princípios Yogyakarta na realidade brasileira.
Para começar, impõe-se uma mudança no regramento da Declaração de Nascido Vivo, para adequação de seu preenchimento à realidade social e ao direito à identidade de gênero das pessoas trans – já reconhecido pelo STF, inclusive –notadamente emrespeito à dignidade dos pais que dão à luz e de suas famílias.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BRASIL. Projeto de Lei n. 7.633, de 2014. Câmara dos Deputados, Brasília, 2014. Disponível em:
33/2014>. Acesso em: 15 fev. 2021.
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CAMPOS, Maria. Hospital pede que parteiras não digam “amamentação” e “leite materno” (para serem mais inclusivas). ZAP aeiou, 13 fev. 2021. Disponível em: https://zap.aeiou.pt/hospital-pede-que-parteiras-nao-digam-amamentacao-e-leite-matern-380356. Acesso em 22 fev. 2021.
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[1] Doutora em Direito Constitucional pela UFPE. Mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP. Estágio pós-doutoral na Universidade de Münster. Professora do Curso de Graduação e do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRN. Presidente do IPPC. Membro da ABDPRO. Membro do IBDP. Membro do CEAPRO. Membro do IBDFAM. Presidente da Comissão de Família e Sucessões da OAB/RN. Conselheira Federal da OAB.
[2] Especialista em Direito Processual Civil. Coordenadora do Curso de Direito e do Núcleo de Prática Jurídica no Centro Universitário Anhanguera Leme. Professora. Membro do Elas no Processo. Advogada.
[3] Registradora Civil e Tabeliã no Estado de Pernambuco. Doutoranda em Direito Processual pela UERJ. Mestre em Direito e Especialista em Direito Processual Civil pela UNICAP. Coordenadora da Pós-Graduação em Direito Notarial e Registral do CERS/Recife e da Pós-graduação em Advocacia Extrajudicial do IAJUF/Unirios.
[4] GUZZO, Morgani.Hospital é acusado de transfobia por não respeitar identidade de gênero de gestante e acompanhante. Catarinas, 10 fev. 2021. Disponível em:https://catarinas.info/hospital-e-acusado-de-transfobia-por-nao-respeitar-identidade-de-genero-de-gestante-e-acompanhante/?fbclid=IwAR1-yLq23mu_saaawCnh816v0MioQSR3kXZefHE4wvS10UB1bcF2TD_BenA. Acesso em: 17 fev. 2021.
[5] IMDB. Junior. Disponível em:https://www.imdb.com/title/tt0110216/. Acesso em: 17 fev. 2021.
[6]BARREIROS, Fernanda. Casal acredita em transfobia após não conseguir registrar filho por erro em certidão; hospital se manifesta, 10 fev. 2021. Disponível em: https://observatoriog.bol.uol.com.br/noticias/casal-acredita-em-transfobia-apos-nao-conseguir-registrar-filho-por-erro-em-certidao-hospital-se-manifesta. Acesso em: 17 fev. 2021.
[7] CAVALCANTI, Sabrinna Correia Medeiros; RAPOSO, Bartira Leite Farias. TRANSEXUALIDADE E A APLICABILIDADE DA LEI MARIA DA PENHA. Tema: revista on-line do CESED - Centro de Ensino Superior e Desenvolvimento, Leme, v. 19, n. 30/31, p.36-51, jan - dez. 2018. Disponível em:
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[8] JESUS, Jaqueline Gomes de. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos: guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para formadores de opinião. 2. ed. Brasília: 2012. 41 p. Disponível em:
[9] DAROLT, Gabriela Schneider. Transexualidade, seu conceito jurídico e amparo
constitucional à cirurgia de transgenitalização. 2017. Disponível em:
D1_SA6_ID178_17072017013300.pdf>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=%22ADO%2026%22&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true. Acesso em: 24 fev. 2021.
[11]GOMES, Luiz Flávio. Homofobia ou transfobia é crime, diz Ministro Celso de Melho. Estadão, 21 fev. 2019. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/homofobia-ou-transfobia-e-crime-diz-ministro-celso-de-mello/. Acesso em: 16 fev. 2021.
[12] Não entraremos na polêmica que envolve a ADO 26, por não caber no objetivo deste trabalho.
[13]Art. 2º. Os órgãos e as entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, em seus atos e procedimentos, deverão adotar o nome social da pessoa travesti ou transexual, de acordo com seu requerimento e com o disposto neste Decreto.
[14]SANTOS, Lenir.A natureza jurídica pública dos serviços de saúde e o regime de complementaridade dos serviços privados à rede pública do Sistema Único de Saúde. Scielo. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/sdeb/2015.v39n106/815-829/pt/. Acesso em: 15 fev. 2021.
[15] BRASIL. Projeto de Lei n. 7.633, de 2014. Câmara dos Deputados, Brasília, 2014. Disponível em:
33/2014>. Acesso em: 15 fev. 2021.
[16]PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA. Disponível em: http://www.clam.org.br/uploads/conteudo/principios_de_yogyakarta.pdf. Acesso em> 16 fev. 2021.
[17]O Projeto foi apresentado ao Senado pelo Conselho Federal da OAB após elaboração pela Comissão Especial da Diversidade Sexual
[18]GUZZO, Morgani.Hospital é acusado de transfobia por não respeitar identidade de gênero de gestante e acompanhante. Catarinas, 10 fev. 2021. Disponível em:https://catarinas.info/hospital-e-acusado-de-transfobia-por-nao-respeitar-identidade-de-genero-de-gestante-e-acompanhante/?fbclid=IwAR1-yLq23mu_saaawCnh816v0MioQSR3kXZefHE4wvS10UB1bcF2TD_BenA. Acesso em: 17 fev. 2021.
[19] CAMPOS, Maria. Hospital pede que parteiras não digam “amamentação” e “leite materno” (para serem mais inclusivas). ZAP aeiou, 13 fev. 2021. Disponível em:https://zap.aeiou.pt/hospital-pede-que-parteiras-nao-digam-amamentacao-e-leite-matern-380356. Acesso em 22 fev. 2021.
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