Inteiro Teor
PODER JUDICIÁRIO
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DA BAHIA
Terceira Câmara Cível
Processo: APELAÇÃO CÍVEL n. 0501200-27.2017.8.05.0146
Órgão Julgador: Terceira Câmara Cível
APELANTE: J. M. A. C.
Advogado (s): CARLA EMANUELY CARDOSO DANTAS
APELADO: E. R. DE A.
Advogado (s):JOSE CICERO DE MELO
ACORDÃO
EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C ANULAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. ADOÇÃO À BRASILEIRA. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA COMPROVADA NOS AUTOS. REVELIA. VÍNCULO AFETIVO. AUSÊNCIA DE ERRO OU VÍCIO DE CONSENTIMENTO. ANULAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO.
A ação negatória de paternidade, exige a comprovação da inexistência simultânea de vínculo biológico e afetivo, além da existência de erro, dolo ou coação no momento do registro civil.
A revelia, não gera presunção de veracidade dos fatos narrados em ações que tratam de direitos indisponíveis, como é o caso do estado de filiação. A adoção à brasileira, caracterizada pela vontade livre e consciente de registrar como filho uma criança, que não possui vínculo biológico, consolida a paternidade socioafetiva, que não pode ser desfeita sem prova cabal de erro, dolo ou coação.
Recurso de apelação provido para julgar improcedente a ação negatória de paternidade, mantendo-se o registro civil da apelante.
Vistos, relatados e discutidos estes autos de n. 0501200-27.2017.8.05.0146, em que figuram como apelante J. M. A. C. e como apelada E. R. DE A.
ACORDAM os magistrados integrantes da Terceira Câmara Cível do Estado da Bahia, em CONHECER e DAR PROVIMENTO ao recurso, nos termos do voto do relator.
DECISÃO PROCLAMADA
Conhecido e provido Por Unanimidade
Salvador, 2 de Setembro de 2024.
RELATÓRIO
J. M. A. C., ajuizou Ação Negatória de Paternidade c/c Anulação de Registro Civil, contra E. R. A. C., alegando, que nunca teve qualquer relação afetiva com a ré, que teria sido registrada como sua filha sem seu consentimento. O autor afirmou que, após sua separação de fato da genitora da ré, ocorrida em 1973, perdeu contato com a ex-esposa e, somente em 2016, tomou conhecimento, por intermédio de um sobrinho, que seu nome constava na certidão de nascimento da ré como pai biológico.
O autor pleiteou a retirada de seu nome do assento de nascimento da ré, datado de 08/03/1975 e lavrado em 05/10/1978, sob o argumento de que não existe qualquer laço biológico ou afetivo entre ele e a ré, não havendo consentido com o registro.
A ré foi citada, mas não apresentou contestação, razão pela qual, foi decretada sua revelia. No entanto, após a decretação da revelia, a ré constituiu advogado e apresentou documentos que indicam a existência de relação afetiva entre as partes, dentre os quais, se destacam uma certidão de batismo e registros fotográficos da cerimônia, nos quais o autor figura como pai da ré.
Em sentença, o juízo de primeiro grau, julgou procedente o pedido inicial, declarando a inexistência de paternidade biológica e socioafetiva, bem como, a anulação do registro civil da ré.
Irresignada, a ré interpôs recurso de apelação ID 56302044, sustentando, em síntese, que o autor, por livre e espontânea vontade, registrou a ré como sua filha biológica, participando, inclusive, de sua cerimônia de batismo, ocorrida três anos antes da lavratura do registro civil.
Alega, que houve convivência mútua entre pai e filha até os 12 anos de idade da apelante, sendo inadmissível a alegação de desconhecimento do registro, uma vez que o autor participou ativamente dos atos que consolidaram a paternidade.
Diz que, a paternidade socioafetiva se consolidou ao longo dos anos, sendo que a apelante viveu por mais de 40 anos acreditando ser filha biológica do autor.
Aduz, que a adoção à brasileira, reconhecida pela jurisprudência e doutrina como uma forma válida de constituição de paternidade, foi realizada de maneira voluntária e consciente pelo autor, não havendo qualquer erro, dolo ou coação que justifique a anulação do registro.
Por fim, expõe, que a decisão recorrida desconsiderou o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, ao não reconhecer o direito da apelante ao estado de filiação, que é um direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, conforme dispõe o art. 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Contrarrazões apresentadas pelo apelado, conforme ID 56302052.
Os autos foram distribuídos à Terceira Câmara Cível, cabendo-me, por sorteio, a relatoria, e, após examiná-los, lancei neles o presente relatório.
Solicito inclusão em pauta de julgamento pela secretaria da Câmara, ressaltando que CABE sustentação oral nos moldes do art. 187, I, do RITJBA.
Salvador/BA, datado e assinado eletronicamente.
Desa. Lícia Pinto Fragoso Modesto
Relatora
VOTO
O recurso de Apelação é próprio e tempestivo. Preenchidos os demais requisitos necessários à sua admissibilidade, dele conheço.
A presente apelação requer uma análise cuidadosa, dada a complexidade dos fatos e a relevância dos direitos em questão. A ação negatória de paternidade, que visa à desconstituição de um estado de filiação, exige, para sua procedência, a demonstração concomitante de três elementos essenciais: a ausência de vínculo biológico, a inexistência de vínculo socioafetivo e a presença de erro, dolo ou coação no ato do registro civil. Esses requisitos são pacificados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, conforme se observa no REsp nº 1.352.529/SP.
No que tange ao vínculo biológico, é fato incontroverso nos autos que o autor não é o pai biológico da apelante, conforme admitido por ambas as partes. Contudo, a ausência de vínculo biológico, por si só, não é suficiente para a procedência da ação negatória de paternidade. É imprescindível que se analise a existência ou não de vínculo socioafetivo e a eventual presença de vício de consentimento no ato do registro.
O primeiro ponto a ser analisado é o da revelia decretada nos autos. Embora a ré tenha sido revel, é importante ressaltar que a revelia, nos termos do art. 344 do CPC, não gera efeitos em ações que envolvem direitos indisponíveis, como é o caso da paternidade. O estado de filiação é um direito personalíssimo e indisponível, sendo incabível a presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor apenas pela ausência de contestação da parte ré.
Sobre a paternidade socioafetiva, o ordenamento jurídico brasileiro, especialmente após a Constituição Federal de 1988, passou a reconhecer o valor jurídico do vínculo afetivo na constituição da filiação. A igualdade entre filhos biológicos, adotivos e socioafetivos é garantida pelo art. 227, § 6º, da Constituição, que proíbe qualquer designação discriminatória entre eles. O Código Civil, em seu art. 1.593, também reforça esse entendimento, ao definir que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
Neste sentido, colaciono jurisprudência:
APELAÇÃO – NEGATÓRIA DE PATERNIDADE – AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO – IRRELEVÂNCIA – AUTOR QUE DEIXOU DE PROVAR VÍCIO NA MANIFESTAÇÃO DE VONTADE NO ATO DO REGISTRO – ÔNUS QUE LHE COMPETIA – ART. 373, I, CPC E ART. 1.604 C.C. – REGISTRO ESPONTÂNEO DA CRIANÇA – CONSTRUÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA – DIREITO INDISPONÍVEL – SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA – NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO.
(TJ-SP - AC: 10141399720188260554 SP 1014139-97.2018.8.26.0554, Relator: Alexandre Coelho, Data de Julgamento: 28/01/2021, 8ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 28/01/2021)
No caso em análise, a apelante apresentou documentos que comprovam a existência de uma relação afetiva com o autor, como a certidão de batismo (ID 56302021) e fotografias que registram a presença do autor na cerimônia, ocorrida em 1975 (ID 56302023). Tais elementos indicam que o autor, por vontade própria, assumiu a paternidade da apelante, participando de atos que foram além do mero registro civil. Esse comportamento evidencia uma intenção clara de constituir um vínculo de paternidade, que, nos termos da doutrina e jurisprudência, caracteriza a paternidade socioafetiva.
A "adoção à brasileira", prática na qual uma pessoa registra como seu filho biológico uma criança com a qual não possui vínculo consanguíneo, é reconhecida pela doutrina como um ato voluntário e irrevogável, salvo em casos de erro, dolo ou coação. A jurisprudência do STJ, no julgamento do REsp 878.941/DF, enfatiza que o reconhecimento voluntário de paternidade, mesmo que sem vínculo biológico, é irrevogável, a menos que se prove a existência de erro, dolo ou coação. No presente caso, não há qualquer indício de que o autor tenha sido induzido a erro ou coagido a registrar a apelante como sua filha. Pelo contrário, a participação ativa em eventos familiares, como o batismo, reforça a voluntariedade do ato.
Além disso, a jurisprudência tem entendido que a ausência de convivência contínua, após a separação dos pais, não desconstitui o vínculo socioafetivo previamente estabelecido. O STJ, no REsp nº 1.611.204/DF, ressaltou que a paternidade socioafetiva se sobrepõe à biológica quando há demonstração de que o vínculo afetivo foi consolidado, independentemente da convivência diária. No caso concreto, o fato de a apelante ter vivido acreditando ser filha biológica do autor por mais de 40 anos reforça a existência desse vínculo, que não pode ser ignorado por meras divergências familiares.
Neste sentido:
DIREITO DE FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE E MATERNIDADE AJUIZADA PELA FILHA. OCORRÊNCIA DA CHAMADA "ADOÇÃO À BRASILEIRA". ROMPIMENTO DOS VÍNCULOS CIVIS DECORRENTES DA FILIAÇÃO BIOLÓGICA. NÃO OCORRÊNCIA. PATERNIDADE E MATERNIDADE RECONHECIDOS.
1. A tese segundo a qual a paternidade socioafetiva sempre prevalece sobre a biológica deve ser analisada com bastante ponderação, e depende sempre do exame do caso concreto. É que, em diversos precedentes desta Corte, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica foi proclamada em um contexto de ação negatória de paternidade ajuizada pelo pai registral (ou por terceiros), situação bem diversa da que ocorre quando o filho registral é quem busca sua paternidade biológica, sobretudo no cenário da chamada "adoção à brasileira".
2. De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em detrimento da socioafetiva. No caso de ser o filho - o maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo - quem vindica estado contrário ao que consta no registro civil, socorre-lhe a existência de "erro ou falsidade" (art. 1.604 do CC/02) para os quais não contribuiu. Afastar a possibilidade de o filho pleitear o reconhecimento da paternidade biológica, no caso de "adoção à brasileira", significa impor-lhe que se conforme com essa situação criada à sua revelia e à margem da lei.
3. A paternidade biológica gera, necessariamente, uma responsabilidade não evanescente e que não se desfaz com a prática ilícita da chamada "adoção à brasileira", independentemente da nobreza dos desígnios que a motivaram. E, do mesmo modo, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos da filha resultantes da filiação biológica, não podendo, no caso, haver equiparação entre a adoção regular e a chamada "adoção à brasileira".
4. Recurso especial provido para julgar procedente o pedido deduzido pela autora relativamente ao reconhecimento da paternidade e maternidade, com todos os consectários legais, determinando-se também a anulação do registro de nascimento para que figurem os réus como pais da requerente.
(STJ - REsp: 1167993 RS 2009/0220972-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 18/12/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2013)
AÇÃO DE ALIMENTOS. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. AUSÊNCIA DE VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE NA CERTIDÃO DE NASCIMENTO. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO. PROVA INSUFICIENTE PARA ROMPER O RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE. PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE. APELO DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.
- Da leitura dos autos, percebe-se que há certidão de nascimento onde consta o reconhecimento de paternidade dos apelantes em face do apelado, o que releva, de sobremaneira, a sua condição de pais. Sabe-se que ante a identificação do registro de paternidade, tal reconhecimento somente poderá ser cindido com prova inequívoca da ocorrência de vício de vontade no ato de reconhecimento e, por consequência, resultar na exoneração liminar da pensão alimentícia.
- Portanto, o resultado negativo do DNA não tem o condão de eliminar à prima face a paternidade, haja vista que com o princípio da afetividade vigente atualmente no direito brasileiro os laços socioafetivos passam a ganhar contornos mais evidentes.
- No conflito entre a verdade biológica e a verdade socioafetiva, deve esta prevalecer.
(Classe: Apelação, Número do Processo: 0016553-23.2007.8.05.0274, Relator (a): Gardênias Pereira Duarte, Quarta Câmara Cível, Publicado em: 16/12/2015)
(TJ-BA - APL: 00165532320078050274, Relator: Gardenia Pereira Duarte, Quarta Câmara Cível, Data de Publicação: 16/12/2015)
A doutrina também corrobora essa posição, ao enfatizar que a paternidade socioafetiva é um laço construído e consolidado pelo afeto e pela convivência, que não pode ser desfeito apenas pelo rompimento da relação conjugal. Maria Helena Diniz, em sua obra "Curso de Direito Civil Brasileiro", afirma que "o estado de filiação é um direito que decorre da vontade e do afeto entre os sujeitos, e sua constituição não pode ser desfeita sem uma justificativa plausível que atenda ao melhor interesse do filho".
No tocante à alegação do autor de desconhecimento do registro de nascimento, cumpre destacar que a simples ignorância do ato não configura erro substancial. O erro, para justificar a anulação de um registro civil, deve ser essencial e ter influenciado diretamente na manifestação de vontade. No presente caso, o autor participou ativamente de atos que reforçaram o vínculo paterno-filial, como o batismo da apelante, o que afasta a alegação de desconhecimento ou erro no momento do registro.
Ademais, o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no art. 1º, III, da Constituição Federal, impõe que o estado de filiação seja protegido e respeitado. A desconstituição de um estado de filiação, sem prova cabal de erro, dolo ou coação, violaria esse princípio, ao submeter a apelante a uma situação de insegurança jurídica e emocional. A jurisprudência do STF também reconhece a importância da proteção ao estado de filiação como expressão da dignidade humana, conforme decidido no RE 898.060/MG.
Por fim, a manutenção do registro civil da apelante é medida que se impõe para garantir a estabilidade das relações familiares e o respeito aos direitos fundamentais. A jurisprudência tem sido firme no sentido de que, uma vez consolidado o vínculo socioafetivo, não se pode simplesmente desconstituí-lo com base em alegações frágeis e desprovidas de prova robusta. O STJ, no julgamento do REsp nº 1.348.718/SP, reafirmou que "o reconhecimento voluntário de paternidade não pode ser desfeito sem prova cabal de erro, dolo ou coação, em respeito ao princípio da segurança jurídica e à dignidade da pessoa humana".
Diante de todo o exposto, conclui-se que a sentença de primeiro grau desconsiderou os elementos probatórios, que evidenciam a existência de paternidade socioafetiva entre o autor e a apelante, bem como, a ausência de erro, dolo ou coação no ato do registro. Assim, a decisão recorrida, deve ser reformada para garantir o respeito aos direitos da apelante, especialmente ao seu direito de filiação, reconhecido constitucionalmente.
Ante o exposto, DOU PROVIMENTO ao recurso de apelação para reformar a sentença de primeiro grau e julgar improcedente a Ação Negatória de Paternidade c/c Anulação de Registro Civil, mantendo-se o registro civil da apelante como está.
É o voto.
Salvador/BA, datado e assinado eletronicamente.
Desa. Lícia Pinto Fragoso Modesto
Relatora