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DIREITO DE FAMÍLIA - DIREITO PROCESSUAL CIVIL - APELAÇÃO - AÇÃO DE GUARDA - ATOS DE AGRESSÃO PRATICADOS PELA GENITORA - PROBABILIDADE DE RISCO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA OU FAMILIAR - PARTICULARIDADES DO CASO - RELAÇÃO CONFLITUOSA ENTRE OS GENITORES - GUARDA UNILATERAL EM FAVOR DO PAI - ATENDIMENTO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA - RECURSO PROVIDO.
- O artigo 227 da Constituição Federal consagra o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
- Embora a guarda compartilhada seja a regra geral prevista na legislação, a guarda unilateral pode e deve ser fixada em situações em que houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar, nos moldes do que dispõe o artigo 1.584, parágrafo 2º, do Código Civil, e em conformidade com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto no artigo 227 da Constituição Federal, assim como no disposto no artigo 1.584, inciso II, e no artigo 1.586, ambos do Código Civil. Ademais, a guarda unilateral também se mostra recomendável quando a relação entre os genitores é extremamente conflituosa, o que também ocorre no presente caso.
APELAÇÃO CÍVEL Nº 1.0000.23.039300-1/003
- COMARCA DE IBIRITÉ
- APELANTE (S): N.J.S.
- APELADO (A)(S): E.S.O.
A C Ó R D Ã O
(SEGREDO DE JUSTIÇA)
Vistos etc., acorda, em Turma, a 4ª Câmara Cível Especializada do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, na conformidade da ata dos julgamentos, em DAR PROVIMENTO À APELAÇÃO.
DES. MOREIRA DINIZ
RELATOR
Cuida-se de apelação aviada por N. J. da S. contra sentença da MM. Juíza da 1ª Vara Criminal, da Infância e da Juventude e de Cartas Precatórias Criminais da comarca de Ibirité, que julgou parcialmente procedente o "pedido de tutela de urgência cautelar antecedente de busca e apreensão" promovido contra E. dos S. de O, em relação à menor M. L. dos S. S.
A sentença concedeu "a guarda compartilhada da infante M. L. dos S. S. aos genitores N. J. da S. e E. dos S. de O, fixando a moradia da menor junto à residência materna", e estabeleceu que "o pai poderá exercer seu direito de visitas aos finais de semana alternados, podendo retirá-la nos sábados às 09 horas e devolvê-la nos domingos às 17:00 horas".
Ante a sucumbência recíproca, as partes foram condenadas ao pagamento de honorários advocatícios, no valor de R$1.500,00; suspensa a exigibilidade de tal verba, ante a gratuidade de justiça.
O apelante alega que "existiam nos autos fotos, vídeos, confissão da própria genitora em documentos colhidos a exemplo ID 9638100124 dentre outros documentos, como também confissão da genitora em audiência de que já agrediu sua filha M. L, trecho do depoimento da genitora (https://midias.pje.jus.br/midias/web/50123030420228130114) (trecho:27mn a 29 minutos da audiência), desta forma não há que se falar que são apenas indícios, e mesmo se fossem apenas indícios não a menor ser colocada a prova, trata-se de uma criança que precisa ter seus direitos resguardados"; que "a criança atualmente possui 11 (onze) anos de idade, mas viveu mais tempo de sua vida com terceiros Sr. D. e Â, sob autorização unilateral da genitora, que a propósito também prestaram depoimento e relataram as situações de maus tratos, bem como relataram as vezes que recorreram a órgãos públicos em busca de proteção da criança, mas não tiveram êxito"; que "a criança não pode voltar aos cuidados da sua genitora simplesmente pelos riscos de que as agressões físicas e emocionais voltem a acontecer"; que "não pode a criança ser forçada a retornar ao lar agressor, sabe-se que é direito dos genitores o convívio com os filhos, mas o objetivo desta ação é a defesa da criança, não direito do pai, tão menos o direito da mãe"; que "desde março do ano de 2023, a criança está sob a guarda do pai que está se esforçando para cuidar de sua filha como ela merece com amor e dignidade"; que "durante o horário de trabalho do genitor a criança fica sob cuidados da Sra. Â, a mesma que criou a menor entre seus 09 (nove) meses aos 6 (seis) anos de vida"; que "a criança tem a Sra. Â. e seu esposo Sr. D. como 'pai e mãe' em razão do longo período de convivência"; que "a criança está com o genitor há mais de um ano, e fato incontroverso nos autos de que menor está sendo bem cuidada, não há qualquer alegação da genitora de que o genitor possa causar mau a sua própria filha"; que "deve-se definir a guarda com primordial atenção aos interesses da criança, o que no presente caso ficou evidenciado que a guarda seja unilateral ao genitor por ser o único dentre ele e a genitora que não causa danos físicos e emocionais a menor"; que "deve o Poder Judiciário trabalhar no sentido de estimular e incentivar o vínculo de pais e filhos e não o oposto"; que "em todas as questões relativas a menores, o melhor interesse da criança deve ser o critério norteador de toda e qualquer decisão"; que "o melhor interesse da menor hoje, é que o genitor assume seu papel, na linha de frente, como a sociedade e os poderes estatais esperam de um pai"; que "há mais de um ano a menor conseguiu ter alegria que toda criança merece, tornando incontroverso o quanto a mudança de um lar com agressões físicas e emocionais para um repleto de amor e carinho fez bem a criança"; que "a criança passou a ter todo apoio físico, desde acompanhamento médico no tratamento dos dentes, como emocional com acampamento emocional com tratamento com psicólogo"; e que "se os pais não possuem uma relação saudável com os filhos, não terão condições de conduzir uma guarda compartilhada". Pugna pelo provimento do recurso, para que a guarda unilateral da menor seja concedida ao genitor.
Recurso respondido (documento 199).
Há parecer ministerial (documento 211), pelo desprovimento do recurso.
De início, registro que, não obstante o nome atribuído à presente ação, trata-se, na verdade, de ação de guarda, conforme se extrai da fundamentação e do pedido postos na inicial.
Veja-se, aliás, que o autor, na inicial, requereu a concessão da guarda provisória da menor M. L. dos S. S, e, ao final, o deferimento da guarda definitiva em seu favor.
No mais, observo que o caso envolve questão extremamente delicada, pois há relato, na inicial, de que a criança estaria em situação de risco, sendo vítima de maus tratos, incluindo violência física e moral, por parte de sua genitora.
Na sentença, a Juíza rejeitou as alegações postas na inicial, e determinou a guarda compartilhada da menor, estabelecendo como lar referencial a residência materna.
O apelante, nas razões do recurso, sustenta que as agressões praticadas pela genitora foram confirmadas no curso do processo, que a menor está sendo bem cuidada desde a concessão da guarda provisória ao pai, e que a própria criança manifesta sua vontade de permanecer com este.
O artigo 227 da Constituição Federal consagra o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e prevê que é dever da família, da sociedade e do Estado colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente determina que, para a preservação dos sempre superiores interesses dos menores, a cautela deve ser extrema. Tal premissa pode ser extraída, por exemplo, do artigo 4º, parágrafo único, alínea a, e do artigo 100, parágrafo único, incisos IV e VI, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
No caso, o fato narrado na inicial é de extrema gravidade, e da análise do conjunto probatório, não vejo como manter a sentença.
Em primeiro lugar, deve-se considerar a situação atípica vivenciada pela menor, que, conforme relatado no processo, foi entregue pela própria genitora a terceiros quando tinha apenas nove meses, e lá permaneceu até completar seis anos de idade.
Após retornar para a residência materna, houve a prática de agressões contra a menor, as quais foram admitidas pela própria apelada, que afirmou que agrediu a menor como forma de corrigir determinados comportamentos, deixando marcas em seu corpo, como se vê nas fotografias juntadas com a inicial (documento 07).
Veja-se que no estudo técnico constante do documento de ordem 17 a própria genitora afirmou que "bateu em M. L. com um pedaço de mangueira", sendo ainda indicadas denúncias formuladas pelo casal que estaria cuidando da menor em determinado período.
Ademais, também foi apresentado vídeo em que a própria menor denuncia a situação (documento 07).
A apelada, em sede de contestação, reconheceu novamente que agrediu a filha com força excessiva para corrigi-la, mas tentou justificar sua atitude dizendo que isso ocorreu durante a pandemia, quando as pessoas estavam confinadas, e que se tratou de um dia atípico, o que não justificaria a perda da guarda.
Todavia, não foi produzida prova, no curso da ação, que justificasse o deferimento da guarda compartilhada da menor, e o estabelecimento da residência materna como lar referencial da infante.
Na verdade, o que se conclui da análise dos elementos probatórios do processo é que a integridade física, psicológica e emocional da criança não estará preservada junto à mãe, e que os genitores não têm condições de exercer, de forma compartilhada, a guarda da infante.
Sobre os relatórios do Conselho Tutelar e da Assistência Social apresentados no processo, cumpre destacar que estes não trazem explicação sobre as fotografias com lesões na menor e sobre a atitude da genitora de empregar força física contra a filha, como ela própria reconheceu.
Cumpre ressaltar, ainda, que no julgamento dos dois agravos de instrumento aviados pelo genitor, de minha Relatoria, destaquei que a questão era grave, e que não havia justificativa para que a menor permanecesse com a mãe, tendo em vista a situação de risco indicada pelo contexto probatório.
Além disso, após a interposição do agravo de instrumento de final "002", não foram produzidas provas suficientes para assegurar que a manutenção da menor com a mãe seria a medida mais adequada, e que estaria em conformidade com o princípio do melhor interesse da criança.
Embora tenha sido mencionado no estudo técnico constante do documento 161, elaborado em setembro de 2023, que a genitora estaria "exercendo seu papel de mãe responsável, visto que nenhum dos filhos que estão morando com E, estão com seus direitos violados", isso não significa que a menor M. L. dos S. S. seria bem cuidada no lar materno, tendo em vista o histórico de agressões e as manifestações da própria infante no curso do processo, que afirmou em diversas ocasiões que não queria retornar para a casa de sua genitora.
Ademais, há também um relatório do Conselho Tutelar (documento 165), datado de setembro de 2023, em que consta afirmação da própria menor, à época com dez anos de idade, no sentido de que "está 'com medo de voltar a morar com a mãe'".
Tais fatos não podem ser ignorados, sendo certo que uma criança em tal faixa etária já é capaz de ter discernimento suficiente para manifestar sua vontade, ainda mais considerando o histórico de agressão vivenciado pela menor, e a situação em que se encontra.
Assim, entendo que deve ser concedida ao genitor a guarda unilateral da menor, que detém melhores condições de se responsabilizar pela criança, assegurando a efetivação de seus direitos.
Nesse ponto, registro que não há como manter a guarda na modalidade compartilhada, como determinado na sentença.
Isso porque, de acordo com o artigo 1.584, parágrafo 2º, do Código Civil, "quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar".
Nesse contexto, como há elementos concretos que indicam a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar, a guarda compartilhada não deve ser aplicada.
Ainda que assim não fosse, e que se considerasse que as agressões praticadas pela genitora seriam ato isolado, o fato é que não há consenso entre os genitores da menor, restando evidenciado o contexto conflituoso existente entre eles, como já destacado.
E é evidente que a guarda unilateral pode e deve ser fixada em situações em que o compartilhamento não se mostrar recomendável e for capaz de comprometer o desenvolvimento sadio do filho.
Essa justificativa para a fixação da guarda unilateral encontra amparo no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, previsto no artigo 227 da Constituição Federal, assim como no disposto no artigo 1.584, inciso II, do Código Civil, que prevê a fixação da guarda em atenção a necessidades específicas do filho, e no artigo 1.586, também do Código Civil, que prevê que, havendo motivos graves, poderá o juiz, a bem dos filhos, regular de maneira diversa da estabelecida nos artigos antecedentes a situação deles para com os pais.
Assim, considerando a existência de conflitos e a falta de diálogo e convivência civilizada entre os genitores da menor, mostra-se impossível definir a guarda na modalidade compartilhada, já que esta exige compartilhamento de responsabilidades e de decisões.
Para que o melhor interesse da criança seja atendido, repito, o exercício da guarda compartilhada exige diálogo e entendimento entre os pais, o que não existe no caso.
Dessa forma, a melhor solução para o presente caso consiste no deferimento da guarda unilateral ao genitor.
Cumpre ressaltar, nesse ponto, que, em diversas ocasiões, a própria menor manifestou sua vontade nesse sentido.
Por sua vez, destaco que o fato de a menor permanecer durante a semana com terceiros, A. e D, os quais dela cuidaram dos 9 meses até os 6 anos de idade, não interfere na definição da guarda.
Afinal, a guarda não está sendo concedida a terceiros, mas ao genitor da menor, que será responsável pela criança, em todos os seus aspectos.
Registro, ainda, que o fato de o genitor ter reconhecido, nos últimos estudos sociais elaborados no processo, que a menor fica sob os cuidados de A. e D, isso não afasta a gravidade da conduta imputada à genitora e a vontade exposta pela própria menor, devendo ser também levado em consideração o fato de que, no período em que a infante esteve sob a guarda da mãe, ela também era deixada sob os cuidados do referido casal.
Ademais, no estudo social constante do documento de ordem 72, após o deferimento da guarda provisória ao genitor, a própria menor afirmou que: "está sendo bom morar na casa do pai N", e que "disse gostar da A. e D. e que frequenta a casa deles desde pequena".
Também no estudo social datado de novembro de 2023 (documento 173), a Assistente Social afirmou que a menor "afirmou que estava com medo de voltar para casa da E", e que "falou que quando morava com E, apanhava dos irmãos e que ela não chamava atenção deles".
Em resumo, todos os elementos probatórios dos autos, inclusive os laudos técnicos, elaborados por profissionais dotados de conhecimento técnico e imparcial, justificam a impossibilidade de concessão da guarda para a genitora, impondo-se a concessão da guarda unilateral para o pai.
Ante o exposto, dou provimento à apelação, para conceder a guarda unilateral da menor ao genitor.
Custas, pela apelada; suspensa a exigibilidade, ante o deferimento da gratuidade de justiça.
DESA. ANA PAULA CAIXETA - De acordo com o Relator.
DESA. ALICE BIRCHAL - De acordo com o Relator.
Acompanho o judicioso voto do i. Relator, Des. Moreira Diniz, consignando que, com efeito, a manifestação da criança, em relação a de seus temores pela convivência com mãe, não pode ser ignorada, haja vista a gravidade dos fatos narrados nos autos.
SÚMULA: DERAM PROVIMENTO