#1 - Maternidade Socioafetiva. Post Mortem. Laços Familiares.

Data de publicação: 10/03/2025

Tribunal: TJ-PA

Relator: Paulo Pereira da Silva Evangelista

Chamada

(...) “Esta decisão representa importante avanço na proteção jurídica dos laços familiares construídos pelo afeto, reconhecendo que a maternidade transcende os vínculos biológicos e pode ser estabelecida pela dedicação, cuidado e amor constantes ao longo da vida.” (...)

Ementa na Íntegra

TJPA • 0825049-81.2021.8.14.0301 • Tribunal de Justiça do Pará PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL

Jurisprudência na Íntegra

Inteiro Teor 

 

Tribunal de Justiça do Estado do Pará - 1o Grau 

PJe - Processo Judicial Eletrônico 

 

Número: 0825049-81.2021.8.14.0301 

Classe: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL 

Órgão julgador: 3a Vara de Família de Belém 

Última distribuição: 23/04/2021 

Valor da causa: R$ 1.000,00 

Assuntos: Investigação de Maternidade 

Nível de Sigilo: 1 (Segredo de Justiça) 

Justiça gratuita? SIM 

Pedido de liminar ou antecipação de tutela? SIM 

 

Partes: 

K. C. M. C. (REQUERENTE) 

A. M. C. (REQUERIDO) 

D. M. C. (REQUERIDO) 

O. DO V. C. F. (REQUERIDO) 

M. S. C. DE S. (REQUERIDO) 

E. M. C. (REQUERIDO) 

D. M. C. (REQUERIDO)  

Advogados: 

FERNANDO FLAVIO LOPES SILVA (ADVOGADO) 

PEDRO MAUES FIDALGO (ADVOGADO) 

INALDO LEAO FERREIRA (ADVOGADO) 

WAGNER BARBOSA MELO (ADVOGADO) 

PAULO VICTOR VIEIRA PANTOJA (ADVOGADO) 

Outros Participantes:  

MINISTERIO PUBLICO DO ESTADO DO PARÁ 

(AUTORIDADE) 

  

AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE SOCIOAFETIVA POST MORTEM 

Requerente: K. C. M. C. 

Requeridos: A. M. C., D. M. C., O. DO V. C. F., M. S. C. DE S., E. M. C. e D. M. C. 

  

SENTENÇA 

Trata-se de ação declaratória de filiação socioafetiva post mortem ajuizada por K. C. M. C. em face de A. M. C., D. M. C., O. do V. C. F., M. S. C. de S., E. M. C. e D. M. C., todos qualificados. 

  

A parte autora sustenta que, desde o nascimento, foi criada por A. M. C. como se filha fosse recebendo dela suporte financeiro, emocional e social, a ponto de toda a comunidade e familiares reconhecerem a relação materno-filial. 

  

Narra que A. a educou, sustentou economicamente e a acolheu em momentos difíceis, sendo que mesmo após atingir a maioridade, manteve vínculo de dependência e afeto. 

  

Requer o reconhecimento judicial da maternidade socioafetiva. 

Juntou documentos. 

  

Os requeridos E. M. C., A. M. C., O. do V. C. F., M. S. C. de S. e D. M. C. contestaram o pedido (ids 32643775 e 35372917), alegando que A. nunca registrou K. como filha e que sempre foi apenas sua tia, tratando-a como fazia com outros sobrinhos. Argumentam que o pedido da autora tem motivação exclusivamente patrimonial. 

  

Apresentaram documentos. 

  

Decretada a revelia da requerida D. M. C. e determinada a especificação de provas (id 112885881). 

Saneamento e organização do processo (id 121240530).  

Audiência de instrução e julgamento (id 129631551). 

Memoriais das partes (ids 130159154 e 131151519). 

 

É o breve relatório. Decido. 

  

Com efeito, consagrando a garantia constitucional de proteção à família, o art. 1.593 do Código Civil, disciplina o reconhecimento da relação paternal/maternal socioafetiva, nos seguintes termos: “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem. 

  

A multiparentalidade (coexistência da paternidade socioafetiva com a biológica) é reconhecida como legítima pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do mérito do Tema no 622, com repercussão geral e força vinculante. 

  

No recurso especial no 1.500.999/RJ, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade do reconhecimento da paternidade socioafetiva, por aplicação extensiva do art. 42, § 6o do ECA. 

  

A maternidade socioafetiva com a biológica contempla o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6o da CF). 

  

A filiação socioafetiva pressupõe a existência de dois elementos caracterizadores:  

a) a vontade clara e inequívoca dos pretensos pais socioafetivos, de serem reconhecidos, voluntariamente, como tais;  

b) a configuração da denominada "posse de estado de filho", compreendida como sendo o tratamento despendido pelos pais (afeto, segurança, dependência econômica) e ser a situação fática de notório conhecimento no meio social. 

  

No caso em comento, as fotografias retratam momentos significativos da convivência entre A. e K., evidenciando afeto e proximidade maternal. As imagens mostram a autora em eventos familiares e sociais ao lado da falecida (id 25916792 - Pág. 1/10). 

  

Os depoimentos da autora e testemunhas que demonstram a posse do estado de filha:  

Depoimento autora K. C. M. C.: morou com A. desde o nascimento até os 8 anos, e mesmo após A. se casar e mudar de endereço, continuou a passar mais tempo na casa de A. do que na casa de seus avós. Durante a adolescência, após uma experiência negativa morando com sua mãe biológica, voltou a morar com A.; sempre considerou A. como sua mãe, e o esposo de A., R., como seu pai. Eles a ensinaram a andar de bicicleta e patins, e sempre estiveram presentes em suas festas escolares; A. e R. organizaram a festa de 15 anos de C., pois sua mãe biológica não demonstrava interesse; Mesmo após se mudar para o Rio de Janeiro e posteriormente retornar grávida, A. a acolheu e ajudou a criar seu filho como avó. A. oferecia apoio financeiro, emocional e psicológico; auxiliava A. em questões tecnológicas e de saúde, como a compra de remédios e o contato com veterinários. Quando A. adoeceu e precisou ser hospitalizada, foi quem providenciou a internação e manteve contato constante com o hospital; A. se referia à casa de C. como "sua casa" e expressava o desejo de vender seus bens para comprar uma casa para C. e seus netos morarem juntos. C. chamava A. de mãe; ela a via como mãe, e A. desempenhou um papel materno em sua vida; 

 

Depoimento da testemunha D. M. S.: conhecia ambas desde que C. era pequena e sempre ouviu ambas dizerem que eram mãe e filha; 

Depoimento da testemunha C. M. S.: sempre pensou que C. era filha de A.; todos tinham a mesma impressão e tratavam C. como se fosse filha de A.; soube que C. não era filha de A. depois que ela faleceu; A. sempre dizia que C. era sua filha; A. passava as coisas para C. resolver; 

Depoimento da testemunha E. P. Z.: menciona que A. se comportava como uma mãe para C., protegendo-a; observou que a dedicação e o tratamento especial de A. eram direcionados principalmente a C., diferentemente de outros sobrinhos; observou que, devido à agenda agitada da mãe de C., A. desempenhava um papel crucial nos cuidados e na vida de C., inclusive levando-a para Salvaterra; o cuidado de A. se estendeu aos filhos de C.; 

  

Por outro lado, os depoimentos das requeridas não fragilizam o acerco probatório comprovando o vínculo socioafetivo entre a requerente e falecida: 

Depoimento requerida D. M. C.: alega que A. nunca teve filhos, mas era próxima de todos os seus sobrinhos. Ela menciona que A. ajudou a criar três sobrinhos, incluindo a sua filha; se A. quisesse deixar algo para alguém, isso nunca aconteceu oficialmente; C. foi criada por seus pais e sempre teve uma mãe que podia provê-la; C. não morou com A.; A. não permitiu que nenhum de seus sobrinhos morasse com ela permanentemente; reconhece que A. ajudou sua filha; não sabe confirmar se A. enviou mensagens à C. chamando-a de "filha"; 

Depoimento da requerida E. M. C.: A. ajudava K., inclusive escondendo-a em Belém devido aos golpes que ela aplicava no Rio de Janeiro e em Belém. A irmã falecida se sentia sensibilizada pela falta de apoio da mãe de K. (D.) devido aos atos ilícitos de C.; A. se preocupava com a possibilidade de K. ser presa devido aos seus crimes de estelionato; A. auxiliava K., inclusive dando coisas para os filhos dela; nega que A. tenha criado K. ou a considerado como filha, afirmando que a mãe biológica de K., D. M. C., foi quem a criou; A falecida auxiliava K. por se compadecer com a situação dela, mesmo não aprovando as atitudes erradas que ela cometia; 

  

Destarte, imperativo o reconhecimento da filiação socioafetiva existente entre a autora e a falecida. 

  

Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE o pedido formulado na exordial, e declaro que K. C. M. C. é filha socioafetiva e por conseguinte, portador da condição de herdeira de A. M. C. 

  

Relativamente ao pedido de nomeação da autora como inventariante dos bens deixados pela falecida A. M. C., tal pedido não se insere na competência desta Vara de Família, uma vez que a matéria relacionada à inventariança deve ser discutida em sede própria, ou seja, no âmbito de um processo de inventário a ser instaurado junto à Vara competente para a matéria sucessória. 

 

Assim, caso a requerente deseje exercer a função de inventariante, deverá ajuizar ação de inventário ou habilitar-se em eventual processo já existente, onde poderá pleitear sua nomeação, nos termos dos artigos 616 e seguintes do Código de Processo Civil. Extingo o feito com resolução do mérito, nos termos do art. 487, inciso I, do CPC. 

  

Condeno os requeridos ao pagamento de custas e honorários advocatícios em 10% sobre o valor da causa. 

Suspendo a exigibilidade, ante a gratuidade da justiça que ora defiro. 

Interposto recurso de apelação pela parte, intime-se a parte recorrida para apresentar contrarrazões no prazo legal de 15 (quinze) dias, conforme o art. 1.010, § 1o, do CPC. 

  

Se apresentada apelação adesiva pela parte recorrida (art. 997, §§ do CPC), intime-se a parte contrária para contrarrazões no prazo de 15 (quinze) dias, nos termos do art. 1.010, § 2o, do CPC. 

  

Caso as contrarrazões do recurso principal ou do adesivo ventilem matérias elencadas no art. 1.009, § 1o, do CPC, intime-se o recorrente para se manifestar sobre elas no prazo de 15 (quinze) dias, conforme o art. 1.009, § 2o, do NCPC. 

  

Após as formalidades acima, encaminhem-se os autos ao E. TJPA (art. 1.009, § 3o, do CPC), com as homenagens de estilo, ressaltando-se que o juízo de admissibilidade do(s) recurso(s) será efetuado direta e integralmente pela Corte ad quem (art. 932 do CPC). 

 

Transitada em julgado, expeça-se mandado de averbação ao Cartório de Registro Civil competente para realizar a inclusão no assento de nascimento da promovente, do nome da falecida A. M. C. como sua mãe socioafetiva, sem exclusão da maternidade biológica, consubstanciando nítido caráter de multiparentalidade. Não haverá alteração no nome da requerente. 

   

Belém, data da assinatura eletrônica. 

  

Paulo Pereira da Silva Evangelista 

Juiz de Direito