Data de publicação: 27/02/2025
Tribunal: TJ-SP
Relator: Jorge Quadros
(...) “Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar-se a prática de crime de lesão corporal praticado, em tese, contra menor do sexo masculino, no âmbito das relações domésticas e familiares.” (...)
CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO – Inquérito Policial – Noticia de prática de crime de lesão corporal por genitor contra o filha, vítima menor de idade, do sexo masculino, no âmbito das relações domésticas e familiares – Distribuição inicial ao Juízo da 2ª Vara Criminal da Comarca de Guarulhos (suscitado) – Competência declinada, seguida de envio dos autos à Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher daquela Comarca (suscitante) – Lei 11.340/2006 que não modificou ou ampliou a competência material dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher, mas facultou aos órgãos estaduais a criação de varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente – Organização da Justiça que cabe aos estados.
(TJ-SP - Conflito de Jurisdição: 00311064320248260000 Guarulhos, Relator.: Jorge Quadros, Data de Julgamento: 29/08/2024, Câmara Especial, Data de Publicação: 29/08/2024)
Inteiro Teor
Registro: 2024.0000807435
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Conflito de Jurisdição nº 0031106-43.2024.8.26.0000, da Comarca de Guarulhos, em que é suscitante MM JUIZ DE DIREITO DA VARA DO JUIZADO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE GUARULHOS, é suscitado MM JUIZ DE DIREITO DA 2a VARA CRIMINAL DE GUARULHOS.
ACORDAM, em sessão permanente e virtual da Câmara Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: conheceram do conflito de jurisdição para DECLARAR a competência do Juízo suscitado, ou seja, da 2a Vara Criminal da Comarca de Guarulhos. V.U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão.
O julgamento teve a participação dos Desembargadores Nome (VICE PRESIDENTE) (Presidente) E Nome. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).
São Paulo, 29 de agosto de 2024.
Nome
Relator (a)
Assinatura Eletrônica
Conflito de Jurisdição 0031106-43.2024.8.26.0000
Segredo de Justiça: NÃO
Suscitante: Mm Juiz de Direito da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra A Mulher de Guarulhos
Suscitado: Mm Juiz de Direito da 2a Vara Criminal de Guarulhos
Interessados: Nome e Ministério Público do Estado de São Paulo
Comarca: Guarulhos - Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a
Órgão julgador: Câmara Especial
Voto 2.781
CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO - Inquérito Policial - Noticia de prática de crime de lesão corporal por genitor contra o filha, vítima menor de idade, do sexo masculino, no âmbito das relações domésticas e familiares - Distribuição inicial ao Juízo da 2a Vara Criminal da Comarca de Guarulhos (suscitado) - Competência declinada, seguida de envio dos autos à Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher daquela Comarca (suscitante) - Lei 11.340/2006 que não modificou ou ampliou a competência material dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e familiar contra a mulher, mas facultou aos órgãos estaduais a criação de varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente - Organização da Justiça que cabe aos estados - Art. 125 da CF - Inaplicabilidade da Lei 11.340/2006 ao caso - Nova redação, ademais, do art. 226, § 1º, ECA, dada pela Lei 14.344/22, que afastou a incidência da Lei 9.099/95 aos crimes cometidos contra criança e adolescente, independentemente da pena prevista - Norma que não diferencia crimes previstos ou não no ECA - Irretroatividade da lei penal que se adstringe aos aspectos de direito material desfavoráveis ao réu - Competência que, afeita ao direito processual penal, tem aplicação imediata - Precedentes desta Câmara Especial - Entendimento pessoal do relator ressalvado - Conflito conhecido, declarada a competência do Juízo da 2a Vara Criminal da Comarca de Guarulhos, suscitado.
Vistos.
Trata-se de conflito negativo de jurisdição suscitado pelo Juízo de Direito da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher diante do Juízo de Direito da 2a Vara Criminal, ambos da Comarca de Guarulhos, nos autos do inquérito policial 1505932-62.2024.8.26.0224, instaurado para apurar-se a prática de crime do artigo 129 do Código Penal - lesão corporal, praticado, em tese, por genitor contra o filho de 11 anos de idade, em contexto de violência doméstica.
O inquérito foi distribuído ao Juízo da 2a Vara Criminal da Comarca de Guarulhos (suscitado), que determinou a sua remessa à Vara do Juizado de Violência Doméstica local (fls. 22/25, autos de origem).
Ao receber os autos, o Juízo da Vara do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Guarulhos, acompanhando manifestação do Ministério Público (fls. 35/55), suscitou o presente conflito de jurisdição (fls. 57/59).
É o relatório.
O conflito negativo de jurisdição está configurado, pois ambos os Juízos declinaram da competência para julgar o mesmo fato, em tese, criminoso, nos termos do artigo 114, I, do Código de Processo Penal.
Primeiro, passo a expor meu entendimento pessoal, como ressalva, para depois consignar o voto.
Do meu ponto de vista, assiste razão ao Juízo suscitado.
O artigo 23 da Lei 13.431/2017 expressamente estabeleceu:
Art. 23. Os órgãos responsáveis pela organização judiciária poderão criar juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente.
Parágrafo único. Até a implementação do disposto no caput deste artigo, o julgamento e a execução das causas decorrentes das práticas de violência ficarão, preferencialmente, a cargo dos juizados ou varas especializadas em violência doméstica e temas afins. (Destaquei em negrito)
Note-se o caráter mandamental no parágrafo único em relação à faculdade prevista no caput.
Cuida-se de inquérito policial instaurado para apurar-se a prática de crime de lesão corporal praticado, em tese, contra menor do sexo masculino, no âmbito das relações domésticas e familiares.
O sexo masculino da vítima, portanto, não mais deve afastar a tramitação do feito junto à Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, a par da regra do artigo 14 da Lei 11.340/2006, que prevê a instalação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
A Súmula 114 do Tribunal de Justiça de São Paulo, publicada no Diário da Justiça Eletrônico de 12 de agosto de 2013, ou seja, quatro anos antes da Lei 13.431/2017, e que afastava a competência da vara especializada quando a vítima não fosse mulher, de certo modo fica superada nesse ponto.
Mesmo porque, em recentes julgados, o Colendo Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem entendido que:
"a) nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art. 23 da Lei 13.431/17, as ações penais que tratam de crimes praticados com violência contra a criança e o adolescente, distribuídas até a data da publicação do acórdão deste julgamento (inclusive), tramitarão nas varas às quais foram distribuídas originalmente ou após determinação definitiva do Tribunal local ou superior, sejam elas juizados/varas de violência doméstica, sejam varas criminais comuns;
b) nas comarcas em que não houver juizado ou vara especializada nos moldes do art. 23 da Lei 13.431/17, as ações penais que tratam de crimes praticados com violência contra a criança e o adolescente, distribuídas após a data da publicação do acórdão deste julgamento, deverão ser obrigatoriamente processadas nos juizados/varas de violência doméstica e, somente na ausência destas, nas varas criminais comuns" (HC 728.173/ RJ).
A ementa do Habeas Corpus 728.173/RJ, também julgado pelo STJ, deixa claro:
"RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. VÍTIMA DO SEXO MASCULINO. COMPETÊNCIA PARA JULGAR CRIMES EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA CRIANÇAS E ADOLESCENTES. ART. 23, CAPUT E PARÁGRAFO ÚNICO, DA LEI N. 13.431/17. CRIAÇÃO DE VARAS ESPECIALIZADAS. COMPETÊNCIA SUBSIDIÁRIA DOS JUIZADOS/VARAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. TRAMITAÇÃO EM VARA CRIMINAL COMUM APENAS NA AUSÊNCIA DA JURISDIÇÃO ESPECIALIZADA. QUESTÕES DE GÊNERO.
IRRELEVÂNCIA. VULNERABILIDADE DECORRENTE DA CONDIÇÃO DE PESSOA HUMANA EM DESENVOLVIMENTO. PROTEÇÃO INTEGRAL E ABSOLUTA PRIORIDADE. MUDANÇA DE ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL CONSOLIDADA NO JULGAMENTO DO HC N. 728.173/RJ E DO EARESP N. 2.099.532/RJ. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO.
1. A Terceira Seção desta Corte Superior, no julgamento conjunto do HC n. 728.173/RJ e do EAREsp n. 2.099.532/RJ, uniformizou a interpretação a ser conferida ao art. 23 da Lei n. 13.431/17, fixando a tese de que, após o advento desta norma, "nas comarcas em que não houver vara especializada em crimes contra a criança e o adolescente, compete à vara especializada em violência doméstica, onde houver, processar e julgar os casos envolvendo estupro de vulnerável cometido pelo pai (bem como pelo padrasto, companheiro, namorado ou similar) contra a filha (ou criança ou adolescente) no ambiente doméstico ou familiar".
2. O Legislador estabeleceu, no caput do artigo supracitado, como possibilidade aos órgãos responsáveis pela organização judiciária, a criação de varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Enquanto não instituídas as varas especializadas, o parágrafo único do mesmo dispositivo legal determinou que as causas decorrentes de práticas de violência contra crianças e adolescentes, independentemente de considerações acerca do sexo da vítima ou da motivação da violência, deveriam tramitar nos juizados ou varas especializados em violência doméstica.
3. A partir da entrada em vigor da Lei n. 13.431/17, as ações penais que apurem crimes envolvendo violência contra crianças e adolescentes devem tramitar nas varas especializadas previstas no caput do art. 23 e, caso elas ainda não tenham sido criadas, nos juizados ou varas especializadas em violência doméstica, conforme determina o parágrafo único do mesmo artigo. Somente nas comarcas em que não houver varas especializadas em violência contra crianças e adolescentes ou juizados/varas de violência doméstica, poderá a ação tramitar na vara criminal comum.
4. A interpretação que agora se propõe tem como objetivo, em primeiro lugar, evitar que os dispositivos da Lei n. 13.431/17 se transformem em letra morta, o que frustraria o objetivo legislativo de instituir um regime judicial protetivo especial para crianças e adolescentes vítimas de violências. De outra parte, também concretiza os princípios da proteção integral e da absoluta prioridade (art. 227 da Constituição Federal), bem como o compromisso internacional do Brasil em proteger crianças e adolescentes contra todas as formas de violência (art. 19 do Decreto n. 99.710/90), estabelecendo que a submissão destes à competência especializada decorre de sua vulnerabilidade enquanto pessoa humana em desenvolvimento, independentemente de considerações quanto ao sexo, motivação do crime, circunstâncias da violência ou outras questões similares.
5. Recurso especial desprovido (HC 728.173/RJ, Terceira Seção, Relator Ministro Nome, j em 26-10-2022)".
Diga-se de passagem, que o atual entendimento do STJ foi reiterado em recente decisão monocrática, proferida em 13.11.2023 no HC 860.047-SP, de relatoria do Ministro Nome, que analisou decisão discordante deste E. TJSP ao julgar caso análogo, referente a um processo em trâmite na Comarca de Guarulhos.
Concluindo, não se justifica mais discriminar as vítimas da violência doméstica em razão de gênero para o fim de estabelecer critério de fixação de competência, ainda mais quando se trata de criança e adolescente.
Sendo essencial para a delimitação de competência a situação de vulnerabilidade da vítima - isto sim, e não em si o sexo -, devem as crianças e os adolescentes do sexo masculino, por questão de equidade, receber a mesma proteção que a lei emprega para as crianças e adolescentes do sexo feminino, o que significa, no caso concreto, a remessa do processo para conhecimento da Vara Especializada da Violência Doméstica, enquanto não criados os juizados ou varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente .
Afinal de contas, o artigo 226, § 8º, da Constituição da Republica estabeleceu, sem nenhum tipo de distinção de gênero:
O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. (Destaquei em negrito)
Segundo, ressalvado o meu entendimento sobre o tema, a fim de preservar a segurança jurídica, voto de acordo com o entendimento e os fundamentos da maioria desta turma julgadora, expressos em caso análogo no qual meu voto foi vencido:
"CONFLITO NEGATIVO DE JURISDIÇÃO. Inquérito Policial instaurado para apuração da suposta prática do crime de estupro de vulnerável (artigo 217-A, do Código Penal). Distribuição ao MM. Juízo de Direito da 4a Vara Criminal da Comarca de Campinas. Redistribuição ao MM. Juízo de Direito da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de Campinas. Descabimento. Lei 13.431/2017 que não modificou ou ampliou a competência material dos Juizados ou Varas especializadas em Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, mas facultou aos órgãos estaduais a criação de Varas especializadas em crimes contra a criança e o adolescente. Ausência de obrigatoriedade. Organização da Justiça que cabe aos Estados. Inteligência do artigo 125 da Constituição Federal. Vítima do sexo masculino, apesar da ocorrência em razão da idade e no âmbito doméstico e familiar. Inaplicabilidade da Lei 11.340/2006 à hipótese. Nova redação, ademais, do artigo 226, § 1º, ECA, dada pela Lei nº 14.344/22, que afastou a incidência da Lei nº 9.099/95 para os crimes cometidos contra criança e adolescente, independentemente da pena prevista. Norma que não diferencia crimes previstos ou não no ECA. Irretroatividade da lei penal que se adstringe aos aspectos de direito material desfavoráveis ao réu. Competência, afeita ao direito processual penal, que tem aplicação imediata. Precedentes. Competência do MM. Juízo de Direito da 4a Vara Criminal da Comarca de Campinas, suscitado." (0024078-58.2023.8.26.0000; Relator Nome - Vice Presidente; julgado em 27/02/2024).
Diante do exposto, meu voto é por conhecer do conflito de jurisdição para DECLARAR a competência do Juízo suscitado, ou seja, da 2a Vara Criminal da Comarca de Guarulhos
Nome
Relator