Data de publicação: 24/02/2025
Tribunal: TJ-GO
Relator: JÉSSICA SANTOS ANGELO
(...) “Ressalta-se ainda que, embora a requerente D. seja irmã de V. e compartilhe o mesmo círculo familiar, R. fruiu de pouco contato com a genitora biológica durante o período de sua infância e adolescência, situação que persiste até hoje.” (...)
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA E DESCONTINUAÇÃO DA PARENTALIDADE BIOLÓGICA COM AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL.
(TJ-GO 6143230-34.2024.8.09.0162, Relator (a): JÉSSICA SANTOS ANGELO, Data de Julgamento: 20/02/2025, JUÍZO DA VARA DE FAMÍLIAS E SUCESSÕES DA COMARCA DE VALPARAÍSO DE GOIÁS/GO.)
Inteiro Teor
PODER JUDICIÁRIO
Tribunal de Justiça do Estado de Goiás
Autos nº. 6143230-34.2024.8.09.0162
Natureza: PROCESSO CÍVEL E DO TRABALHO
-> Processo de Conhecimento -> Procedimento de Conhecimento -> Procedimentos Especiais -> Procedimentos Especiais de Jurisdição Voluntária -> Homologação da Transação Extrajudicial
Requerente: R. C. S. C.
AO JUÍZO DA VARA DE FAMÍLIAS E SUCESSÕES DA COMARCA DE VALPARAÍSO DE GOIÁS/GO.
ACORDÃO
R. C. S. C., brasileira, solteira, desempregada, inscrita no CPF sob o n. **, residente e domiciliada na quadra 01, chácara 06, Conjunto Residencial Green Park II, Ypiranga, Valparaíso de Goiás/GO, CEP 72879-301, D. S. C., brasileira, solteira, auxiliar de serviços gerais, inscrita no CPF sob o n. **, residente e domiciliada na quadra 375, casa 10, Del Lago II, Itapoã, Brasília/DF, CEP 71593-600 e V. S. C., brasileira, casada, professora de dança oriental, inscrita no CPF sob o n. **, residente e domiciliada na Calle Ríu Castells 3, La Puebla de Vallbona, Valencia, Espanha, vêm, perante este juízo, por intermédio da DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO DE GOIÁS, apresentar:
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA E DESCONTINUAÇÃO DA PARENTALIDADE BIOLÓGICA COM AVERBAÇÃO NO REGISTRO CIVIL, pelos fundamentos de fato e direito a seguir apresentados.
1. DOS FATOS
A requerente R. C. S. C., atualmente com 29 (vinte e nove) anos de idade, é filha biológica de D. S. C. e não possui genitor registral, conforme certidão de nascimento anexa.
Por sua vez, a requerente V. S. C. é tia materna de R. e, desde o 1º (primeiro) ano de vida desta última, foi a única responsável pelo exercício de seus cuidados diários e pelo seu desenvolvimento.
Ressalta-se, inclusive, que a guarda de direito de R. foi estabelecida em 29/12/2003 à V., por meio de assinatura de Termo de Guarda e Responsabilidade nº 3865-3/2001, realizado perante a antiga Vara de família, órfãos e sucessões do Paranoá/DF (doc. anexo).
Ressalta-se ainda que, embora a requerente D. seja irmã de V. e compartilhe o mesmo círculo familiar, R. fruiu de pouco contato com a genitora biológica durante o período de sua infância e adolescência, situação que persiste até hoje.
Diante da situação apresentada acima, V. passou a desenvolver fortes vínculos de afetividade em relação à R., vínculo por ela correspondido, sendo hoje uma relação inequívoca de maternidade socioafetiva, desejando as partes a declaração formal junto ao registro civil de R.
Por tais motivos, as partes procuraram pela Defensoria Pública do Estado de Goiás, e em sessão de mediação conduzida por esta Defensora que subscreve, as partes, de livre e espontânea vontade e após cientificadas dos princípios norteadores da mediação, tais como a imparcialidade do mediador, a isonomia entre as partes, a oralidade, a informalidade, a voluntariedade, a busca do consenso, a confidencialidade e a boa-fé, conforme a Lei n. 13.140/2015 (Lei de Mediação), se compuseram civilmente.
Assim, as partes declaram e reconhecem a maternidade socioafetiva de V. em relação à R., a quem considera como sua filha, e reciprocamente, por ela é reconhecida como mãe, e portanto, requerem a retificação do registro de nascimento de R. a fim averbar a maternidade socioafetiva.
Por outro lado, as partes reconhecem a falta de vínculo afetivo entre R. e D. e, por tal motivo, desejam que seja formalizada a descontinuidade da parentalidade biológica, com a respectiva alteração do registro civil de R., nos termos do acordo extrajudicial acostado e do artigo 108, III, da Lei Complementar 80/94.
2. DO DIREITO
2. 1. PRELIMINARMENTE
a) Das prerrogativas dos membros da Defensoria Pública.
Inicialmente cumpre destacar a necessidade de observância das prerrogativas dos membros da Defensoria Pública, em especial das que dizem respeito ao prazo em dobro; à intimação pessoal mediante vista dos autos; à atuação independentemente de apresentação do mandato e à manifestação por cota, nos termos do art. 128, da LC 80/94, com a nova redação dada pela LC 132/2009.
b) Da gratuidade de custas.
De acordo com os arts. 5º, LXXIV, da CF/88 e 98 e seguintes do Código de Processo Civil, os requerentes se declaram hipossuficiente na estrita acepção do termo, assumindo não poderem arcar com as custas processuais e honorários advocatícios, sem prejuízo do sustento próprio e de sua família, conforme documentos anexos.
2. 2. DO MÉRITO
a) Da Jurisdição voluntária.
No presente caso, o acordo celebrado junto à Defensoria Pública tem o condão de conferir harmonização e pacificação prévia entre as partes envolvidas, direcionando-se o feito ao ambiente próprio da jurisdição voluntária, o que não significa ausência de contraditório, e ainda, sem que se retire eventual possibilidade e necessidade de análise e produção probatória, especialmente quanto à existência do vínculo afetivo da maternidade socioafetiva.
b) Do reconhecimento da filiação socioafetiva.
A filiação que resulta da posse do estado de filho constitui uma das modalidades de parentesco civil de “outra origem”, previstas na lei (art. 1593, CC): a origem afetiva. Assim, a filiação socioafetiva corresponde à verdade construída pela convivência e assegura o direito à filiação.
Para Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, mãe e/ou pai afetivo é quem ocupa, na vida do filho, o lugar de mãe/pai, com o desempenho das respectivas funções, de tal sorte que a filiação socioafetiva seria uma espécie de adoção de fato, pois é pai/mãe afetivo quem oferece abrigo, carinho, educação e amor ao filho.
Deste modo, a filiação socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana ao permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, a verdade real dos fatos.
No presente caso a posse de estado de filha e mãe, respectivamente, de R. e V., esta como mãe afetiva, é inequívoca há mais de 29 (vinte e nove) anos, tendo se constituído de forma pública e contínua, conforme atestado por todas as partes no “termo de entendimento” anexo.
Logo a pretensão ora apresentada amolda-se ao princípio da dignidade humana de todas as pessoas envolvidas. Muito longe de representar campo de batalhas, típico da dogmática jurídica que sempre conjectura quanto à indesejabilidade e quanto às complicações do “condomínio”, tem-se que a multiparentalidade não está no mundo do direito das coisas; está, sim, no mundo do direito da personalidade, dos sujeitos de direitos, é ser, e não ter.
Destarte, pugna-se reconhecimento da maternidade socioafetiva estabelecida entre V. S. C. e R. C. S. C., respectivamente mãe e filha, com a devida averbação junto ao Cartório de Registro Civil, nos moldes dos termos do acordo entabulado entre as partes.
c) Da possibilidade de "descontinuação" de parental biológica por abandono afetivo.
Outrossim, considerando a maioridade da requerente R.; a ausência de laços afetivos entre R. e D., bem como a concordância entre todas as partes envolvidas, se pretende ainda a exclusão da maternidade biológica.
Como já destacado, a requerente R. é filha biológica de D. e não possui pai registral, e desde o seu 1º (primeiro) ano de vida tem sido a genitora socioafetiva, a sra. V., a única responsável por seus cuidados diários e desenvolvimento. Ainda R. e D. não tiveram convivência duradoura, situação que persiste até os dias de hoje, motivo pelo qual não houve a criação de vínculos entre ambas ante o abandono sofrido pela filha.
Assim, diante do quadro fático-probatório apresentado aos autos, que é corroborado por todos os envolvidos (filha, genitora socioafetiva e genitora biológica), observa-se que não há qualquer elemento de identidade emocional entre R. e D., o que justifica o presente pleito de desfiliação biológica.
Em caso análogo, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, admitiu a possibilidade de "desfiliação" de parentalidade biológica por abandono afetivo. Confira-se:
“CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DESCONTITUIÇÃO DE PATERNIDADE E RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL. ABANDONO AFETIVO DO PAI BIOLÓGICO EM RELAÇÃO À FILHA. MODIFICAÇÃO DO NOME PARA SUPRIMIR PATRONÍMICO PATERNO. RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO. JUSTO MOTIVO. ART. 57 DA LEI 6.015/75. PAI SOCIOAFETIVO. MULTIPARENTALIDADE. MELHOR INTERESSE DO DESCENDENTE. POSSIBILIDADE DE DESLIGAMENTO DO PODER FAMILIAR BIOLÓGICO.
1. De acordo com os artigos 226 e 229 da Constituição Federal, a família é a base da sociedade e os pais possuem o poder familiar como um dever, cabendo-lhes assistir, criar e educar os filhos menores, com o estabelecimento das bases para uma vida digna.
2. A ausência dos laços afetivos transforma o núcleo familiar, que deve ser de amparo e educação, em referência de insegurança e hostilidade, de forma que o convívio do indivíduo com o sobrenome dos ascendentes pode ocasionar desconforto e sofrimento psíquico, motivo pelo qual a jurisprudência vem entendendo que o rol da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) deve ser flexibilizado diante de circunstâncias excepcionais, como é o caso do abandono afetivo.
3. O artigo 16 do Código Civil estabelece que toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome.
3.1. Em regra, o nome faz parte do direito da personalidade do indivíduo e é imutável, admitindo-se, contudo, sua alteração nas hipóteses expressas em lei ou reconhecidas como excepcionais por decisão judicial, com fundamento no artigo 57 da Lei 6.015/75.
4. O direito ao nome e sobrenome envolve não apenas o direito registral, mas trata-se essencialmente de direito fundamental, cujo sentido primordial é a tutela da dignidade da pessoa humana.
5. O abandono afetivo configura justo motivo capaz de admitir a supressão do sobrenome paterno ou materno.
6. O pedido de desfiliação deve ser compreendido como de desligamento do vínculo do poder familiar biológico em decorrência do manifesto prejuízo causado aos direitos da personalidade da autora.
6.1. O reconhecimento da pluriparentalidade desafia, nos termos do RE n. 898.060, que a interpretação ocorra no melhor interesse do descendente. (STF, Tribunal Pleno, RE. n. 898.060, Rel. Min. LUIZ FUX, julgamento: 21/09/2016).
6.2. No caso dos autos, o incontroverso abandono afetivo é razão suficiente para demonstrar a repulsa da descendente em manter o registro de filiação do pai biológico.
6.3. A existência de reconhecimento prévio de parentalidade socioafetiva em favor de P. H. F. P. fulminou o interesse de agir em relação ao ajuizamento de possível ação de adoção unilateral de adulto, mas não impede a observância do artigo 43 do ECA, no sentido de que a ruptura do vínculo seja pleiteada no melhor interesse do descendente.
7. Apelação cível conhecida e integralmente provida.
(Acórdão 1856074, APELAÇÃO CÍVEL 0736113-86.2023.8.07.0016, Relator: Desembargadora CARMEN BITTENCOURT, 8ª Turma Cível, data de julgamento: 09/05/2024, publicado no DJE: 14/05/2024. Pág.: Sem Página Cadastrada.) – grifo nosso
Destarte, pugna-se pela procedência do pedido de descontinuação da parentalidade da biológica entre D. e R., com a devida averbação junto ao Cartório de Registro Civil, a fim de que conste o desligamento do vínculo familiar, bem como de todos os consectários que lhe são decorrentes – e.g. direitos sucessórios, dever de sustento, correção registral -, conforme termo de entendimento firmado entre as partes.
3. DOS PEDIDOS
Ante o exposto, requer-se:
a) seja a presente demanda recebida, processada nos termos do art. 719 e seguintes do Código de Processo civil (ações de jurisdição voluntária), e com observâncias dos princípios e regras estabelecidos no art. 693 e seguintes do referido diploma processual;
b) seja concedida a gratuidade de custas às requerentes, em conformidade com o artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal e artigos 98 e seguintes do Código de Processo Civil;
c) no mérito, sejam julgados procedentes os pedidos elencados na presente ação, a fim reconhecer a maternidade socioafetiva entre V. E R. e a descontinuação da parentalidade da biológica entre D. e R., conforme termo de entendimento firmado entre as partes e com a devida averbação junto ao Cartório de Registro Civil, devendo constar expressamente a gratuidade para os emolumentos, nos termos do art. 98, §1º, IX, do Código de Processo Civil;
d) sejam observadas, nos termos do art. 128, I e XI, da LC 80/94, as prerrogativas da intimação pessoal, remessa dos autos com vista, contagem em dobro para todos os prazos e dispensa de apresentação de instrumento de mandato.
Protesta provar o alegado por todos os meios em direito admitidos, em especial pela prova pericial de Exame de DNA, documentos, depoimentos pessoais das partes e demais que julgar necessário no decorrer do processo.
Dá-se à causa o valor de R$ 1.412, 00 (um mil e quatrocentos e doze reais), nos termos dos art. 291, do Código de Processo Civil.
Nestes termos, pede deferimento.
Valparaíso de Goiás/GO, datado e assinado digitalmente.
JÉSSICA SANTOS ANGELO
Defensora Pública