#1 - Paternidade Socioafetiva. Guarda Fática desde o Nascimento.

Data de publicação: 28/01/2025

Tribunal: TJ-SP

Relator: Vitor Frederico Kümpel

Chamada

(...) “Assim, na linha do parecer ministral, demonstra-se que o reconhecimento da paternidade socioafetiva do autor em relação à infante pode não ser benéfico para seu desenvolvimento, podendo gerar maior confusão na percepção da menor.” (...)

Ementa na Íntegra

APELAÇÃO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Sentença de improcedência. Irresignação do Requerente. Criança que teve a guarda concedida a avó paterna desde o nascimento. Autor casado com a avó paterna há mais de vinte e cinco anos que também está com a guarda fática da menor desde o seu nascimento, requerendo seu reconhecimento como pai socioafetivo. Cabimento. Estudo Social que demonstrou que a realidade fática para os envolvidos é de que o autor é pai da infante, a qual o reconhece como tal. Evidenciada a relação afetiva duradoura, de tratamento afetivo paterno-filial do autor e da menor. Manutenção do pai biológico. Pluriparentalidade. Possibilidade. Melhor interesse da criança devidamente respeitado. Sentença reformada. Recurso provido.

(TJ-SP - Apelação Cível: 10097435220238260344 Marília, Relator: Vitor Frederico Kümpel, Data de Julgamento: 12/07/2024, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 12/07/2024)

Jurisprudência na Íntegra

Inteiro Teor 

 

Registro: 2024.0000627878 

  

ACÓRDÃO 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1009743-52.2023.8.26.0344, da Comarca de Marília, em que é apelante J. C. F. DE L. (JUSTIÇA GRATUITA), são apelados M. DE A. (REVEL) e M. A. C. DA S. (REVEL). 

  

ACORDAM, em sessão permanente e virtual da 4a Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: Deram provimento ao recurso. V. U., de conformidade com o voto do relator, que integra este acórdão. 

  

O julgamento teve a participação dos Desembargadores ALCIDES LEOPOLDO (Presidente) E ENIO ZULIANI. 

  

São Paulo, 12 de julho de 2024. 

  

VITOR FREDERICO KÜMPEL 

Relator (a) 

  

Assinatura Eletrônica 

Voto: 7528 

Apelação Cível nº 1009743-52.2023.8.26.0344 

  

Apelante: J. C. F. de L. 

Apelados: M. de A. e M. A. C. da S. 

Interessado: L. C. A. 

  

Comarca: Marília (2a Vara de Família e Sucessões) 

  

Juiz (a) sentenciante: Dr. José Antônio Bernardo 

  

APELAÇÃO. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Sentença de improcedência. Irresignação do Requerente. Criança que teve a guarda concedida a avó paterna desde o nascimento. Autor casado com a avó paterna há mais de vinte e cinco anos que também está com a guarda fática da menor desde o seu nascimento, requerendo seu reconhecimento como pai socioafetivo. Cabimento. Estudo Social que demonstrou que a realidade fática para os envolvidos é de que o autor é pai da infante, a qual o reconhece como tal. Evidenciada a relação afetiva duradoura, de tratamento afetivo paterno- filial do autor e da menor. Manutenção do pai biológico. Pluriparentalidade. Possibilidade. Melhor interesse da criança devidamente respeitado. Sentença reformada. Recurso provido. 

  

Vistos. 

  

Trata-se de Recurso de Apelação interposto por J. C. F. de L. contra M. de A. e M. A. C. da S., em razão da sentença de fls. 119/123 que julgou improcedente o pedido inicial consistente em reconhecimento de paternidade socioafetiva realizada pelo autor casado com a avó paterna da menor, nas seguintes linhas:  

 

O que se está a dizer nestes autos é tão somente que há forte laço afetivo entre as partes, que se trataram como pai e filho por lapso temporal considerável, o que não pode ser desconsiderado no caso em tela, sobretudo porque o infante E. tem no autor D. seu referencial paterno. [...] no caso dos autos, a menor encontra-se extremamente confusa com relação aos vínculos consanguíneos e afetivos, trocando os papéis parentais, possivelmente em negação de sua história de origem, que devem ser devidamente trabalhados em acompanhamento psicológico, conforme salientou as técnicas do juízo.  

 

Assim, na linha do parecer ministral, demonstra-se que o reconhecimento da paternidade socioafetiva do autor em relação à infante pode não ser benéfico para seu desenvolvimento, podendo gerar maior confusão na percepção da menor.  

 

Além disso, a esposa do requerente, avó paterna da menor, sequer postulou o reconhecimento similar de maternidade socioafetiva, contentando-se com seu papel de avó.  

 

Em que pese o carinho e afetividade demonstrada pelo requerente, trata-se de pedido por demais anômalo em relação aos vínculos regulares parentais, o que, repita-se, só viria a provocar enorme confusão na criança L.C.A. (...) Pelo exposto, JULGO IMPROCEDENTE o pedido inicial nos termos do artigo 487, inciso I, do Código de Processo Civil. 

  

Insurge-se o Apelante (fls. 128/133), ao argumento de que é casado com a avó paterna da menor L.C.A. e que juntamente com aquela vem cuidando e zelando pelo bem-estar da criança desde os primeiros meses de vida, estando atualmente com seis anos de idade. Esclarece que a avó paterna detém a guarda definitiva da menor através de processo que tramitou perante a Segunda Vara de Família e Sucessões da Comarca de Marília (1000386-24.218.8.26.0344). Discorre sobre a possibilidade de reconhecimento da paternidade socioafetiva requerida de modo a legalizar situação fática que já existe, havendo inclusive concordância dos genitores da criança em audiência ocorrida perante o CEJUSC. Alega que o próprio estudo psicossocial concluiu não haver nenhum elemento a contraindicar o acréscimo de seu nome na certidão de nascimento da menor como pai afetivo, sendo certo que a criança o reconhece desta forma. Sustenta, outrossim, que havendo o seu reconhecimento como pai afetivo, a menor passará a ser sua herdeira, salientando não ter outros filhos. Requer a reforma da r. sentença com o reconhecimento da paternidade afetiva. 

  

Sem contrarrazões. 

  

Parecer da Douta Procuradoria Geral de Justiça pelo desprovimento do recurso (fls. 167/169). 

  

Não houve oposição ao julgamento virtual. 

  

Recurso tempestivo e, isento de preparo, ante a gratuidade processual concedida ao Apelante. 

  

É o relatório. 

  

Cinge-se a presente controvérsia pelo reconhecimento da paternidade socioafetiva exercida pelo autor, ora apelante, marido da avó paterna, a qual já detém a guarda jurídica da menor L.C.A., nascida em 20/11/2017. 

  

Depreende-se da análise do feito, que o autor e a avó paterna sempre cuidaram da criança desde o seu nascimento, ante ausência de condições de seus genitores. 

  

Consta às fls. 73/74, a realização de acordo perante o CEJUSC, havendo concordância por parte dos pais biológicos M.A. e M.A.C. da S. de que houvesse o reconhecimento da paternidade socioafetiva do autor, com a devida averbação à margem do assento de nascimento da criança do nome do apelante, mantendo o nome daqueles. 

  

A vista de manifestação contraria por parte do D. Representante do Ministério Público houve a determinação de realização de Estudo Social, o qual concluiu: 

  

"Do ponto de vista psicológico evidenciou-se que a criança vive uma realidade familiar construída a partir de seu desejo, de modo que os laços sanguíneos são negados e a relação afetiva ganha status de ÚNICA verdade e possibilidade de existência. A negação da realidade como mecanismo de defesa psicológica é utilizada no funcionamento mental como barreira protetora contra a dor psíquica.  

 

Desse modo inferimos que a criança se defende, por meio da negação, da dor de sua história de origem. O fato é que, provavelmente, em algum momento da vida, será necessário integrar sua história a fim de conseguir se desenvolver adequadamente. Diante do exposto sugere-se que a criança passe por processo de psicoterapia com profissional psicólogo competente para o atendimento de crianças, assim como sugere-se que o Sr. J. C. e Sra. M. também passem por acompanhamento psicológico a fim de serem orientados na maneira de lidar com a menina e sua história.  

 

Do ponto de vista psicológico, não foi observado nenhum elemento que contraindique o acréscimo do nome de SR. J. C. (sic) na certidão de nascimento de L. (sic) enquanto pai socioafetivo. Idealmente a família, a partir da psicoterapia, conseguiria incorporar ao seu universo mental todos os nomes e parentescos presentes em tal documento (filiação biológica e socioafetiva)." 

  

Respeitado entendimento contrário, há comprovação de que a criança vê e entende o autor e sua avó paterna como sendo seus pais, o que é constatado no estudo social (fls. 107): "Evidenciou-se que a menina reconhece no autor e na avó paterna as figuras parentais, sendo possível avaliar isto na interação desta com eles durante os contatos estabelecidos." 

  

E segue referido laudo: "A criança L. (sic) está sob a responsabilidade do casal desde seu nascimento, de modo que se construiu vínculo de afeto e intimidade compatíveis com a relação materno-paterno- filial." 

  

Verifica-se, portanto, que restou evidenciada a relação afetiva duradoura, de tratamento afetivo paterno-filial do autor e da menor, o que não pode ser relegado. 

  

Nesse sentido, aliás, o Colendo STJ: 

A filiação socioafetiva (...), ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea (...), arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família"(Superior Tribunal de Justiça, 3a Turma, REsp nº 1.087.163/RJ, relatora Ministra NANCY ANDRIGHI, j. 18/8/2011). 

  

Ora, em um universo em que inúmeros são os casos de crianças que são deixadas a margem de cuidados, não sendo reconhecidas por seus pais biológicos, não recebendo amor e afeto tão necessários ao desenvolvimento sadio e feliz, louvável é a atitude aqui perseguida. 

  

Ressalte-se, ademais, que haverá a manutenção dos pais biológicos do assento da criança, o que em momento algum foi negado. 

  

Sobressai, in casu, a reconhecida realidade de que o autor se apresenta e é considerado pela menor como seu pai de fato. 

  

Importante pontuar que, em repercussão geral, assim assentou o Supremo Tribunal Federal: 

(...) 14. A pluriparentalidade, no Direito Comparado, pode ser exemplificada pelo conceito de" dupla paternidade "(dual paternity), construído pela Suprema Corte do Estado da Louisiana, EUA, desde a década de 1980 para atender, ao mesmo tempo, ao melhor interesse da criança e ao direito do genitor à declaração da paternidade. Doutrina.  

15. Os arranjos familiares alheios à regulação estatal, por omissão, não podem restar ao desabrigo da proteção a situações de pluriparentalidade, por isso que merecem tutela jurídica concomitante, para todos os fins de direito, os vínculos parentais de origem afetiva e biológica, a fim de prover a mais completa e adequada tutela aos sujeitos envolvidos, ante os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e da paternidade responsável (art. 226, § 7º).  

16. Recurso Extraordinário a que se nega provimento, fixando- se a seguinte tese jurídica para aplicação a casos semelhantes: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. (Recurso Extraordinário 898.060 Santa Catarina, Relator Luiz Fux, Tema 622, j. 29/09/2016) 

  

Destarte, reputo que a melhor solução é consolidar a dupla filiação biológica e socioafetiva posição que melhor respeita os direitos fundamentais de personalidade dos envolvidos. 

  

Por derradeiro, considerando a existência de precedentes das Cortes Superiores que vêm apontando a necessidade do prequestionamento explícito dos dispositivos legais ou constitucionais supostamente violados, a fim de se evitar eventuais embargos de declaração apenas para tal finalidade, por falta de sua expressa remissão no acórdão, ainda que examinados implicitamente, dou por pré-questionados os dispositivos legais e/ou constitucionais suscitados pelas partes. 

  

Assim, pelo exposto, pelo meu voto, DOU PROVIMENTO ao recurso, para declarar que J.C. F. de L. é pai socioafetivo da menor L.C.A., expedindo-se, mandado de averbação para inclusão do sobrenome do pai na certidão de nascimento, assim como dos nomes dos respectivos avós paternos, caso constem dos autos, com a manutenção do nome dos pais biológicos. 

  

VITOR FREDERICO KÜMPEL 

Relator